Um passo à frente, outro atrás, e cuidado com o jarrão Ming

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miguel manso

Não é suposto darmos por ele, mas que ele existe, existe. O protocolo do Estado está nas mãos do embaixador José de Bouza Serrano que, em livro, conta o que devemos saber se um dia tivermos o Presidente da República à mesa e revela as regras de bastidores das estórias que fazem a História. "Estes actos públicos são todos encenações", diz.

O ano protocolar começa, invariavelmente, da mesma forma, com as sessões de apresentação e de cumprimentos dos embaixadores. São várias sessões que respondem à mesma orgânica e é suposto que tudo funcione sem mácula: Cavaco Silva avançará dois passos, ao lado do jarrão Ming, e será cumprimentado por cada um dos representantes dos outros estados e, cumprida a cerimónia, falar-se-á de política externa. Se algo falhar, a culpa será do protocolo.

Estes são dias exigentes, iguais a tantos outros no intenso calendário sob o qual vive a equipa de José de Bouza Serrano, chefe do protocolo do Estado desde 2008, uma equipa que se quer discreta, porque "é tudo efémero".

Bouza Serrano gosta de chamar "encenações" e "coreografias" ao que faz. "Pequenas peças que montamos para fazer representar o Estado". E cita uma frase de Pacheco Pereira que resume bem o que é, e para que serve, o protocolo de Estado: "É o Estado a ver-se ao espelho".

No enorme espelho da sala onde recebe o P2, no Palácio das Necessidades, em Lisboa, passou também a História. Ali ainda resiste o estilhaço de uma bala disparada de uma fragata, a 5 de Outubro de 1910, pretendendo atingir o rei, que ali tinha a sua sala de trabalho. E é dali, por entre as mesas cobertas de fotografias, duas dedicadas à monarquia e uma outra à república que nos fala um homem que sabe de cor o que não se deve fazer.

"Não são regras, são preceitos", começa por dizer, porque falar de protocolo é falar de dignidade. Da dignidade de um Estado, da sua memória, das suas tradições e da sua história. Por isso, e di-lo Jaime Gama, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e ex-presidente da Assembleia da República, no prefácio do Protocolo de Estado, que Bouza Serrano escreveu para a Esfera dos Livros, que "vencer o preconceito em torno do protocolo é um acto de maturidade que aperfeiçoa as sociedades e lhes confere um acrescido grau de liberdade, porque lhes acrescenta civilização".

Será de senso comum dizer-se que um bom protocolo é aquele que não se ouve nem se vê, nem dele se fala. Mas quando algo corre mal, já se sabe a quem apontar a culpa. Não será bem assim, esclarece o embaixador, defendendo-se.

Saudações ao chefe

Os últimos anos têm sido particularmente exigentes. Fora a agenda normal - o ponto alto é o 10 de Junho, "que são sempre dois dias cansativos"- o protocolo foi chamado a participar na visita do Papa Bento XVI, em 2009; na cimeira da NATO em 2010 e na última celebração do 25 de Abril, com a Assembleia da República em processo de dissolução. Tudo exemplos da História recente onde o protocolo teve um papel fundamental. "E que se deseja imperceptível", pede.

Quando da visita do Papa, o chefe de protocolo temeu "que se atirassem preservativos para o papamóvel", mas emocionou-se com a quebra de protocolo que dezenas de jovens provocaram ao não abandonarem a Nunciatura, cantando pela noite dentro.

Quando Kadhafi chegou a Lisboa o caricato tomou conta da situação. "Primeiro chegou um avião com a tenda e o carro blindado, depois um segundo avião e um terceiro. Quando aterraram, saíram do segundo avião vários homens e mulheres com bandeiras da Líbia apontadas ao presidente, que saiu do terceiro avião, saudando-o e de modo a serem fotografados. Como nenhum deles tinha autorização de entrada no país, acabada a sessão, entraram no avião de volta à Líbia".

E para provar como se pode libertar o protocolo dos preconceitos, quando o Presidente da República decidiu fazer a cerimónia do 25 de Abril, no Palácio de Belém, com os antigos presidentes e tendo o público como fundo, "o que a Casa Branca consideraria um pesadelo, não deixando que o povo entrasse nos jardins, entre nós transformou-se num dia de festa", recorda.

Um chefe de protocolo não tem poder. Um chefe de protocolo não decide. Um chefe de protocolo aconselha. Um chefe de protocolo avisa. "Costumo dizer que tenho os poderes da rainha de Inglaterra". Depois, "bom, depois, é o homem e as suas circunstâncias", diz a rir.

O chefe de protocolo pode ter preferências religiosas, políticas, mas não as pode, ou não deve, anunciá-las. Os cargos e as funções sobrepõem-se às preferências pessoais, quer dos eleitos quer do chefe de protocolo. "Sirvo o Presidente da República, o primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros". É como a mulher de César, não tem de sê-lo, tem de parecê-lo. "Um chefe de protocolo não está sempre a confessar as suas preferências".

Os políticos educam-se com o protocolo? "Não, isso é com eles. As pessoas são elas próprias." E, "elas próprias" incluem os que aparecem sem serem convidados, os que ainda pedem, por favor, um favor e os outros que decidiram ser importantes, os pedidos e os telefonemas e os cartões... "E a firmeza que é preciso ter". Mas sempre vai dizendo que "há quem não tenha paciência para estas coisas". Ele próprio, nunca falando de falta de paciência, tem dias que parecem não acabar.

Bouza Serrano não esconde o prazer que todas estas encenações lhe dão. E todas as frustrações que "o factor humano" lhe causa. E recorda o episódio da tomada de posse do Presidente da República onde o ex-primeiro ministro José Sócrates quis reagir ao discurso perante os jornalistas, faltando na linha de predecência. O que foi visto como uma gaffe - "é tudo ampliado", critica - foi resolvido com brevidade. Mas, diz, hoje aliviado, "se fosse um bailado, era ter-lhe pedido para fazer um plié e ele fazer um pas-de-chat".

O embaixador chega mesmo a falar de "peças", "pequenas coreografias", "fachadas que montamos de actos que se esgotam em si próprios". E, depois, "bom, depois recomeça-se". Há quem se deslumbre. O próprio chefe do protocolo fala deste lado fascinante e ritual: "Dá-me uma certa segurança como cidadão ver as pessoas que elegi, ou foram eleitas, no exercício das suas funções". Mas depois, esclarecido, vai dizendo que "é a dignidade o leitmotiv de tudo isto".

Um chefe de Estado deposita flores no túmulo de Camões, nos Jerónimos, e isso é tradição. Um general chora junto da chama ao soldado desconhecido, dizendo-se próximo das suas irmãs, e isso é um problema. Mas Bouza Serrano desvaloriza polémicas como a do uso do cravo nas cerimónias do 25 de Abril: "Um chefe de Estado usa a sua mais alta insígnia, isso não fica bem com cravos", define.

Sem planos para funerais

Em Portugal não estão ainda desenhados os planos para os funerais, que serão de Estado, dos presidentes da República. Ao contrário de outros países, como a Inglaterra, "maníacos da perfeição", onde o recente casamento dos príncipes William e Kate serviu para o protocolo testar o esquema preparatório para o funeral da rainha Isabel II; em Portugal "não há um plano".

Ao mesmo tempo que vai alertando que "a segunda pele das pessoas é política e que cada vez mais as famílias têm uma palavra a dizer", Bouza Serrano dá o exemplo, mais aproximado, que o país teve de um funeral de um governante, que morrera em funções, Francisco Sá Carneiro, em 1981. Era então secretário de protocolo e, sem a possibilidade de entrar em contacto com os seus superiores, que se encontravam num jantar, o jovem Bouza Serrano foi receber os corpos aos Jerónimos. Entre estes estava o do seu amigo António Patrício Gouveia, chefe de gabinete de Sá Carneiro. Não havendo precedente, e dado o inesperado da situação, o protocolo socorreu-se do esquema usado, em 1970, no funeral de Salazar. Continuam a não existir planos - "felizmente", acrescenta - mas "o protocolo adapta-se", "respeitando a sua essência".

É assim, fingindo uma naturalidade, que Bouza Serrano, experimentado jogador do poder da palavra e da arte de disfarçar, desmonta o "difícil exercício da aparência". "Temos que saber que nada é verdadeiro ou ficamos com uma síndroma de abstinência. Vivemos nos palácios, nas embaixadas, temos criados e mordomos, e de um dia para o outro aquecemos a comida no microondas e ficamos a ver televisão enquanto jantamos". E conta o seu segredo: "Sabe quando pressentimos já não sermos ninguém? Sentamo-nos atrás, num carro preto, e não acontece nada". Mas enquanto vai acontecendo, e antes de a credulidade o lembrar "que a vida não é assim", todos os dias são dias "de fazer de conta".

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