Os samurais também choram

Ryuichi Sakamoto

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. Segunda-feira, 21h00Sala cheia

De uma maneira ligeiramente rebuscada, percebe-se na música de Ryuichi Sakamoto a sua convicção ecologista. Sobretudo em concerto, o respeito pela composição, a permanente aversão aos excessos e aos desperdícios, a utilização absolutamente justificada de cada nota parece, de facto, ecoar esse traço pessoal de Sakamoto. O concerto na Gulbenkian, esgotado há semanas, foi disso magnífica prova: cada nota, como sempre, foi colocada no sítio num lento e tocante movimento de delicadeza.

E toda esta abordagem, que era já a bússola da gravação em trio em 1996 (do mesmo ano), foi refinada com os anos que Sakamoto passou entretanto ao lado de gentes da experimentação electrónica, a rarefazer as melodias do seu piano. Daí que um concerto como este exija respirar fundo e deixar o mundo lá fora, obrigando a uma tão bela quanto violenta desaceleração do ritmo e do ruído das cidades. A música de Sakamoto vem em contraciclo - o que, em certa medida, resolve com eficácia aquele que o músico considera o grande desafio do seu trio clássico: fazê-lo soar contemporâneo, embora numa prática exemplar de depuração e obsessão melódica raras nos nossos dias.

Esta solução impôs-se de forma contundente com uma abertura soberba: improvisação nas cordas do piano, seguida do tema Fukushima #01 (homenagem às vítimas do acidente nuclear). Sozinho ao piano, Sakamoto começou por tratar o instrumento como se pudesse parar em seguida e reclamar que lhe tinham dado teclas a mais. Parecia, às tantas, estar a musicar uma chuva em câmara lenta que possivelmente caía lá fora. Esta mesma postura marcaria uma das principais diferenças de arranjos entre 1996 e o trio de 2011 - Jaques Morelenbaum no violoncelo, um colosso de elegância, e Judy Kang no violino -, aplicando travões num tema maravilhosamente frágil e já de si pouco dado a pressas, Merry Christmas, Mr. Lawrence.

Perante uma sala habituada às regras da música clássica, foi curioso ver como Sakamoto se sentiu obrigado a dar dois acenos com a sua cabeleira branca sinalizando que se podia aplaudir após o primeiro tema - são canções e não andamentos. Mas a mensagem estava já presente no palco, com uma humorística subtileza de Judy Kang. Em frente ao lugar da violinista esteve sempre um violino modernaço modelo flying V - um fetiche dos guitarristas de heavy metal - em que Kang não encostou um dedo durante toda a actuação.

Pontuando o concerto com inéditos (enquanto trio) - o piano a patrocinar a procura entre violino e violoncelo em Still life in A ou o magnífico piano com rasto de Solitude -, as grandes interpretações vieram do reportório de 1996, em temas como Bibo no Aozora, The last emperor e a excelente dupla final mais dramática de M.A.Y. in the backyard e 1919 (que soa como um bombardeiro da I Guerra Mundial). Nos três encores, houve um Chanson pour Michelle (de Tom Jobim) pedido via Twitter e a surpreendente Ichimei, escrita para o filme homónimo do sanguinolento Takashi Miike - o que nos reconduz ao essencial: com Sakamoto, os samurais também choram, não há friezas impenetráveis.

Gonçalo Frota

Sugerir correcção