Timidamente, vamos procurar sinais de vida

O maior e mais sofisticado robô explorador de sempre parte esta tarde para o planeta vermelho. O Curiosity tem instrumentos inéditos, uma forma de aterragem nova e vai explorar uma cratera às camadas.

Há uns 3000 milhões de anos, quando a vida estava a despontar no terceiro planeta rochoso a contar do Sol, também no quarto planeta, igualmente rochoso mas menos denso e com metade do tamanho da Terra, as condições eram propícias à vida: Marte era húmido e quente. Mas terá havido vida marciana? É esse mistério que a NASA se propõe estudar, com o novo robô cientista que, se tudo correr bem, enviará esta tarde para Marte, para começar a trabalhar a partir de Agosto de 2012, seguindo a pista da água.

Curiosity foi o nome simpático com que foi baptizado o novo robô geólogo que a agência espacial norte-americana planeia enviar pelas 15h00 de Lisboa para Marte, também conhecido como Mars Science Laboratory. Isso, se não for apanhada pela célebre má sorte que costuma atacar as sondas enviadas para Marte - a última reclamada por este azar que colhe 60% das missões enviadas para o planeta vermelho foi a Fobos-Grunt russa, a 8 de Novembro, que se ficou pela órbita da Terra.

Aparentemente, o Curiosity é igual ao Spirit e ao Opportunity, os robôs gémeos que chegaram ao planeta vermelho em 2004 - com uma missão de três meses que se transformou em sete anos de trabalho, com alguns engasgos, quando os painéis solares ficavam cobertos do pó que dá a alcunha colorida a Marte. Mas no Curiosity, que custou 2500 milhões de dólares (cerca de 1860 milhões de euros) e é a mais cara missão enviada a Marte, tudo é maior e mais ambicioso.

O Spirit e o Opportunity eram do tamanho de carrinhos de golfe. Já o Curiosity pesa 900 quilos e é do tamanho de um utilitário desportivo - aquilo a que os norte-americanos chamam um SUV. Mas não é só o tamanho que conta: é também o mais sofisticado explorador alguma vez enviado para outro planeta.

Uma montanha mil-folhas

A sua missão será procurar indícios de que Marte alguma vez teve condições para ter vida microbiana - ou se ainda as terá. Mas o objectivo oficial não é procurar directamente vida.

"A nossa missão não é de detecção de vida, o objectivo é procurar ambientes habitáveis", esclareceu o líder da missão, John Grotzinger, numa conferência de imprensa esta semana. Daí a escolha do local de aterragem: a cratera Gale, com cerca de 150 quilómetros de diâmetro, junto ao equador de Marte.

"Fica junto a uma zona de aluvião, com várias camadas e múltiplos ambientes potencialmente habitáveis", explicou Grotzinger. As camadas ricas em argilas e sulfatos formam a base de uma montanha de cinco quilómetros - mais alta que o Kilimanjaro. "É literalmente uma montanha de camadas. É um espantoso repositório da história de Marte", comentou Grotzinger, citado pela Reuters. "É como ler um livro."

Esta montanha tipo mil-folhas manterá o Curiosity ocupado durante os 23 meses que se espera que dure a sua missão. Para a explorar, leva dez instrumentos científicos, alguns verdadeiramente espectaculares.

O Curiosity, disse John Grotzinger à revista Scientific American, usa uma tecnologia superior à dos exploradores anteriores: por exemplo, as duas câmaras montadas no mastro que se ergue acima do corpo do rover, como o periscópio de um submarino, funcionam como os seus olhos de alta resolução. Obterão imagens stereo de alta resolução e a cores, e sequências vídeo. Outra câmara, montada no braço articulado, obterá grandes planos de rochas, solo e gelo com um detalhe mais fino do que um fio de cabelo.

Um laser vaporizador

Este é o primeiro aparelho enviado para Marte que terá capacidade para perfurar - até cinco centímetros de profundidade - e recolher para análise amostras de pedras e solo.

E consegue fazer algo que parece saído de um filme de ficção científica: dispara um laser até sete metros de distância e que é capaz de vaporizar rochas. O interesse está em analisar o espectro de luz do gás ionizado que liberta, para determinar quais as moléculas de que são compostas, com um espectrómetro de raios-X.

Através destes instrumentos, os cientistas, na Terra - todas as comunicações entre os dois planetas, na altura em que a sonda lá chegar, a 6 de Agosto de 2012, terão um atraso de 13,8 minutos -, decidirão se valerá a pena mandar o rover avançar até à rocha alvejada com o laser ou virar-se noutra direcção.

O tempo é precioso, pois, apesar de toda a sofisticação, o Curiosity não conseguirá fazer mais do que 200 metros por dia para explorar a cratera Gale.

SAM e os seus amigos

Um grande ponto de interesse serão as experiências feitas por um grupo de instrumentos conhecidos pela sigla SAM (a sigla amigável, em inglês, de Análise de Amostras em Marte). Estes instrumentos incluem um cromatógrafo de gás, um espectrómetro de massa e espectrómetro de laser, que serão usados para tentar identificar compostos orgânicos - ou seja, moléculas com carbono.

"Não são sinais directos de vida", disse Grotzinger. Afinal, encontram-se moléculas orgânicas no espaço interestelar. "Podem existir sem haver vida, mas a vida tal como a conhecemos não pode existir sem elas, por isso a sua presença seria um importante factor para determinar a habitabilidade de Marte", diz um comunicado de imprensa da NASA.

O Curiosity vai por isso procurar moléculas orgânicas e tentar perceber se serão de origem biológica ou não - podem vir em meteoritos, por exemplo -, medindo a relação entre diferentes isótopos de alguns elementos químicos. Isótopos são variantes com diferentes pesos atómicos de um elemento, como o carbono 12 e o carbono 13. Medir estes isótopos pode ajudar a esclarecer o mistério do metano em Marte.

Foram detectadas bolsas de metano em torno do equador, e este gás tem uma vida curta na atmosfera (cerca de um ano). Para ter uma presença duradoura, precisa de se ir renovando - e a sua origem é um mistério, embora a quantidade na atmosfera seja reduzida (10 partes por mil milhões, muito pouco se compararmos com as 1800 partes por mil milhões da Terra).

Vulcões activos não se conhecem. Fontes biológicas - vacas com aerofagia em Marte? Bactérias que expelem metano? - também não. Mas as possibilidades, sejam elas geológicas ou biológicas, excitam os cientistas.

Uma forma de começar a resolver o mistério será estudar a proporção de carbono 12 e carbono 13 em Marte, pois pelo menos na Terra os organismos que metabolizam metano preferem a forma mais leve de carbono. O Curiosity vai equipado para o estudar.

Mas, então por que é que, apesar destas experiências que parecem aproximar-se da busca de vida, o Curiosity não vai oficialmente à procura de vida?

"A NASA não pode gastar 2500 milhões de dólares dos contribuintes para procurar vida em Marte e depois dizer "afinal não encontrámos - obrigada e adeus", disse à revista New Scientist Michel Cabane, da Universidade Pierre e Marie Curie, em França, e líder da equipa por trás de um dos equipamentos que procurará moléculas orgânicas.

Nuclear a bordo

Para cumprir as expectativas, o Curiosity tem de conseguir chegar a Marte - inteiro e funcional. "Esta é a missão mais complicada que já alguma vez tentámos colocar na superfície de Marte", adiantou Peter Theisinger, o coordenador da ligação do Mars Science Laboratory com o principal parceiro privado do projecto, a Lockheed Martin.

Para além da complexidade das experiências, há outros factores a tornarem-na única. Um deles é ter uma bateria nuclear, em que um gerador termoeléctrico produz electricidade a partir do calor gerado pelo decaimento radioactivo de 4,8 quilos de plutónio 238.

Não se trata de um reactor; o plutónio 238 é um isótopo artificial que decai tão rapidamente que emite imenso calor, directamente transformado em electricidade, explica o New York Times. O plutónio 238 emite partículas alfa, fáceis de bloquear, e este material radioactivo não pode ser usado como bomba. Mas é tóxico. Apesar disso, a NASA garante que é muito seguro e tem uma longa utilização no espaço, desde as missões Apolo, que puseram homens na Lua, ou a New Horizons, que vai a caminho de Plutão.

Segundo a agência norte-americana, esta bateria nuclear permitirá manter o rover a funcionar permanentemente, mesmo de noite e no Inverno, sem os problemas vividos pelo Spirit e o Opportunity, quando os painéis solares eram cobertos por tempestades de poeira. Tem uma capacidade constante de 110 watts para operar os instrumentos do Curiosity e mantê-los a uma temperatura funcional durante a noite e o Inverno (a média encontra-se entre os menos 128 graus Celsius das noites polares e os 27 graus do meio-dia equatorial).

"Seis minutos de terror"

A viagem até Marte será de 570 milhões de quilómetros, com data prevista de chegada a 6 de Agosto de 2012. E, nesse dia, se tudo tiver corrido bem até lá, joga-se um momento determinante para o sucesso da missão. A entrada na atmosfera e a aterragem far-se-á de uma forma nunca tentada - será uma estreia absoluta. E algo assustadora, pelo que se vê nas animações hiper-realistas colocadas online pela NASA.

O Curiosity cairá do céu agarrado a um enorme pára-quedas supersónico, a 20.920 quilómetros por hora. Virá protegido por uma espécie de disco voador, activando motores a várias altitudes, para ir travando, e que se afastará no horizonte depois de fazer descer, com pesos e alguns cabos de nylon superfortes na cratera Gale um veículo todo-o-terreno.

Seria isso que um observador inteligente pensaria, estando em Marte, ao ver a aterragem do rover da NASA. Desta vez não será possível usar os airbags de Kevlar para amortecer o contacto com o chão, já muito testados com outras sondas e rovers enviados para o planeta vermelho, por causa do peso do Curiosity. Os técnicos da NASA chamam a esta nova técnica "guindaste espacial", porque é isso que faz lembrar, quando o rover fica suspenso no ar por cabos e é largado pelo disco protector em que faz a viagem até Marte.

Em simulações de computador, funcionou perfeitamente - embora arrepie. Os engenheiros da NASA chamam a esta fase de entrada, descida e aterragem controlada por computador "os seis minutos de terror", conta o site de tecnologia CNET. Mas as diferenças de gravidade na Terra e em Marte não possibilitam fazer um ensaio verdadeiro - só se saberá se resulta mesmo, quando o Curiosity chegar ao planeta vermelho.

"Há muitas pessoas que olham para isto e dizem-nos: "Vocês estão malucos!"", disse Peter Theisinger, citado pelo Reuters. "Mas nós fizemos um intenso programa de testes que validou este processo do ponto de vista do design. Se alguma coisa se avariar nessa altura, vamos ter problemas. Mas fizemos tudo o que conseguimos prever", garantiu.

Vão ser poucas as unhas para roer no dia 6 de Agosto, pelo que disse ao CNET o engenheiro Adam Steltzner, que está envolvido na aterragem do Curiosity: "Quando se pensa nas linhas de código, o número de circuitos, na mecânica e equipamentos... É completamente aterrorizador."

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