O Natal improvável de Sartre fala da liberdade

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O texto é de Jean-Paul Sartre, o tema é a liberdade, mas o pretexto é improvável, se se pensar que o autor é o filósofo existencialista francês: o Natal e o nascimento de Jesus. Barioná, título da peça, foi redigida e representada, pela primeira vez, no campo de prisioneiros Stalag 12D, em Tréveris (Alemanha), em 1940, onde Sartre estava preso, em plena II Guerra Mundial.

Entre os detidos, havia quatro padres por quem Sartre nutria um grande respeito - e vice-versa: Marius Perrin, Henry Leroy, Pierre Boisselot, capelão do campo, e o jesuíta Maurice Espitallier. Foram eles que propuseram juntar o sagrado e o profano: "Porque não ressuscitamos a tradição dos mistérios [de Natal], nos quais todos podem participar de alguma maneira?"

Marius Perrin contaria mais tarde: "Depois de Barioná, tudo mudou. Foi como se Sartre tivesse introduzido um "vírus". Foi como se, graças a ele, "um longo período de incubação", em que estivemos impedidos de nos revoltar, tivesse finalmente chegado ao fim." A peça foi representada por prisioneiros e vista por cerca de dois mil detidos em cada uma das três apresentações (24, 25 e 26 de Dezembro).

Jean-Paul Sartre esclareceria, anos depois, que o texto, "conseguindo esquivar a vigilância do censor alemão, através de símbolos simples, se dirigia aos [seus] companheiros de cativeiro". E acrescentava: "Falando-lhes desde a sua condição de prisioneiros, vi-os de repente tão realmente silenciosos e atentos que compreendi o que o teatro tinha de ser: um grande fenómeno colectivo e religioso."

Barioná conta a história de um chefe de uma aldeia da Judeia do século I, nas proximidades de Belém, onde Jesus nasceria. O ocupante romano tinha aumentado os impostos e Barioná exorta os aldeãos a deixar de fazer filhos. Mas Sara, a sua mulher, anuncia-lhe que está grávida, ao mesmo tempo que chega à aldeia a notícia do nascimento do messias.

O frio e teimoso Barioná acaba por mudar de ideias e, "numa derradeira cena comovente", como diz Henry-Levy, pede a Sara que, "mais tarde", quando o filho sentir "um certo sabor a fel no fundo da sua boca", ela lhe diga: "O teu pai sofreu tudo isso que tu sofres agora e morreu na alegria". (...) Na alegria! Sou livre, tenho o meu destino nas minhas mãos. Vou contra os soldados de Herodes e Deus vem ao meu lado. Sou leve, Sara, leve. Ah, se soubesses o quão leve sou! Oh, Alegria, Alegria! Chora de alegria."

Desaparecido durante anos, com a representação proibida por Sartre por muito tempo, só em 2005, no centenário do nascimento do filósofo, o texto desta primeira peça de teatro de Sartre foi finalmente publicado, pela Gallimard. Segundo o filósofo francês Bernard-Henry Lévy, Barioná representou "o nascimento de um segundo Sartre, efectivamente messiânico, optimista, comprometido num sentido novo do termo e que volta subitamente as costas à bela metafísica pessimista que era como um salvo-conduto, uma vacina, contra os desvarios políticos".

O próprio Sartre ironiza com a sua incursão no tema do Natal, anos depois, numa carta a Simone de Beauvoir: "Devo ter talento como autor dramático: escrevi uma cena do anjo que anuncia aos pastores o nascimento de Cristo, que deixou a todos sem respiração (...) inclusivamente a alguns saltaram-lhes as lágrimas."

Barioná - pelo Teatro do Ourives

Encenação Júlio Martín da Fonseca. Lisboa, Teatro da Trindade, de quinta a sábado, às 21h00, domingos às 16h00; até 23 de Dezembro

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