Dança atemporânea

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Tempo Vicino dr
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Ballet Nacional de Marselha

Le Trouble de Narcisse (2009), Frederic Flamand

Herman Schmerman, Pas de Deux (2007) William Forsythe

Tempo Vicino (2009), Lucinda Childs

Centro Cultural de Belém, Lisboa. 29 de Novembro, 21h. Sala cheia.

A presença num mesmo serão de autores de nomeada na dança actual, como Lucinda Childs (n.1940) e William Forsythe (n.1949), atestou a vinda do Ballet de Marselha (BM) como ponto alto neste final de ano.

Le Trouble de Narcisse, do belga Frederic Flamand (n.1946), director da companhia desde 2004, propunha transpor a mítica de Narciso para uma contemporaneidade marcada pelo culto do corpo, a imagem e a realidade virtual. Viés no tempo a que não seria estranho o sortilégio inicial da peça: atrás de cinco painéis translúcidos ao fundo do palco, silhuetas replicavam, como espelhos, as linhas clássicas do movimento dos intérpretes em cena, ou delas se desconectavam em variações diferidas, como insólitos confrontos entre as respectivas personas (concepção dos arquitectos Diller & Scofidio). O multimédia acresceria patamares de ilusão aos elos entre o real e o seu reflexo: câmaras captavam expressões da face, detalhes do corpo; projectavam imagens contrárias à gravidade ou acções motoras materialmente impossíveis. Contudo, a tentativa de associar ofuscação narcísica e "corpo virtual" (o da dança e o do mundo de hoje) iria sucumbir a uma estratégia aditiva díspar: um filme sobre o quotidiano (o afã de um supermercado, a carga policial sobre uma manifestação, ginásios massificados) ou as performações sobre a alienação futebolística, não justificavam a sua aposição a trechos coreográficos puramente formais, amiúde a rasar a monotonia.

Em... Pas de Deux, Forsythe construiu, em 12 intrépidos minutos, um dueto a alternar com curtos solos numa cena vazia (música do seu cúmplice Thom Willems). O vocabulário ballético, levado a extremos de velocidade e imprevisíveis síncopes, no limite do desempenho físico. Mas a dança sai e regressa a esse registo, com fluência de mestre, truncando-o de gestos comuns e atitudes de abandono. Quando o par surge de curto saiote amarelo vivo, divertida alusão aos tutus neoclássicos, há uma subtil declaração de Forsythe sobre a sua filiação na longa genealogia que garantiu, de Petipa a Balanchine, a expansão do idioma do ballet, do século XIX para o XXI.

Em Tempo Vicino, Childs sinaliza um percurso onde, ao fim de quase cinco décadas, e sob a sombra tutelar de Cunningham, a radicalidade da dança pós-moderna dos sixties americanos se converteria no fabuloso apuramento abstracto com que revisita o classicismo. Oito bailarinos envergando malhas vermelhas desempenharam com brio absoluto a enorme exigência técnica de uma peça em três límpidas secções, a seguirem, precisas, a partitura de John Adams. Uma verdadeira cascata cristalina de variações sobre padrões coreográficos desvelaria, pouco a pouco, puras linhas arquitectónicas de espaço e tempo, uma poética fundada num rigor composicional supremo.

O tríptico fez jus ao desígnio do BM: operar entre a "memória e a inovação". Porém, entre a tecnologia e as vicissitudes da individualidade (de Flamand) e a sua progressiva dissipação (em Forsythe e Childs), foram a depuração e o saber-compor as combinações ganhadoras de um serão em crescendo. A demonstração da vitalidade e autodomínio de uma dança que não prescinde da aura virtuosa da forma, e insiste em fazer perdurar, sem outro discurso de legitimação que não o do próprio corpo, uma interlocução atemporal com os dias que correm.

Luísa Roubaud

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