A cientista que mudou as regras da evolução da vida

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Nos anos 60, pôs em causa um dos pilares da teoria da evolução e foi ridicularizada pelos seus pares. Hoje, já ninguém se ri: ela tinha razão. Grande defensora da célebre Teoria de Gaia de James Lovelock, segundo a qual a Terra é um sistema que se auto-regula para se perpetuar

Lynn Margulis, a bióloga norte-americana que mudou a forma de encarar a evolução das espécies vivas na Terra, morreu no passado dia 22 de Novembro na sequência de um acidente vascular cerebral. Tinha 73 anos. Ficará na história sobretudo pela sua teoria da "simbiogénese", que propôs pela primeira vez em 1966 e que desafiava frontalmente a teoria dita "neodarwinista" da evolução.

Segundo neodarwinistas, como os conhecidos Richard Dawkins ou Stephen Jay Gould, os motores da evolução dos organismos vivos são a variabilidade genética introduzida de geração em geração por mutações espontâneas e aleatórias, e a selecção natural que, entre os diversos mutantes, favorece a sobrevivência dos mais aptos. Margulis não acreditava totalmente nesta visão das coisas. Pensava que era necessário remontar a vários milhares de milhões de anos atrás, até às bactérias, para perceber como tinha evoluído a primeira célula dotada de um núcleo.

Este era para Margulis o evento fundador que a seguir tinha permitido o aparecimento de organismos multicelulares cada vez mais complexos, culminando nos seres humanos. Era assim que a história da evolução da vida na Terra teria começado - e não, como postulavam os neodarwinistas, devido a mutações espontâneas, mas através de fusões de duas ou mais bactérias, num processo de simbiose em que o organismo resultante era muito mais do que a soma das suas partes. A selecção natural, essa, teria agido, assim, não sobre mutações espontâneas, mas antes sobre as variantes decorrentes dessas fusões de organismos mais simples, dessa "intimidade entre estranhos", para usar as palavras da declaração emitida, por ocasião da morte de Margulis, pela Universidade do Massachussetts, onde ensinava e trabalhava desde 1988.

Um forte indício em favor desta teoria simbiótica da origem das células eucariotas (dotadas de um núcleo, ao contrário das bactérias) é a presença no seu interior de estruturas chamadas "mitocôndrias", que funcionam como as baterias das células (do nosso corpo e das de todos os animais). As mitocôndrias possuem um ADN próprio, que para mais é transmitido à descendência apenas pelas mães, enquanto o ADN do núcleo provém de ambos os progenitores. Para Margulis, isso significa que em cada célula eucariota existem duas genealogias - e que, a dada altura da evolução, estruturas intracelulares como as mitocôndrias eram microrganismos autónomos.

Hoje em dia, já ninguém nega a realidade do mecanismo proposto por Margulis. Mas quando ela descreveu a sua teoria pela primeira vez em 1966 - e como relata num capítulo do livro The Third Culture, de John Brockman (editor, agente literário e fundador do site edge.org), publicado em 1995 -, o seu artigo foi recusado por umas 15 revistas científicas. "O meu artigo lidava com a origem de todas as células excepto as bactérias (a origem das bactérias sendo a origem da própria vida). (...) Mas na altura, eu não era ninguém", explica Margulis. O artigo acabaria, contudo, por ser aceite em 1967 pelo Journal of Theoretical Biology, com grande repercussão.

O capítulo dedicado a Margulis no livro de Brockman dá-nos, aliás, a dimensão da veemência e frontalidade desta cientista, características que lhe permitiram, apesar da controvérsia gerada pela sua teoria, continuar a lutar pelas suas ideias. O próprio Brockman faz notar, num curto texto de homenagem publicado no edge.org na passada quarta-feira: "Ela era impossível. Ela era maravilhosa."

"Eu sou darwinista"

Eis algumas frases desse capítulo, onde Margulis fala dos seus "rivais" neodarwinistas (o facto de cada interveniente fazer comentários sobre os outros era uma das originalidades do livro de Brockman): "O meu trabalho é na área da biologia da evolução, mas com células e microrganismos. Richard Dawkins, John Maynard Smith, George Williams, Richard Lewontin, Niles Eldredge e Stephen Jay Gould (...) lidam com um conjunto de dados que está desactualizado há três mil milhões de anos. (...) Ignoram quatro dos cinco reinos da vida. Os animais são apenas um desses reinos. (...) Pegam num interessante, mas pequeno capítulo do livro de evolução e extrapolam-no para a enciclopédia toda. (...) Não estão enganados, apenas imensamente mal informados. (...) Em que acho que são ignorantes? No que respeita à química em primeiro lugar, porque a linguagem da biologia da evolução é a linguagem da química, e a maior parte deles ignora a química."

E mais à frente: "Penso que a tradição neodarwinista da genética das populações é como a frenologia (...) Retrospectivamente, vai parecer ridícula porque é ridícula. (...) Embora seja uma grande admiradora dos contributos de Darwin e esteja de acordo com a maior parte da sua análise teórica - eu sou darwinista -, não sou neodarwinista. (...) Enquanto Gould e outros tendem a acreditar que as espécies só podem divergir umas das outras, eu afirmo que (...) as espécies formam novas entidades compósitas via fusões e junções."

Apesar da relativa rudeza destas palavras, Dawkins, numa citação no fim do mesmo capítulo, diz ser um "grande admirador" de Margulis, cujo trabalho foi "um dos grandes avanços da biologia da evolução do século XX".

Lynn Margulis nasceu em Chicago a 5 de Março de 1938. Estudou na Universidade de Chicago, onde se licenciou com a precoce idade de 18 anos. A seguir, fez um mestrado de Genética e Zoologia na Universidade do Wisconsin e um doutoramento em Genética na Universidade da Califórnia. Antes de se instalar definitivamente na Universidade do Massachusetts, trabalhou 22 anos na Universidade de Boston. Casou-se em primeiras núpcias com o famoso cosmologista Carl Sagan e a seguir com o químico Thomas Margulis. Teve filhos com ambos e divorciou-se de ambos.

Foi também uma grande defensora da Teoria de Gaia, da autoria do cientista britânico James Lovelock, que estipula que a Terra é ela própria um sistema que se auto-regula para se perpetuar. Lovelock chegou a argumentar que a Terra era de facto um organismo vivo, mas Margulis nunca concordou com esta versão da teoria.

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