Ética. Transparência. Espírito público É o que faz falta na política?

Fotogaleria
daniel rocha
Fotogaleria
daniel rocha

Com o agravar da crise multiplicam-se as acusações à má gestão e à negligência dos governantes. O P2 foi ouvir especialistas e todos dizem que o comportamento político só pode ser sancionado pelo voto e que quando os políticos cometem crimes já são abrangidos pela lei. Mas há quem lembre que há códigos éticos de conduta que têm de ser reavivados.

Na quarta-feira passada, o Parlamento debateu mais um conjunto de diplomas, desta vez propostos pelo PS, com o objectivo de regulamentar a vida pública e política e ultrapassar aquilo que é visto pela opinião pública como um endémico problema de corrupção e de gestão indevida da coisa pública, ou seja, dos bens públicos. Em causa estão propostas de aprovação de um Código de Ética para as entidades públicas e de um apertar de critérios de entrega e fiscalização de registo de interesses por parte de toda a administração pública e política até ao lugar de subdirector-geral, incluindo os gabinetes da presidência, do governos e das autarquias.

Um pacote legislativo apresentado como uma tentativa de aumentar a transparência da vida política e pública, que surge como mais uma resposta à ideia que tem crescido devido à crise económica de que é preciso responsabilizar criminalmente os políticos que geriram mal os dinheiros públicos. O P2 foi ouvir um conjunto de especialistas para saber se se justifica, e como deve ser feita, esta criminalização de políticos pela sua acção governativa. E a criminalização da gestão política não é defendida nem pela juíza-conselheira do Supremo Tribunal de Justiça e antiga juíza-conselheira do Tribunal Constitucional, Maria dos Prazeres Beleza, nem pelo catedrático em Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Manuel Costa Andrade, nem pelo professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, actualmente a trabalhar como investigador convidado na Universidade de Cambridge, Tiago Duarte, nem pelo antigo procurador-geral da República e juiz no Tribunal de Justiça da União Europeia, José Narciso da Cunha Rodrigues.

Já Adriano Moreira, antigo líder do CDS e ministro do Ultramar e da Educação no Estado Novo, declarou ao P2 que "não existe ordenamento jurídico democrático que não pressuponha um paradigma de concepção do mundo e da vida, que o antecede". Mas foi peremptório em afirmar: "Depois, ninguém está acima da lei. Um dos maiores riscos ocidentais é o relativismo instalado, que afecta o referido paradigma, e a debilidade das lideranças."

Maria dos Prazeres Beleza começa por afirmar que "a responsabilidade criminal é o último grau de responsabilidade, quer seja política ou não política. É o último recurso". E insiste: "Aprendi com o Direito Criminal e o Constitucional que as condutas só são criminalizadas quando não há recurso". Lembra ainda que "uma lei penal aprovada agora só vale para o futuro". "No presente, ou a lei que existe serve ou não vale a pena pensar em criminalizar condutas anteriores, há princípios civilizacionais que não o permitem", conclui.

Além disso, a juíza-conselheira do Supremo Tribunal de Justiça lembra que "há uma lei que foi pensada para titulares de cargos políticos". Admite que, desta, "muitas vezes se diz que é demasiado vaga para as exigências criminais que envolve", e reconhece que não se recorda "de ter sido utilizada, nem mesmo discutida e questionada". Mas frisa que "para que qualquer acto de governação, ou não, seja sujeito a lei criminal é preciso que haja dolo". Isto é, sublinha Maria dos Prazeres Beleza, que "não chega negligência, é preciso fazer prova de que o acusado agiu criminalmente".

Por sua vez, Cunha Rodrigues sustenta que "os políticos, se praticam crimes, estão sujeitos como qualquer pessoa aos códigos e às leis". "Em Portugal há crimes de responsabilidade que são para funções públicas e crimes de gestão política", sustenta.

Também Costa Andrade garante que "quanto à responsabilidade criminal já há na lei criminal preceitos que são aplicados quando os políticos cometem crimes no exercício das suas funções". Este catedrático de Direito Penal advoga que "fazer leis só para o futuro é muito complicado". E frisa também que "a introdução, que seria sempre problemática em democracia, de criminalização de actos de gestão política não teria efeitos retroactivos, isso não é permitido pela Constituição e civilizacionais". Lembrando a recente tentativa de legislar sobre enriquecimento ilícito que abortou no Parlamento porque o CDS defende que seja só para políticos e altos cargos públicos e o PSD quer que o novo sistema seja aplicado a todos, Costa Andrade questiona: "Como se formula tal lei? Veja-se o enriquecimento ilícito, ainda não há consenso em torno disso."

Costa Andrade defende que "é mais sensato aplicar as leis que temos". E conclui: "Decerto que há actos de corrupção, tráfico de influências, favorecimento. Por que não procurá-los e puni-los, em vez de nos desculparmos com leis que não temos? Por que não nos agarrarmos às que temos?"

No mesmo sentido vai a opinião de Tiago Duarte, para quem "os governantes desempenham o interesse público e já estão sujeitos à apreciação dos tribunais. Este professor da Universidade Nova de Lisboa explica que "a apreciação jurídica não é global, é micro". Ou seja, "não basta dizer que aquele político fez mal, é preciso ver acto administrativo a acto administrativo, contrato a contrato, se houve ou não abuso de poder, se houve ou não tráfico de influências". E conclui que "uma coisa é a apreciação impressionista, outra é a análise da lei". Tiago Duarte lamenta que os cidadãos comuns "não percebam que uma coisa é criminalizar os políticos em geral, outra é criminalizar actos de governação", os quais "já estão criminalizados". Lembra: "Quantas vezes se vê os tribunais anularem actos de governação?"

Guardiões do regime

Por outro lado, Maria dos Prazeres Beleza reafirma que "se se pretende reformular a lei, é preciso ter consciência de que só vale para o futuro". E adverte: "é preciso pensar que é perigoso discutir em tribunal a gestão política. As decisões políticas passam por muita gente, o que torna extremamente difícil a deslocação deste debate para o âmbito penal".

Admitindo que "possa haver situações limite que justificassem a revisão da tipificação criminal", Maria dos Prazeres Beleza reafirma que "é muito difícil criminalizar a gestão política", para mais porque esta "responsabilização política em Portugal é diluída pelo sistema de eleição em listas, o que torna difícil a responsabilização". Mas lembra que há vários patamares de fiscalização e de sanção política para além do voto: "Há vários guardiões do regime, há vários graus de fiscalização política para serem accionados, a Assembleia da República, o Governo, o Presidente da República."

Já Tiago Duarte vai mais longe e critica abertamente a facilidade com que a opinião pública abraça a ideia de que é preciso punir os políticos pela má gestão do Estado. Este professor de Direito Constitucional da Universidade Nova de Lisboa afirma que "é preciso, nas alturas de crise, evitar cavalgar ondas de populismo". Explica: "Uma coisa é mudanças políticas e de políticas de Estado e isso é a democracia a funcionar". Nesse contexto, diz que "é normal surgirem em democracia pessoas diferentes, com ideias diferentes e que tomem medidas diferentes". E em consonância com isso "qualquer pessoa avalia essas políticas e exerce o direito de voto".

O constitucionalista da Universidade Nova ataca mesmo a "tentativa de encontrar soluções fáceis para problemas difíceis", que vê como "muito portuguesa", do tipo: "Se há crise é preciso encontrar alguém para responsabilizar." E garante que "não se pode criar uma ideia de que há criminosos na governação, as coisas não são assim". Para advertir: "Este ataque sistemático aos governantes está a custar muito ao país, as pessoas afastam-se da política e retiram da sua cabeça a possibilidade de exercer cargos políticos. Leva a que as pessoas recusem a vida política, porque ser político é ser apontado a dedo como potencial criminoso."

Entender próximo mas diverso tem Cunha Rodrigues. O antigo procurador-geral concorda que "o Direito Penal é o último rácio" e que "primeiro está o voto", pelo que "não se deve usar a criminalização como padrão de sancionamento dos políticos", pois a "sanção da política deve ser política e esta é o voto". Além disso, Cunha Rodrigues considera que a lógica da defesa da criminalização dos políticos "tem como consequência rotas de colisão entre poder judicial e poder político sem ganhos, para ninguém".

No entanto, Cunha Rodrigues considera que há campo para actuar na regulação dos comportamentos políticos na gestão do Estado. "Deve-se ir criando regras de prevenção, exigências de transparência, fiscalização do Tribunal de Contas, declarações de interesses", defende o ex-procurador-geral, sublinhando que "há normas que, bem aplicadas, evitam abusos". E concluindo: "Deve procurar desenvolver-se a ética na política e a regulação do compromisso ético."

Igualmente Costa Andrade considera que mesmo sem mexer na lei e sem criminalizar os comportamentos de gestão do Estado, há campo para actuar de forma a tentar melhorar a situação em Portugal. Diz este catedrático de Direito Penal que "a responsabilização política concretiza-se e actualiza-se no Estado de Direito Democrático através da perda da confiança política do eleitorado" e que "não há sistema penal que possa punir más políticas na gestão do Estado, só os eleitores".

Todavia, Costa Andrade é peremptório a afirmar que há muito a fazer. "Há condutas que podem ser seguidas sem que se recorra a criminalização, há questões de ética política que deviam estar regulamentadas", defende o catedrático de Direito Penal da Universidade de Coimbra, explicando que "o mais importante é actualizar a consciência ética das pessoas, a dedicação à causa pública e à ética de Estado".

Costa Andrade defende ainda que "pode ser revista a forma como se forma o pessoal político". Isto porque "a democracia é feita com os partidos, mas está tudo muito dependente dos partidos e hoje os partidos são escolas de carreiras e de empregos" e "as pessoas encaram a política não como uma missão, mas como um modo de vida e de adquirir privilégios", quando a "política deve ser dedicação pública, nobreza, entrega." E remata, questionando: "Quantos estão na política hoje com carreiras políticas feitas antes ou paralelamente? Não seria de se ir para a política depois de carreiras feitas e não para fazer uma carreira?"

Sugerir correcção