Quando o Natal se torna num drama é preciso... desdramatizar

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Enric Vives-Rubio

Sabemos onde estamos, ou, pelo menos, onde é suposto estarmos: em época de festa, família e harmonia. Mas o dia mais do que desejado por uns é, por vezes, o mais temido por outros. A expectativa é alta, tudo tem de correr bem e todos têm de gostar, partilhar, sorrir, conviver. E se não for exactamente assim? Há Natal para além do drama? Quatro especialistas partilham truques

Mais do que dia de festa e alegria, para Andreia (nome fictício) o Natal significa mesmo família. Mas a sua não cabe propriamente num postal clássico ou numa publicidade. O tom é o das comédias que por estes dias tanto passam na televisão: Andreia não consegue deixar de temer alguma peripécia ou, no pior dos casos - que acaba normalmente por acontecer -, algum conflito. A 24 de Dezembro a família reúne-se - ou reunia-se, mas lá chegaremos... - em casa da avó, a matriarca que todos os dias se gaba dos seus nove filhos, 23 netos e alguns bisnetos. O orgulho por, aos 80 anos, continuar a manter a tradição e reunir toda a família - coisa de grandes festas, como um casamento -, impedem que a avó de Andreia perceba o que já todos compreenderam há muito tempo, mas não têm coragem de lhe dizer: é demasiada gente para apenas uma casa. Já cada um tem a sua família e os seus próprios rituais, tornando o reencontro supostamente especial numa coisa confusa e desconfortável.

O êxtase inicial, do reencontro, acaba por esmorecer quando à mesa, entre um copo e outro, a conversa se torna numa troca de palavras competitivas, em que os melhor sucedidos profissionalmente se tentam impor na família como exemplos - o que acaba por espalhar o mal-estar entre os outros. E as conversas paralelas vão aumentando de tom. Aos poucos, a festa, que alguns ainda tentam salvar, torna-se numa cadeia de discussões, a rebentar à volta dos pretextos mais insignificantes. E, de repente, o esforço que se fez para que a noite corresse bem foi esquecido e não há ninguém capaz de carregar no botão stop e de rebobinar a história para que tudo possa acontecer outra vez, melhor. No fundo, Andreia sabe que estas coisas acabam por passar. Mas juntar a família daquela forma deixou de ser uma opção. Este ano cada um janta em sua casa e só depois se encontram para a troca de prendas.

"A época natalícia envolve sempre uma grande expectativa, onde tudo tem de correr bem e de acordo com a imagem que conhecemos, onde estão todos contentes, com uma mesa farta e muitos presentes, só que na maior parte das vezes esta é uma expectativa irrealista, acabando por trazer alguma frustração", diz ao P2 Catarina Rivero, psicóloga e terapeuta familiar. "No caso das famílias que nem sempre estão juntas, o que acontece no Natal é que se obrigam a estar, porque faz parte do ritual. As pessoas vão, porque têm de ir. Ora, isto só corre bem numa família funcional, ou se forem estabelecidas regras", refere a especialista, sublinhando que estes conflitos apenas tendem a surgir nesta altura nas famílias que já têm um histórico de tensões. "São coisas que vêm de trás, a culpa não é do Natal", diz.

Um parêntese

Catarina Rivero diz também que não há uma solução universal para este tipo de conflito, mas existem pequenos truques que podem ajudar a contornar os problemas. "Acima de tudo é preciso ter jogo de cintura e sentido de humor", diz Maria Graça Pereira Alves, professora associada na Escola de Psicologia da Universidade do Minho. "Quando os conflitos do passado não estão resolvidos, há obviamente uma dificuldade maior. As famílias têm certas características, entre as quais a coesão entre os membros e a adaptabilidade. Quanto maior for isto, mais facilmente é gerido o conflito. Se sei que existem assuntos mal resolvidos, o ideal é tentar resolver isso antes do encontro, ou então vou fazer um parêntese e mentalizar-me de que não vou abordar esse assunto, porque quero que corra bem." "E a verdade é que as pessoas até se podem não dar muito bem, mas fazem um esforço", acrescenta.

Àquilo a que Maria Graça Pereira Alves chama "parêntese", Daniel Sampaio, psiquiatra e fundador da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, prefere chamar "tempo de tréguas". Afinal, diz, numa guerra há sempre uma bandeira branca e umas tréguas. "O Natal é um momento de paz e por isso é importante que as pessoas se esforcem por ficarem mais próximas umas das outras. Além disso, este é sempre um óptimo momento para se ultrapassarem os conflitos. Se isso não for possível, então apagam-se provisoriamente", diz o psiquiatra.

Mas é possível esquecer e conviver como se nada se passasse? Os especialistas acreditam que sim, mas foi a tentar ignorar, ano após ano, aquele marido chato da prima com quem cresceu, que tem a mania que sabe tudo e, ainda por cima, defende ideais de direita diametralmente opostos aos seus, que, um dia, Tomás (nome fictício) explodiu. Respeitando a tradição familiar, Tomás foi repetindo o protocolo da boa educação e, por isso, foi passando consoada após consoada a tentar ignorar o impossível, a trocar sorrisos cínicos, a fingir conversas e argumentos. Por respeito aos pais e a toda a família, forçou um quadro de pretensa harmonia que acabou por se estilhaçar no ano em que disse de uma só vez tudo o que pensava, acabando por fazer daquele o último dos natais em conjunto.

"Não vale a pena fazer destes acontecimentos um drama. As discussões também fazem parte das relações humanas e, por isso, devemos aprender com elas e torná-las em comunicação positiva. Às vezes é preciso que estes conflitos surjam para se poder dizer tudo o que se pensa e, assim, sem nos apercebermos, até deixamos para trás aquele problema que tanto nos incomodava", defende Cristina Rivero, que traça duas estratégias alternativas essenciais: encurtar as visitas e evitar assuntos que à partida possam gerar conflitos. "Há muitas outras coisas para partilhar. Não podemos fixarmo-nos nas experiências negativas, é preciso valorizar as coisas boas. O Natal deixa de ser visto como um castigo, se começarmos a ver as coisas desta forma", diz a psicóloga Leonor Falé Balancho, que defende acima de tudo o "bom senso, o respeito e a educação".

São características preciosas para recém-casados, que, sujeitos à pressão da escolha do lugar onde vão passar a consoada, precisam de se afirmar na família. Nos pais? Nos sogros? Nos avós? É preciso escolher. "Isto pode ser problemático, mas o casal terá de descobrir que tipo de casal quer ser, terá de definir regras e assumi-las", explica Maria Graça Pereira Alves, para quem a solução poderá passar por alternar, como se tem vindo a tornar comum: um ano com os pais de um, no ano seguinte com os pais do outro. "Tudo se resume à flexibilidade das pessoas."

Mas há outras hipóteses, que também cada vez mais pessoas adoptam. Desde que se casaram, Mafalda e João viajam todos os natais. Evitam pressões familiares, possíveis discussões e todo o stress associado a esta quadra. Talvez quando tiverem filhos a situação mude; porém, por enquanto, esta é a decisão. Difícil de aceitar pela família, claro, mas, como explica Maria Graça Pereira Alves, é tudo uma questão de regras. "Cada vez mais surgem rituais alternativos. As pessoas viajam, vão comer a hotéis ou até optam por passar o Natal entre amigos. A tradição continua a ser mantida, mas de uma forma diferente. E isso não será um problema, se as pessoas assumirem as suas posições e souberem lidar com as consequências."

Mas Daniel Sampaio ressalva que, "apesar de tudo, estes conflitos, que se revelam de várias formas, são uma minoria". "Há até quem adie divórcios para depois do Natal, para que não se estrague o momento", conta o psiquiatra. Segundo este especialista, adiam-se divórcios, porque se costuma dizer que o Natal é das crianças, uma data para a qual começam a contar os dias mal terminam as férias de Verão. É um dia tão esperado, que qualquer acontecimento nesta data é facilmente recordado, refere. A prenda que receberam quando tinham 8 anos e de que não gostaram nada, ou a comida que não era muito boa naquele ano, e até aquele filme divertido que passou na televisão. Não há pedaço do dia e da noite que as crianças esqueçam e, por isso, qualquer pequeno incidente terá um reflexo na sua atitude. Leonor Falé Balancho acredita que isso é motivo mais do que suficiente para unir a família num bom momento. "Acima de tudo está o amor pelos filhos e isso tem de ser mais forte do que tudo. As coisas até podem não estar bem entre os pais, mas se, em vez de presentes, se entregarem eles próprios aos filhos, as crianças vão-se sentir amadas", diz a especialista.

Catarina Rivero, por seu turno, defende que os problemas não se devem esconder das crianças. "Elas não vivem numa redoma e lidam normalmente com estas situações, percebem facilmente o que se passa e, se lhes explicarmos que estas coisas fazem parte das relações humanas, quando crescerem, tornar-se-ão mais flexíveis", explica a psicóloga.

Apesar de todos os conflitos familiares que possam surgir, enquanto existir, o Natal será sempre mais bem passado, se se sobreviver a ele sem o transformar num drama. Ou por outras palavras: "A minha família é assim, não entra na típica fotografia de Natal, mas é esta que tenho. Este ano é assim, para o outro será diferente. Logo se vê."

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