“Será muito difícil para os EUA e Israel aceitarem um Egipto governado pela Irmandade Muçulmana”

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O académico é presença constante no debate dos temas islâmicos no mundo fotografia Nuno Ferreira Santos

Os jovens que fizeram as revoltas árabes "foram muito fortes na resistência à ditadura e na mobilização das pessoas, mas não tinham visão política", diz o académico muçulmano. O "despertar" árabe tem sido visto como um efeito dominó, mas é um jogo de xadrez regional onde o país fundamental é o Egipto. Tariq Ramadan está hoje em Lisboa para uma conferência na Gulbenkian.

Intelectual muçulmano suíço de origem egípcia, neto do fundador da Irmandade Muçulmana, professor de Estudos Islâmicos Contemporâneos em Oxford, professor visitante no Qatar e presidente do think tank European Muslim Network, Tariq Ramadan é uma das presenças mais constantes no debate dos temas islâmicos no mundo e das questões que envolvem os muçulmanos na Europa.

Para além da intervenção académica, dos livros que assina e das conferências sobre teologia ou jurisprudência, promoveu vários projectos comunitários e foi chamado por diferentes governos para ajudar a pensar as tensões entre europeus muçulmanos e não muçulmanos. Regressa a Lisboa para a conferência "Political and Religious Challenges Facing European Muslims", (hoje às 19h na Fundação Calouste Gulbenkian), um ano depois do início das revoltas árabes.

Podemos falar de um impacto das revoltas árabes nos muçulmanos dos países ocidentais, na forma como se vêem e como são vistos?
É demasiado cedo para perceber qual será o impacto. O que aconteceu foi que as pessoas se manifestaram, pediram mais dignidade e mais direitos, gritaram contra a corrupção e as ditaduras. No início, isto teve um impacto importante e muito positivo. Agora, toda a gente está à espera para ver o que vai acontecer depois das eleições, na Tunísia e no Egipto. O novo discurso já não é tão positivo. É positivo quando pensamos no processo democrático, mas não em relação aos resultados que estas eleições estão a ter. Ainda não sabemos se o impacto vai ser positivo ou negativo. Mesmo assim, é importante perceber que as novas gerações dos países de maioria muçulmana, no Norte de África ou no Médio Oriente, estão interessadas no que os muçulmanos do Ocidente estão a fazer e estão a ouvir o que eles dizem.

Mas vamos falar menos de burqa e de sharia (lei islâmica) na Europa por causa destas revoltas? Ou vamos continuar a ter partidos a querer proibir minaretes e peças de vestuário, reduzindo os muçulmanos a algo que é preciso temer?
No início, esta vaga de protestos deu uma imagem melhor dos árabes e dos muçulmanos e isso fez alguma diferença para algumas pessoas. Estas pessoas estavam na rua a pedir os mesmos direitos e os mesmos valores que os europeus estimam. Mas isso não vai ter uma influência significativa porque não vai mudar a abordagem populista e a forma como os partidos populistas tentam instrumentalizar tudo o que acontece. Como fizeram com a Tunísia em Lampedusa, quando disseram, "vêem, agora vêm os imigrantes". Nada ficou mais fácil.

O sucesso da Irmandade Muçulmana nas eleições egípcias surpreendeu?
Podemos ficar impressionados com os números, mas todos sabíamos que no Egipto a oposição mais credível dos últimos 30 anos foi a Irmandade Muçulmana. O que é surpreendente é o resultado dos islamistas mais literais, os salafistas do Partido Nour, apenas oito meses depois de terem decidido mudar de rumo e abraçar uma nova estratégia. Estas pessoas estão a entrar na arena política agora. Há oito meses diziam que estar envolvido em política ou participar num processo de democratização era anti-islâmico.

O Nour conseguiu até agora cerca de 25% (numas eleições legislativas por fases que ainda decorrem), a Irmandade Muçulmana deverá chegar perto dos 40%. Mas nada indica que as posições dos dois movimentos sejam conciliáveis.
Ao contrário ao que é dito no Ocidente, os salafistas do Nour não estão a trabalhar com a Irmandade Muçulmana. Na verdade, são uma nova força política que vai criar uma dificuldade à Irmandade, vai desafiá-la pelo lado religioso. Se a Irmandade Muçulmana não quiser lidar com os salafistas vai ter de lidar com o Exército. Num certo sentido, o que se vai passar no Egipto não é um Parlamento com 60% de islamistas. É uma divisão dentro dos islamistas que está a obrigar a organização política da Irmandade, o Partido Liberdade e Justiça, a ter de lidar com outras forças políticas. Isto vai ser fundamental.

Como é que podemos explicar esse resultado? Os líderes do Nour argumentam que se não tivessem perdido tempo a negociar uma coligação com a Irmandade, e tivessem começado a fazer campanha mais cedo, teriam obtido ainda mais lugares.
Há muitas razões significativas. Em primeiro lugar, devemos lembrar-nos do que aconteceu no Afeganistão, nos anos 1990, quando os taliban não estavam minimamente interessados em política e foram empurrados a envolver-se em política pela presença e pela agressão russa. Foram muito rápidos, depois de serem pressionados. Está a acontecer o mesmo com os salafistas, o movimento está a ser empurrado, de dentro e de fora do Egipto. Está a ser pressionado a envolver-se na política de uma forma nova. E está a seguir a mesma ideologia dos sauditas. Também pode ser que isto seja uma estratégia, obrigá-los a envolver-se na política para neutralizar a Irmandade Muçulmana.

Uma estratégia saudita?
É muito claro que eles têm apoio estrangeiro e que os sauditas os estão a financiar. Isso sempre foi assim, não é novo. Mas para além disso, os sauditas fazem parte do jogo norte-americano na região, e os norte-americanos continuam em contacto com o Exército. Pode ser que ao obrigar os salafistas a entrar na arena política se esteja a contribuir para que o Exército se mantenha como árbitro fundamental entre todos os jogadores.

Mas para além dessa pressão, o que explica o sucesso do Nour?
O segundo aspecto importante é que eles têm estado muito activos no terreno, através das mesquitas, fazendo passar a mensagem de que são islâmicos e distribuindo cassetes e livros com referências islâmicas. Eles são uma força de base e estão a usar a carta das referências islâmicas e até a obrigar as pessoas as pessoas a pensar que se não votam neles têm de votar na Irmandade. E todos sabemos que a ideologia dos literalistas é completamente contra a Irmandade Muçulmana. Eles ensaiaram uma coligação mas não consideram que a Irmandade represente o entendimento correcto e justo do islão. Não passou de uma jogada para enganar as pessoas.

As revoltas nos países árabes estão a levar movimentos que rejeitavam eleições a envolver-se na política. Há um caminho de abandono do extremismo violento por parte de alguns?
Temos de diferenciar entre o salafismo e o que chamamos salafistas. Salafistas são pessoas que fazem essencialmente uma interpretação literal do islão mas não são violentas. Mas há um movimento de pensamento salafista onde se incluem pessoas muito empenhadas em visões radicais e violentas. É preciso diferenciar uns dos outros. Estes literalistas são pessoas que dizem que a democracia não é islâmica, que não é a forma certa de ser muçulmano, que é preciso um Estado islâmico. Mas não pensam consegui-lo da mesma maneira que os extremistas mais violentos. É a oposição entre as pessoas que tentam apoiar o governo saudita e as pessoas que apoiavam Osama bin Laden por pensarem que esse é um regime corrupto. É preciso diferenciar pelo menos três tendências de islamismo: uma é literalista, outra é reformista e a outra é extremista violenta.

No Egipto, os cristãos coptas e os liberais estão assustados com os resultados, enquanto o Exército está agarrado ao poder e os islamistas suspeitam que não lhes será permitido governar. Fala-se de um país dividido como nunca.
O que falta ficar claro é se vamos ver uma democracia completa e verdadeira no Egipto ou se vamos ter uma democracia controlada. Hoje, com a presença do Exército, parece que será uma democracia controlada. Dependendo de como evoluir esta situação podemos ter divisões. O que me parece que vai acontecer é uma democracia controlada, com uma figura civil como Mohamed ElBaradei na presidência, a desempenhar o seu papel, mas com uma presença muito forte do Exército nos bastidores.

Independentemente dos resultados das legislativas, os jovens que começaram a revolução egípcia dizem que está inacabada. Falamos de processos de revolta que vão prolongar-se durante anos?
Temos de pensar em cada país separadamente. Escrevi um livro que vai ser publicado este mês em inglês chamado Islam and the Arab Awaken. No livro não falo de revoluções nem de Primavera Árabe, falo de revoltas. Temos de esperar para ver o que vai acontecer. As pessoas falam de um efeito dominó, primeiro a Tunísia e depois o Egipto e a seguir a Líbia e por aí fora. É muito mais um jogo de xadrez, em que temos de olhar para a região e compreender que o Egipto não é a Tunísia, é um país muito mais importante, fundamental.

Vai ser muito difícil para os Estados Unidos e para Israel aceitarem um Egipto governado pela Irmandade Muçulmana, uma organização cuja ideologia em relação ao conflito israelo-palestiniano é partilhada com o Hamas. Temos de ter isto em conta para perceber por que é que não sabemos o que vai acontecer. No Egipto, duvido que cheguemos a ter um processo revolucionário genuíno e completo.

Mas não chegará um momento em que os EUA e Israel terão de aceitar isso mesmo?
O que eles vão fazer é tentar evitar dar-lhes demasiado poder, tentando manter um Exército muito forte e apoiando outras forças que possam contribuir para neutralizar a Irmandade Muçulmana, para lhe dificultar o caminho até ao poder real. A verdade é que os líderes da Irmandade dizem que não se vão envolver nas eleições presidenciais e decidiram até concorrer só a uma parte dos lugares nas legislativas. Assim, ficam abaixo da maioria e evitam expor-se demasiado.

Como é que a juventude e os liberais que iniciaram estas revoltas se portaram tão mal nas urnas?
O problema é que eles foram muito fortes na resistência à ditadura e foram capazes de mobilizar as pessoas, mas faltava-lhes uma visão política. Agora, se olharmos para o que aconteceu na Tunísia e no Egipto, são uma tendência política marginal. Estão completamente dispersos, não têm visão política e alguns são muito ingénuos. Muitos bloggers e ciberactivistas pensavam que estar contra os ditadores dava algum tipo de legitimidade. Mas não é assim, é preciso ter uma visão política. Agora temos forças políticas antigas muito presentes. Na Tunísia, por exemplo, os únicos partidos que sobreviveram são aqueles que entendem que têm de lidar com os islamistas. E os islamistas tunisinos estão a evoluir no sentido de aceitarem um Estado civil.

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