A sensação de poder na Maçonaria segundo José Manuel Anes

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ENRIC VIVES-RUBIO

Na Maçonaria, os "irmãos" têm a obrigação da entreajuda. E o dever de agir em nome de valores superiores, seja através do aperfeiçoamento pessoal, seja na criação de obras sociais. Daí até às ambições de conquista de poder político e económico, só dá o passo quem quer.

"Alguém reclama o "tronco da viúva"?"

Faz-se sempre esta pergunta no final de cada reunião de uma loja maçónica. O "tronco da viúva" é o produto do peditório que se realiza em cada encontro, e se alguém, por alguma razão, precisar do dinheiro no momento - por estar desempregado, ou ter tido algum problema - pode ficar com ele. Este é um dos exemplos do espírito de entreajuda que vigora na Maçonaria, explica ao PÚBLICO José Manuel Anes, um dos fundadores da Grande Loja Regular de Portugal, de que foi grão-mestre.

Há várias razões para se ingressar na organização maçónica, uma delas é essa: a solidariedade entre os vários elementos. "Há casos de empresários que arranjam emprego a irmãos", diz Anes. Essa função de prestar auxílio a quem precisa é um imperativo moral entre os maçons. Da mesma forma, a organização, com base no mesmo saco de beneficência, ou "tronco da viúva", atribui bolsas de estudo aos "irmãos" que as mereçam e delas necessitem.

Nos Estados Unidos, onde existem cerca de 3 milhões de maçons - em Portugal, segundo Anes, serão pouco mais de dois mil -, a organização criou fundações e hospitais, onde os maçons podem ser tratados a preços reduzidos, ou gratuitamente. "Muitos maçons portugueses vão a esses hospitais americanos receber assistência gratuita."

Esta característica da Maçonaria, a par com o seu secretismo, é das que mais suscitam a desconfiança do mundo "profano" - como os maçons designam os não-maçons. Pois se os "irmãos" têm a obrigação de se ajudarem ao longo da vida, o que se passa quando já não se trata de precisar de emprego, mas de ajuda para conquistar uma posição de poder numa grande empresa, ou no Governo?

"A Maçonaria pode funcionar como o clube rotário", que, segundo Anes, serve essencialmente como plataforma de apoio dos seus membros ao longo da vida, embora a organização maçónica seja mais do que isso. "Há quem use a Maçonaria para chegar a lugares de poder, mas isso não é culpa da Maçonaria. Depende da consciência de cada um."

O fenómeno existe. Na opinião de José Manuel Anes, Jorge Silva Carvalho, ex-director do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), é um desses casos. Convidado pelo próprio Anes para ingressar na Maçonaria, Silva Carvalho tornar-se-ia num homem obnubilado pela "ambição desmedida". Deixou de prestar contas ao "padrinho" e dedicou-se a ressuscitar uma loja maçónica em tempos fundada por jornalistas, mas que se encontrava adormecida. Ainda segundo o relato de Anes, Silva Carvalho terá "levantado as colunas" da loja Mozart, para a qual começou a convidar pessoas que interessavam ao seu "projecto de ambição pessoal e de conquista de poder".

Silva Carvalho, que foi objecto de inquérito sobre a transmissão de informações confidenciais dos serviços secretos para a empresa Ongoing, de que se tornaria quadro superior, não quis responder às acusações de Anes. Mas escreveu na sua página do Facebook: "Queria apenas relembrar que nunca me pronunciei publicamente sobre a Maçonaria, nomeadamente sobre a minha alegada pertença, e, muito menos, sobre a pertença de outros cidadãos à referida Ordem. E não o faço simplesmente porque me recuso a tal."

Na sequência das afirmações que fez ao PÚBLICO, e para que a imagem da Maçonaria não sofresse com as acusações feitas a Silva Carvalho, José Manuel Anes pediu ontem a sua suspensão da organização. "É uma auto-suspensão temporária, que solicitei ao grão-mestre, para poder fazer declarações em plena liberdade", explica Anes, que, no entanto, não tenciona, para já, denunciar mais nada quanto ao comportamento do ex-espião Carvalho.

Justiça maçónica

Quando estes casos são detectados, deveriam ser tratados pelas instituições da Justiça Maçónica, que, após um inquérito rigoroso, deveria suspender ou expulsar os culpados. Mas é frequente, reconhece José Manuel Anes, que estas situações sejam detectadas demasiado tarde. De qualquer forma, acrescenta, elas não são muito comuns na Maçonaria. Antes de mais porque, ao contrário do que muitos pensam, a irmandade não é constituída apenas por gente poderosa, ávida de ainda mais poder.

Como a organização não revela os nomes dos seus membros, acontece que aqueles que vêm assumir-se em público são, geralmente, figuras de alguma notoriedade. Daí nasce a ideia de que se trata de um clube de poderosos, o que não é verdade. Segundo Anes, a esmagadora maioria dos maçons é gente comum. "Há guardas-nocturnos, estudantes, pessoas desempregadas ou pobres. Há irmãos que têm dificuldade em pagar as quotas." Há critérios para a entrada, mas que não passam necessariamente pelo êxito social ou económico, ou pela ambição de poder.

Quando a organização foi criada, na Idade Média, a definição das qualidades necessárias dos seus membros era ser "um homem livre e de bons costumes". Mas a fórmula "tem de ser interpretada de acordo com cada época".

Quando é proposta a entrada de alguém, o grão-mestre nomeia dois "irmãos" para fazerem um inquérito ao candidato. São realizadas entrevistas ao próprio, mas também, se necessário, a outras pessoas, nomeadamente amigos ou colegas de profissão, que possam fornecer informações pertinentes. Depois é redigido um parecer. Este processo pode levar anos. No caso de José Manuel Anes, demorou quatro, desde que foi convidado até à cerimónia de iniciação e a sua entrada efectiva.

O que se pretende averiguar é se a pessoa é honesta e possui valores sólidos, bem como a sua adesão às características, simbologia e valores da própria maçonaria. "Uma pessoa pode ser rejeitada, por falta de qualidades éticas." Tanto mais que, em muitos casos, se não a maioria, e ao contrário do que se pensa, as admissões não têm origem num convite, mas num "pedido" para ser convidado.

Acresce que, uma vez na organização, aquelas características, simbologia e valores levam os "irmãos" a agir no sentido do aperfeiçoamento individual e do melhoramento da comunidade em que estão envolvidos. E é nisto, do ponto de vista dos que criticam o comportamento concertado dos maçons na sociedade, que está o problema: os maçons obedecem a um imperativo para agir.

"O maçon é um pedreiro, um construtor", diz Anes, referindo-se às origens da maçonaria nas corporações medievais dos pedreiros-livres. Maçon significa pedreiro, e essa ideia, ainda que, a partir do século XVIII, tenha assumido uma acepção espiritual, continua na base definidora da maçonaria.

"O maçon tem a obrigação de trabalhar, de construir algo, à glória do Grande Arquitecto." A própria ideia de Deus, na filosofia maçónica, está relacionada com a de um construtor. Ou seja: a ética da Maçonaria não é contemplativa ou conformista. É uma ética de acção. O maçon não consegue ficar quieto.

É preciso fazer coisas, e a solidariedade entre os "irmãos" deve servir esse fim. "Há grandes obras cuja iniciativa nasce na Maçonaria, e a sua concretização é acompanhada lá", diz José Manuel Anes. Dá um exemplo: a Universidade Moderna.

"Estávamos num jantar no restaurante Caracol da Esperança, quando o ... (nome que não pode ser revelado) deu a ideia: e se criássemos uma grande universidade maçónica? E começámos a trabalhar naquilo, baseados no exemplo da Universidade Livre de Bruxelas." O projecto avançou, acabando no escândalo que se sabe, mas isso, diz Anes, "não teve nada a ver com os fundadores iniciais".

Nem economia nem religião

Empreendimentos como este, de índole cultural, social ou filantrópica, são próprios e louváveis dentro da instituição maçónica, e justificam um esforço de cooperação e de uso, em sinergia, de todos os meios de que os "irmãos" consigam dispor. Mas que dizer de um projecto de controlo político, ou empresarial, ou, ainda pior, dos dois juntos, em nome do bem comum? José Manuel Anes não consegue explicar a diferença, com precisão. "Depende da consciência de cada um."

Por princípio, não se discutem, nas reuniões das lojas, temas de política partidária ou actual, nem de economia ou religião, diz. "Assuntos que possam dividir os irmãos são proibidos. A Maçonaria nasceu precisamente para conciliar católicos e protestantes."

O "venerável mestre" da Mozart, Leopoldo Guimarães, disse ontem, aliás, que na sua loja não é permitida a discussão de política partidária, nem o assunto das secretas alguma vez foi abordado.

Mas esta regra já não se aplica aos jantares depois das reuniões. Nestes, que se realizam em restaurantes ou hotéis, e onde nem sempre estão presentes todos os "irmãos", pode também haver comunicações escritas sobre temas maçónicos, mas não são interditas conversas informais sobre quaisquer assuntos ou projectos. É nesses encontros, que na linguagem maçónica se chamam Ágape, que, segundo José Manuel Anes, as acções são planeadas e são trocados informações e favores, de forma lícita ou, eventualmente, ilícita.

"Pertencer à Maçonaria dá poder", admite Anes, porque "reforça o prestígio simbólico". Os rituais, o sentimento de pertença a uma organização antiga que partilha valores de grande elevação moral transmitem uma corrente de confiança, uma sensação de poder. É nisso que reside todo o apelo da Maçonaria, explica Anes, que é professor e especialista em Criminologia, presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo e doutorado em Antropologia Cultural com especialização em Simbologia das Religiões.

"Quando entramos numa reunião da nossa loja maçónica, e estão lá ministros, líderes de grandes empresas, etc., é inegável que se experimenta uma grande sensação de poder." Sensação ilusória, bem entendido, proporcionada pela volúpia do "prestígio simbólico".

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