O dia em que a paciência da Índia chegou ao fim

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Legenda Rui Soares

Para Salazar, entregar Goa era como cortar uma mão. Não havia diálogo possível com Nehru, não havia nada a discutir. Ao fim de 14 anos, o primeiro-ministro indiano desistiu. Foi o fim do Estado Português da Índia

Podia ter sido ontem. Primeiro o som de um avião a sobrevoar a casa, depois, olhos já postos no céu, outro e mais outro. Eram sete da manhã e a invasão de Goa pelas forças indianas estava em marcha desde as primeiras horas do dia 18 de Dezembro. Valentino Viegas desafiou a prudência - é assim aos 19 anos - e passou o tempo na rua, sem perder um segundo do dia que mudou a História.

"Foram três aviões a jacto. E portugueses não eram porque Portugal não os tinha. Passados alguns segundos ouvi bombardeamentos." É sem esforço que Valentino Viegas, hoje historiador, traz para esta tarde de domingo, no seu apartamento em Benfica, as memórias de uma segunda-feira de 1961 desenrolada a mais de oito mil quilómetros de distância.

Havia quem tivesse captado sinais de que alguma coisa estava prestes a acontecer em Goa. Mas muitos, como ele, não acreditavam vir a assistir à entrada de tropas indianas no território.

A aldeia de Valentino, Betim, fica mesmo de frente para a capital, na outra margem do rio Mandovi. A haver batalha, pensava, seria ali diante dos seus olhos. "As pessoas juntaram-se à frente de minha casa. Um amigo foi a correr buscar o seu rádio e disse: "Esta geringonça nunca trabalha quando deve". Mal sabíamos que o posto emissor já tinha sido bombardeado." O emissor de Bambolim era a única forma de comunicação dos militares portugueses com a metrópole. Foi este o alvo das bombas que ouvira cair. "Alguns foram até ao posto da polícia para saber alguma coisa. Lá estavam tão brancos como nós."

A invasão surgiu como uma surpresa, mas o Estado da Índia não era um pequeno ponto totalmente adormecido. Valentino Viegas diz que não tem memória da satyagraha de 1954 e 1955, quando indianos vestidos de branco e com bandeiras passavam a fronteira para manifestações pacíficas a desafiar o regime (levando a um reforço militar temporário). Não por acaso, a satyagraha a Goa foi lançada no dia do aniversário da independência da Índia: 15 de Agosto.

Mas o episódio terminou com um alívio para Salazar - Goa tinha escapado aos "agitadores" - e múltiplas consequências. Acabou de vez com os contactos diplomáticos, que já eram raros, entre Lisboa e Nova Deli, e levou Portugal a sair do seu isolamento internacional e a procurar a ajuda britânica - diplomática e militar. O regime pediu uma intervenção da NATO, com base no princípio da solidariedade entre os Estados, argumentando que a sua "integridade territorial" estava "ameaçada".

Londres teve de equacionar um apoio ao seu aliado, cuja presença em Macau era benéfica para o domínio britânico de Hong Kong, aponta ao PÚBLICO a historiadora francesa Sandrine Bègue, investigadora do ISCTE, que fez a sua tese de doutoramento sobre o fim do Estado Português da Índia.

A isto juntava-se o desagrado, partilhado pelos Estados Unidos, de ver crescer a influência soviética em Nova Deli.

Mas o Reino Unido também reconhecia o "anacronismo" de uma colónia europeia em solo indiano e apelou à paciência de Nehru, para que o conflito fosse resolvido de forma pacífica.

A partir de 1958 as cartas começam a virar para Portugal. O movimento de descolonização vê o seu peso aumentar na ONU; Goa coloca em causa a liderança de Nehru dos Não Alinhados - uma grande democracia, construída na base da libertação da coroa britânica, não poderia manter uma colónia ocidental no seu território. "É o tempo do pragmatismo político", resume Bègue na sua tese.

Era por isso natural que, no final de 1960, Valentino Viegas notasse que "poderia haver coisas mais graves" a passarem-se. Atentados em postos de polícia, pequenos ataques na fronteira, acções localizadas de grupos armados, como os Freedom Fighters. Ele próprio testemunhou um desses episódios, em Betim, que acabou por vitimar o chefe do posto da polícia. Dois ou três minutos de tiroteio, os atacantes escondidos atrás de uma árvore, e "Jai Hind!","Viva a Índia!", antes de fugirem. Depois, tudo voltou ao normal, com "a rotina de sempre".

Voltemos então àquela segunda-feira de 1961. Quando se juntam vizinhos intrigados, juntam-se teorias. "Eles [polícias] devem saber alguma coisa mas não querem dizer para não nos assustarem". Ou: "Impossível haver invasão porque os EUA e a Inglaterra nunca o iriam permitir." O argumento da aliança "deixou a maior parte das pessoas descansadas".

A verdade é que até àquele dia, Valentim, como tantos outros, nunca acreditou que Goa fosse mesmo ser tomada pelas tropas indianas. "Ninguém estava com medo porque ninguém acreditava numa invasão.

Falou-se nisso mais que uma vez e nunca tinha sido concretizado. Parecia estar iminente, e depois esfumava-se. Achávamos que, como Portugal estava na NATO, a Índia não atacaria, até porque tinha uma política pacifista e isso não abria a possibilidade de uma resposta militar. Libertou-se dos ingleses sem guerra e essa ideia prevalecia."

Salazar recusa diálogo

Até ao último momento, Salazar também não acreditava que Nehru fosse lançar um ataque, revelaria depois Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1961 e 1968. E esta foi, na sua opinião, a grande falha do presidente do Conselho ao longo do conflito.

Nehru manteve-se fiel enquanto pôde ao princípio da não-violência e da necessidade de uma resolução pacífica da questão goesa. Mas para Salazar, a "questão goesa" pura e simplesmente nem existia, diz Bègue. "E por isso não havia diálogo... Nunca reconheceu a Índia como um verdadeiro parceiro. Qualquer pressão que fizesse sobre o Governo indiano seria através do Reino Unido."

Para a historiadora, o maior erro de Salazar foi "não ter feito um referendo em 1946", quando alguns goeses quiseram aproveitar o impulso independentista da Índia. O resultado seria a favor de Portugal, porque havia um domínio "de uma elite goesa" ligada aos portugueses, e "o medo de absorção da cultura goesa pelo estado de Maharashtra", que a propaganda portuguesa explorou o mais que pôde.

A estratégia de Salazar passava por uma intensificação da propaganda, "a chave do processo todo", comenta ao PÚBLICO Maria Manuel Stocker, autora do livro Xeque-Mate a Goa, o princípio do fim do império português. "O investimento no marketing político deve ter atingido o auge nesta altura", com uma "manipulação do imaginário português" para construir a sua "estratégia de vitimação". "Não mandaram mais armas [para Goa]; todo o investimento feito foi para dar mais dinheiro às embaixadas para pagarem a jornalistas para irem testemunhar o banho de sangue". A tragédia "talvez gerasse na ONU a justificação para uma condenação" internacional.

Bègue reforça: "Não havia resposta militar possível, por isso Salazar teve de se centrar na frente diplomática e ideológica." A guerra em Angola já tinha arrancado no início do ano e era lá que se concentravam as energias - e a força bélica - do regime; o gigante indiano tornava qualquer investimento em Goa num desperdício.

"Vitoriosos ou mortos"

A 14 de Dezembro, Salazar envia dois telegramas ao general Vassalo e Silva, o governador português. No segundo afirma: "É-nos impossível prever se a União Indiana atacará ou não dentro de pouco territórios desse estado." Refere a "grande desproporção" entre "as forças de ataque" e as portuguesas, e diz que é preciso "organizar a defesa pela forma que melhor possa fazer realçar o valor dos portugueses, segundo velha tradição na Índia. É horrível pensar que isso pode significar o sacrifício total, mas recomendo e espero esse sacrifício como única forma de nos mantermos à altura das nossas tradições e prestarmos o maior serviço ao futuro da Nação." E adverte, com uma frase que se tornou tristemente célebre: "Apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos."

A 17 de Dezembro, Lisboa avisa todas as suas missões diplomáticas que está iminente um ataque. "O Governo confia que todos saberão cumprir o seu dever." Salazar enganava-se na assunção de que a luta seria até à última gota de sangue.

No dia 17, Vassalo e Silva manda retirar as forças militares e policiais junto dos postos fronteiriços para evitar actos que pudessem ser encarados pelos indianos, ali próximos, como uma provocação. À uma da madrugada de 18 de Dezembro de 1961, Nova Deli lança a operação Vijay ("Vitória") em Goa, Damão e Diu.

O Exército indiano recebe ordens para entrar em Goa como "protector" contra a repressão do colonialismo português. A operação teria de ser vista como uma libertação e não uma agressão. As chefias militares também são instruídas para evitar o banho de sangue que Salazar apregoava (e convidara até jornalistas estrangeiros para o testemunharem para todo o mundo). E, já agora, esta seria uma oportunidade para "mostrar o poder do Exército indiano e a modernização das suas forças à China", com quem a Índia já estava em conflitos fronteiriços, diz Bègue.

É por isso com alguma lentidão que os soldados indianos avançam, dando tempo aos portugueses para recuar. As tropas entram em três pontos: a partir de Savantadi, no Sul, para o Norte; de Karwar, no Norte, para o Sul, e de Belgaum, no Sudoeste, para Sanqualim e Pondá, antes de entrar em Panjim e de tomar o porto de Mormugão.

Mesmo com os aviões a jacto por cima das suas cabeças, havia dúvidas a rondar Valentino e os vizinhos: os voos serviriam apenas para "pressionar o Estado português para que abrisse negociações e resolvesse a coisa pacificamente", concluiu-se na roda à frente de casa. A calma que se seguiu parecia dar-lhes razão. "Cada um foi à sua vida: para casa ou passear, ninguém ligou mais. Até que alguém disse: "O Afonso de Albuquerque está a combater." E um amigo meu: "Tu deves é estar doido, o Afonso de Albuquerque morreu há 400 anos!"."

A informação de que o navio português estaria em confrontos com a Marinha indiana levou Valentino a pegar na bicicleta e ir com um amigo até aos Reis Magos, para poder ver o que se passava a partir de um ponto mais alto. "Parecia um filme autêntico, mas à luz do dia. Custava acreditar que fosse guerra. Vimos o [barco de aviso] Afonso de Albuquerque a zarpar a grande velocidade - nunca pensei que conseguisse andar tão depressa - e a ser atacado por barcos indianos, até que o navio encalhou. Hoje sabe-se que foi de propósito, para o transformar num ponto de defesa."

Há quem defenda que simplesmente seria inútil continuar a lutar. Este foi mesmo o combate mais marcante de toda a "resistência" portuguesa. Uma "peça de museu" a desafiar cinco navios indianos. Durou quatro horas e acabou com o comandante António da Cunha Aragão ferido - seria depois visitado no hospital pelo almirante indiano B.S. Soman, que o felicitou pela sua bravura.

36 horas

"Quando voltei para casa vi uma bojarda cair no rio Mandovi. Estavam a fazer cálculo de tiro. Nunca atiraram contra residências ou contra o Palácio do Governo", conta Valentino. "Nesta altura, já estava convencido que a situação era mesmo séria." "À tarde um senhor veio dizer que em Mapuça já não havia tropas portuguesas."

Nessa altura, já não se via vivalma na rua. "Às 18h ouvimos um ruído; a casa ficava a 500 metros do posto da polícia e fomos lá ver - não era coragem, era mesmo criancice. Estava um silêncio completo, até os cães vadios tinham desaparecido. Na polícia também não estava ninguém. Mas havia um barulho a aproximar-se. Fomos ao cais. Veio um jipe, depois um tanque de guerra, um camião com tropas, a andar devagar, virados para nós. Passaram à nossa frente." Esperavam algum confronto, quem sabe teriam já insultos prontos a lançar aos invasores. "Não nos ligaram nenhuma! Nem sequer olharam para nós; era como se não existíssemos. Nem vinham com armas apontadas."

A operação ficou terminada às 18h de 19 de Dezembro. Em 36 horas chegavam ao fim os 450 anos do poder português em Goa. Não houve sangue a correr nas ruas, como a imprensa em Lisboa noticiava (cada lado registou duas dezenas de vítimas). Também "não houve manifestações de entusiasmo nem de protesto", recorda Valentino Viegas. "Só vi uma pessoa a dizer "Viva a Índia!" e a abraçar os militares" indianos.

"Nada nos 14 anos de independência entusiasmou tanto as pessoas na Índia como a libertação de Goa. Não tenho dúvidas nenhumas da total justificação para o uso da força contra Portugal", disse o primeiro-ministro aos jornalistas no final de Dezembro. Para Nehru, Goa era "um pedaço de história congelado".

Para Salazar, o Estado Português da Índia era intocável e fazia parte "da estratégia de manutenção do próprio regime", diz Stocker. Não houve um momento de hesitação porque "não faria sentido político" desistir de Goa. "O regime estava assente no Acto Colonial. Não fazia sentido deixar cortar uma mão." Mesmo que alguns militares tivessem "a noção que Goa era indefensável".

A 3 de Janeiro de 1962, o presidente do Conselho teve de pedir que lhe lessem um discurso na Assembleia, porque estava afónico: uma metáfora viva da derrota. Denunciou as "contradições" de Nehru, que era "no fundo, um racista e um antiocidental, pacifista em teoria e agressor na prática". Disse que a tomada de Goa "representa um dos maiores desastres da nossa história e um golpe muito fundo na vida moral da Nação". Era o princípio do fim do império colonial português.

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