Francisco O chefe de gabinete Filipe O reservado Pedro O rigoroso

Foto
pedro cunha

Para o pai, o ex-embaixador Pedro Ribeiro de Menezes, eles são as suas "aves de arribação". Francisco, o mais velho, é chefe de gabinete de Pedro Passos Coelho. Filipe, o "caçula", historiador e autor de Salazar Biografia Definitiva. Maria João Avillez entrou nos dias deste clã e traça o retrato de um apelido unido por uma raiz comum de sensibilidade, inteligência, cultura, serviço e sempre sentido de humor

Francisco

O chefe de gabinete

Junho

Não havia mais ninguém na sala do Hotel Radisson, em Lisboa, naquela tarde quente de Junho. Francisco Ribeiro de Menezes, de 46 anos, embaixador de Portugal em Estocolmo, acabara de aterrar da Suécia exclusivamente para um encontro que lhe fora solicitado dias antes. Embora admitisse ao que vinha, não estava inteiramente certo de qual seria o tema da conversa que Pedro Passos Coelho, vencedor das eleições legislativas ocorridas pouco antes, iniciaria com ele dentro de momentos.

"Quero alguém da minha geração, alguém com experiência de gabinete, alguém com experiência do mundo para chefiar o meu gabinete", disse-lhe Passos com aquela firmeza de voz que o país ainda conhecia mal. E um olhar azul-claro que nunca o desfitou. Subentendido: alguém que possa ser um "interlocutor natural". Nenhum deles o disse, mas, pela mente do futuro primeiro-ministro e pela cabeça do futuro chefe de gabinete, passou, célere, o mesmo substantivo: "confiança".

Era quase só disso que se tratava, já que a competência do embaixador era conhecida. E a experiência também, adquirida ao longo de anos junto de gente de qualidade: Gama, Fernando Neves, Amado. A diplomacia extramuros ia afinal sendo sucessivamente substituída por uma aprendizagem non stop nos gabinetes de excelentes mestres. E, além disto, Fancisco Ribeiro de Menezes tinha um carácter à prova de bala e usava de boas maneiras, coisas que nunca deixariam Passos Coelho nem indiferente nem distraído.

Mas se havia, é certo, algum passado entre ambos, nenhum deles se considerava, nem de resto o era, íntimo do outro, a relação era intermitente e semidistante.

A cumplicidade, ali, era por via feminina: Teresa, mulher do embaixador, era uma "velha companheira" de Pedro Passos Coelho. Juntos haviam descoberto a política e a vontade de a servir, juntos haviam discutido o país e o mundo, juntos haviam fundado o Pensar Portugal. Por aí fora, até à actual vice-presidência do PSD e, claro, um lugar de destaque no hemiciclo de São Bento.

"Pelo lado da Teresa, eu conhecia o Pedro há muitos anos, conversávamos sem o peso dos cargos, falávamos à vontade, mas apenas de vez em quando."

Sem que, porém, nenhum deles o pudesse ter previsto ou sequer antecipado tal passado transfigurava-se agora no presente de cada um, interligando-lhes os gestos, o caminho e o destino. E tornando-os subitamente dependentes um do outro a partir daquele momento, houvesse o que houvesse à frente de cada um deles.

Apesar das nuvens desenhadas por Passos Coelho sobre o céu da realidade desse dia 11 de Junho, não se sabe qual dos dois saiu mais compenetrado do Hotel Radisson, na Primavera passada.

Mas, a quatro horas de voo e três mil e tal quilómetros de distância de Lisboa, que longe "objectivamente" estivera Ribeiro de Menezes de imaginar tal "desfecho". Talvez por isso, uma vez mais o diplomata que seguira as pisadas do pai diria para consigo que ainda não fora desta: à excepção das passagens pela NATO, em Bruxelas, da embaixada de Portugal em Madrid e, agora, de alguns meses em Estocolmo - já como embaixador -, fora sempre o Portugal visto de dentro, e não o outro, o que o ocupara. Repetia-se a sua história de vida, mas o argumento que alimentava essa repetição também não variava: pensar primeiro no país.

"Face àquele convite, percebi de imediato que era algo a que nunca poderia dizer que não, todos os meus argumentos para não vir para Portugal se reduziam à esfera do meu interesse pessoal: estivera seis anos num gabinete, estava bem em Estocolmo - onde, entre outras coisas, deixei o Português como língua convidada para a Feira de Gotemburgo, uma das maiores da Europa, depois da de Frankfurt - acabara de mudar de vida, tinha a certeza de que era aquilo que queria fazer na vida... Depois de tanto tempo de preparação, de muito ter visto e de muito ter ajudado a fazer, chegava finalmente a minha vez! Não era, porém, de mim que se tratava, mas de ajudar um primeiro-ministro eleito com uma sólida maioria e um mandato muito claro a tomar a situação em mãos e a levar a bom porto, por mares difíceis, um barco muito fragilizado!"

Naquela tarde, já doublé de chefe de gabinete, o embaixador lembra-se de que sorriu. E, dentro de si, o ex-letrista dos Sétima Legião, o ex-autor preferido de Rodrigo Leão, o músico entusiasmado pelos sons e bandas dos anos oitenta, também sorriu: onde estavam hoje aqueles happy days,agora que Francisco Ribeiro Menezes estava prestes a entrar numa espécie de inferno, mesmo que tendo a inteira noção do que viria a encontrar e do trabalho que o esperava?

Outubro

"Há no país um sentimento muito transversal de vontade de pôr as coisas no seu lugar. É um país compenetrado disso. Preocupado mas compenetrado. Haverá sempre leituras diferentes sobre os motivos e as circunstâncias que levaram a "isto" mas há uma vontade de mudar, fazer melhor, e grande parte disso é o primeiro-ministro. É ele."

É um daqueles quase escaldantes dias de Outubro, os sentidos fogem-me para o jardim que rodeia a residência oficial do primeiro-ministro, árvores antigas, tapetes verdes, buxo, pedra. Mas... sentada à minha frente, numa vasta sala do rés-do-chão aberta sobre o arvoredo, o chefe de gabinete, camisa azul, fato cinzento, boa gravata, continua a sussurrar para o meu gravador (é de família, os Ribeiro de Menezes falam todos baixo).

Sem rugas no diálogo, sem pressa e sem alarido: não zumbem telemóveis, não se ouvem passos, não se agita gente e muito menos ele. Há uma agenda onde eu hoje tive lugar, cabe-me saber utilizar os minutos acordados, findos os quais ele se some, escada acima e... ponto final. A voz pausada, a pose, a fluidez civilizada do discurso, a mundividência, também são de família. Francisco, filho do ex-embaixador Pedro Ribeiro de Menezes, andou pelo mundo desde criança. Com o seu irmão Filipe - historiador, quatro anos mais novo, a viver há muito em Dublin, onde se doutorou e escreveu (em Inglês) a biografia de Salazar -, viveram ambos "sempre em mudança de casas e de país".

O meu interlocutor foi "menino em Paris, em Buenos Aires", aprendeu a ler e escrever "em Castelhano", conheceu várias Áfricas, os Estados Unidos, Irlanda, Brasil, Itália. E, no intervalo desses destinos, ia descobrindo Portugal, onde "matava saudade" de tios e primos. Pisava mundos, mas sempre "com uma grande noção de transitoriedade dos sítios, das caras, das pessoas e uma raiz em Lisboa, por vezes demasiado distante".

Vivia muito com o irmão, o que deixou marca e cumplicidade: "É o meu melhor amigo e, apesar de longe, é uma companhia permanente. Admiro-lhe a inteligência e a tenacidade, e o contributo que, com uma e outra, foi capaz de dar para a moderna historiografia portuguesa. É um livre pensador de espírito acutilante".

Do pai lembra a "severidade e a exigência" de alguém "naturalmente mais voltado para o seu trabalho, mais pai de filhos crescidos".

"Descobri que queria fazer o mesmo que ele quando percebi que o curso de Direito - que me dera uma formação sólida e me arrumara a cabeça - nunca seria capaz de me seduzir para a vida académica ou a advocacia. Na década de oitenta, os cursos eram quase só Engenharia, Direito, Medicina... não havia grandes fantasias. E eu, que tinha visto as alegrias e as tristezas do meu pai na sua vida diplomática, que devorara o Lawrence Durrell - é impossível ler o Durrell sem querer ser diplomata! -, que tinha uma base linguística melhor do que a média e uma noção do mundo melhor do que a média, percebi que seria interessante ver até onde tudo isso me poderia levar." Levou-o pelo menos tão longe quanto o ser hoje os olhos e os ouvidos do príncipe.

E ei-lo a falar do príncipe: medindo as palavras, como quem assume a responsabilidade do retrato, mas usando de um tom absolutamente desapaixonado, liso, linear quase: "O primeiro-ministro é um racional, chega à convicção pela razão, não pela via intuitiva. Não, não acho que seja frio, é determinado. Tem a cabeça fria, isso sim, não se impacienta. Sabe ouvir, gosta de ouvir e depois decanta o relevante. É um profissional. E tem um bom olho para o detalhe. Solitário? Não, é até bem menos solitário do que as pessoas com quem trabalhei mais directamente até aqui: Gama fechava-se sobre si mesmo para entrar em reflexão; Amado também, embora o mostrasse menos. Passos Coelho gosta do trabalho em equipa, trabalha muito com as pessoas, é preciso e muito claro no que lhes diz e, depois, não se esquece das coisas. Ouve muito, decide sempre sozinho. Lê os jornais, claro, mas quase nunca com o tempo que gostaria, mas lê-os, os de dentro e os de fora, Financial Times, Wall Street, El País. Embora seja frequente ouvir-lhe dizer "sim, já sei, já me disseram que tenho que ler o A ou o B, mas ainda não houve tempo".

Justamente, o tempo. Ou a falta dele. Um bem tão precioso quanto sempre escasso, por mais organizada que seja a agenda encenada pelo chefe de gabinete.

"O chefe do Governo tem uma espécie de "arte" para parecer que está a fazer uma coisa de cada vez, mesmo que não esteja - e normalmente não está. Mas eu tive de aprender que era impossível fazer só uma coisa de cada vez. Não tenho esse luxo. E percebi também que é impossível que a agenda não deslize ao longo do dia, desliza... Nesse caso, há o predomínio do urgente sobre o importante."

Quer o "urgente", quer o "importante", têm "assíduos" anjos-da-guarda. Os assíduos são Carlos Moedas, carregando a troika como se carregasse uma mochila. Mais que assíduo, é omnipresente: quase vive ali, o seu gabinete fica no jardim, frente à residência oficial; Vítor Gaspar, o primus inter pares. Santos Pereira, Portas. E, claro, uma locomotiva política chamada Miguel Relvas.

Cinco meses depois do início da caminhada, o gabinete (e o próprio Governo) já perceberam que ganharam pelo menos um round: a "boa imagem", conquistada pelo chefe da orquestra. Mais impressa porventura "além-fronteiras", que é onde, hoje, se ganha - ou perde - o exame feito pelos actuais juízes-algozes-tutores - ditadores - credores do país, vulgarmente conhecidos pela alcunha de troika.

"Uma "boa imagem" assente numa "narrativa" que temos vindo a construir cá dentro", explica o chefe de gabinete. O "temos" não é vasto, mas está bem cerzido, como a rede do trapezista quando o voo é perigoso. Os cerzidores são o próprio gabinete do primeiro-ministro, com Gaspar e Moedas à cabeça, o Palácio das Necessidades e o seu titular, Paulo Portas, as embaixadas de Portugal por essa Europa fora. Entre si, têm tecido com afinco e infinitas cautelas o fio-de-aço da "narrativa". So far so good? Não se sabe. Sabe-se, sim, que a "imprevisibilidade" é cada vez maior, mais ameaçado o euro, mais dantesco o pesadelo grego. E se o destino final está preso por cordéis às contingências europeias, a rota, essa, é da competência da "casa". E nessa não se toca. São Bento dixit. Mesmo que a política esteja gritantemente ausente, mesmo que não haja certezas sobre o rumo nem sobre o (incerto) desfecho das também gritantemente anunciadas "reformas".

O chefe de gabinete é dos primeiros a chegarem à residência oficial. Passos Coelho chega a seguir, pelas nove. Segue-se uma espécie de infindável maratona que acaba 12 horas depois. Se não mais tarde, que os dias, por regra sombrios, têm sido pródigos em más surpresas, "buracos" ou inesperadas publicitações de desacordos. Aflições sortidas. A lista é pesada.

Pergunto ao meu interlocutor: como se organiza então a agenda da tragédia? Como se encenam dias à beira do precipício?

Os diplomatas são fleumáticos - de mais? Este não tropeça na "tragédia" nem cai no "precipício": "Um chefe de gabinete filtra muita coisa, tem a responsabilidade da separação do trigo e do joio, o que é importante do que é menos, escolher, eleger, elencar... O que é que o PM deve saber das centenas de coisas que "trans-chegam" ao meu conhecimento ao longo do dia, quer pessoalmente, quer por escrito, por telefone, por email, por mensageiros? Faço essa triagem. Acompanho o trabalho dos assessores para os enquadrar e dar uma visão de conjunto, evitando que haja gente a trabalhar fora do contexto. Mas, em última análise, a preparação da agenda do chefe do Governo é complicada porque a realidade é que ela não é nem exclusiva do primeiro-ministro nem - muito menos - do seu chefe de gabinete. Há sempre mais gente envolvida nesse processo, os ministros, outras pessoas, o próprio secretariado da primeiro-ministro. Compete-me dar rumo a isso, ter um pouco de recuo, reflectir. Pensar "o que é que falta fazer? Quem é que ainda não ouvimos? Com quem devemos estar? Como vamos hierarquizar, e por que ordem, estas quinze pessoas que querem falar com ele?" E há a parte externa, falamos obviamente muito sobre isso, muito."

O curioso é que ninguém se altera no navio-almirante, apesar da incerteza de um tão ameaçado - e ameaçador - destino. E esta casa parece posta em sossego mesmo que o não esteja (e não pode estar).

Sucede que falar deste cavalheiro vestido de cinzento e azul, é também falar de música. Ele não se esgota nem na diplomacia nem na política por muito que sirva uma e outra ao mais alto nível e com bom aproveitamento. E que goste de evocar essas lembranças, recordando mestres e lições. (Como Gama, por exemplo, "o grande mestre", o "juiz permanente do seu interlocutor", homem de "humor finíssimo e cultura literária impressionante", que lhe ensinou que "o valor do tempo e do timing na diplomacia não são exactamente a mesma coisa"; ou que "é possível manter ao mesmo tempo um olho no detalhe e outro na big picture.") Mas voltemos à música: a que ele escreveu e nunca deixou de amar, a música para a qual se dizia que tinha talento. Que é feito dela, pergunto eu agora ao ex-letrista?

"Lá em casa, ouvia-se música, ópera e música clássica, os meus pais também gostavam muito de música francesa, cresci a ouvir o [Serge] Reggiani e depois os tangos, na Argentina. Eu e o meu irmão ouvíamos sobretudo música inglesa, fomo-nos guiando por aí. Nesse sentido - e noutros! -, eu vivi anos muito importantes em Washington. Foram três anos fantásticos. E depois, um dia, nasceu a Sétima Legião, formada por um primo meu, o Pedro Oliveira e o Rodrigo Leão. Comecei a mandar-lhes letras dos Estados Unidos, eles enviavam as cassetes, ia-se fazendo assim, tudo à distância, pela mala diplomática, uma coisa absolutamente artesanal, mas tinha outro valor por causa disso. Até meados da década de noventa, época em que a Sétima Legião tinha alguma projecção, fui escrevendo, saíram vários discos. Depois o Rodrigo fundou os Madredeus, e durante uns tempos também escrevi para eles..."

Sorriso irónico. Como se metade de si mesmo estivesse sentada à janela a observar a outra metade. Mas não é verdade que o sense of humour - mas sobretudo o auto-humor - é também característica da família?

"Que quer, neste momento, sou o Sir Humphrey, tenho que sorrir com isso. O Amado é que me dizia "lá vem você com cara de Sir Humphrey"..."

Falar-lhe de Amado quase o comove: "Tenho uma imensa admiração e amizade por ele e pela sua bagagem intelectual e histórica. É alguém muito inteligente, dono de uma tocante afabilidade e humildade; é profundamente desprendido do aparato do Estado quando era afinal muito fácil a alguém nas Necessidades deixar-se envolver pelo fausto e pelos rituais diplomático e político. Tem uma notável capacidade de abstracção e de definição dos vectores do tempo em que vive, são conhecidas as coisas importantes em que teve razão antes de outros. Há nele uma capacidade de antecipação, quer no plano internacional, latíssimo senso, quer no europeu, quer internamente. Talvez nunca tenha visto ninguém com esta acutilante percepção das grandes tendências do nosso tempo."

Por enquanto, não se comove assim com Pedro Passos Coelho. Limita o seu discurso ao que vê e percepciona, sem lhe ocorrerem divagações de outra ordem.

"Ainda estamos todos a descobrir os sítios, as circunstâncias, os melhores modos de agir, mas já retive algumas coisas da personalidade do primeiro-ministro, e talvez as que mais me impressionem sejam a entrega, a dedicação, a capacidade de trabalho, o esforço contínuo. Sem que, em algum momento, ao longo do dia, alguém lhe ouça dizer "e se eu hoje conseguisse ir para casa mais cedo?""

Filipe

O reservado

A Irlanda foi quase "um acaso": o embaixador Pedro Ribeiro de Menezes fora colocado em Dublin. Filipe, seu filho, acabara o liceu, tinha 16 anos, sonhara frequentar uma universidade inglesa. Ficou na Irlanda. Mas valeu-lhe a pena e a distância: foi ali, em Dublin, que se licenciou em História e Filosofia e que, aos 26 anos, se doutorou.

"Cedo? Não, o sistema é que é muito menos complexo e os processos mais lineares, o que se conjuga para haver maior concentração no esforço da tese."

O "acaso" irlandês dura até hoje: "Fui ficando porque se foram sempre abrindo novas e boas oportunidades". É professor na National University of Ireland, no departamento de História Moderna, e, como tantos que levantaram voo para outras paragens, o historiador, de 42 anos, aplaude "as condições de trabalho" que encontrou. Quer no meio académico irlandês, quer no próprio país.

"Há outras condições de trabalho, melhores salários, a progressão na carreira é mais nítida e mais fácil, há maior agilidade na obtenção de bolsas..."

Hoje sente que já tem lugar cativo num vasto universo académico, amparado "na imensa visibilidade que dá a língua inglesa e na relação com as outras universidades e instituições, numa ligação constante e profícua à Grã-Bretanha, aos Estados Unidos e às suas associações académicas ou culturais".

A vida fora dos muros universitários também o cativa pela proximidade e pela qualidade: Filipe, casado com uma académica britânica (professora no University College of Dublin) e pai de dois filhos, vive numa casa com um grande jardim, anda de bicicleta, o ar não está poluído, em volta há um grande silêncio do qual já se perdeu o hábito.

Não deixa, porém, de vir a Portugal nas férias com a mulher e os filhos: precisa renovar o oxigénio deste clã para o qual saudades e separações nunca são penas leves.

Tal como o irmão, também ele recorda "os anos intensos" passados em Washington e o seu cortejo de "dias felizes" que viveu entre os 10 e os 14 anos. E hoje, ainda seria assim?

"Não. Hoje aflige-me a tremenda crispação da sociedade norte-americana, impensável no meu tempo. Obama? Talvez demasiado cauteloso..."

Filipe Ribeiro de Meneses (na adolescência trocou o z pelo s), alto, mangas de camisa, fala-me de tudo isto em voz baixa e com delicadeza, nos instantes que roubei à investigação que actualmente o ocupa e o trouxe a Lisboa por algum tempo.

Falámos num dos edifícios da Torre do Tombo onde, há meses, foi lançada a sua última obra sobre os arquivos de Paiva Couceiro e lugar onde investigou a figura de Salazar para a biografia que o consagrou: há tempos, o país descobriu com aplauso e agrado um historiador do qual mal ouvira falar, lendo com surpreendida curiosidade as mais de seiscentas páginas traduzidas da língua inglesa em que originariamente Ribeiro de Meneses as escreveu.

Filipe é mais jovem do que parece e porventura ainda mais despretensioso, só o conhecia pela televisão, ele ri: "pois é, eu sou o "de serviço" quando se trata da Irlanda, e o Fernando Santos (treinador de futebol) é o da Grécia!..."

É mais novo quatro anos do que o seu irmão e, se bem que quase imperceptivelmente, também se entusiasma com o tema "irmão":

"Não vivo com ele desde os meus 16 anos, mas quando nos encontramos é um bónus! Reatamos de imediato a conversa como se tivéssemos falado os dois na véspera. O Francisco é mais sociável, eu sou mais reservado. Ele gosta de estar no centro da acção com aquela facilidade quase estonteante em lidar com as pessoas e aquele seu grande sentido de humor que partilha com o mundo. Tem uma imensa capacidade de trabalho e nela inscreve a exigência da excelência. Lembro-me que levava a música muito a sério, foi letrista da Sétima Legião. Surpreendi-me quando optou pela diplomacia, julguei que ficasse pela Universidade..."

Depois de Salazar Biografia Definitiva (também já editado no Brasil), e após as páginas consagradas a Paiva Couceiro, o historiador abalançou-se a outras geografias, mas sem perder Portugal de vista. Fala disso com um entusiasmo discreto, como discretos costumam ser os seus gestos e sentimentos: "O projecto chama-se Defying the wind of change: Portugal, Rhodesia and South Africa, 1961-1980. Está a ser feito em parceria com Robert McNamara, da Universidade do Ulster. Este novo projecto - que acabou de receber um apoio de 93 mil euros do Irish Research Council for the Humanities and Social Sciences - visa descobrir e analisar as ligações diplomáticas, políticas, económicas e militares entre os três países, utilizando arquivos portugueses, sul-africanos e outros. Não escondo que considero de especial interesse o impacto do 25 de Abril e da descolonização que se seguiu na estratégia rodesiana e sul-africana. Depois? Depois a nossa intenção é não só publicar uma série de artigos em revistas especializadas como uma monografia. Sim, primeiro em Inglês, e depois em Português."

Tal como ocorreu com Salazar. Mas... porquê Salazar, justamente? Como acudiu à mente de um historiador há tanto tempo fora de portas marcar encontro com António de Oliveira Salazar?

"Como havia feito uma tese sobre a I República e a intervenção de Portugal na guerra, fiquei com curiosidade de ir mais além, como quem entra na segunda parte, quis conhecê-la. Mas queria ter um projecto que fosse suficientemente grande e com ramificações internacionais, de forma a torná-lo apelativo. E depois, uma vez escolhido o tema de Salazar, fiquei muito, muito, entusiasmado, com vontade de trabalhar bem e a sério... Ah, sim, eu sei, serei sempre definido pela biografia de Salazar. Aliás, podia ainda estar hoje a pesquisar, podia demorar mais 20 anos... Vivi em Lisboa um ano, a família acompanhou-me, para investigar com vagar. Fiquei surpreendido com a recepção que tive, maior do que supunha - vendi cerca de 10 mil livros -, mas estranhei ser tão pouco criticado, tratando-se de figura tão polémica... Mas é a tal vantagem de estar fora, não se pertence a grupos nem redes."

E Salazar? Que guarda o historiador, hoje, após os anos de investigação e escrita?

"Admiração pelo talento político, pela arte da governação, a inteligência e a habilidade demonstrada. O que em nada significa que tudo isso estivesse ao serviço de causas que eu defendesse. Podia ser cínico e impiedoso. Teve o erro político da questão colonial, que tornou impossível a transição."

O pai teve um "papel importante" na edição do livro fazendo uma "cuidadosa revisão da tradução do Inglês para a língua portuguesa": "Um gesto utilíssimo!"

Da infância e da adolescência retém um pai que "praticava uma abertura natural aos países onde era colocado, a família "abria-se" aos meios onde se instalava." Os filhos iam para a escola pública, "o pai era severo e exigente", transmitindo-lhes os seus próprios hábitos de trabalho e a regra de oiro da pontualidade. "Ficou-nos, ao Francisco e a mim, o hábito de sermos pontuais!"

Pausa. "Pensando hoje nas coisas, revejo a família nuclear - nós os quatro - e a forte união entre todos, porque ela era o seguro de vida contra o andar com a casa às costas. Mas a verdade é que sou mais conservador do que o meu pai, ele teve sempre uma veia porventura mais terceiro-mundista, eu sou mais ocidentalista. O meu pai seria aquilo a que dantes se chamava um gaulista de esquerda... Acredita num Estado com iniciativa, que gere e que orienta... Como diplomata, tinha um bom sentido crítico para descer ao mais profundo das questões, nunca se contentando com visões superficiais e indo sempre além. Lembro-me de que era talvez um pouco formal, sempre de fato e gravata! Com a minha idade, parecia muito mais velho do que eu..."

Pedro

O rigoroso

Aterrou um destes dias à minha frente, encharcado até aos ossos - a borrasca apanhou-o desprevenido na rua -, mas era como se nada fosse: sentou-se muito direito na cadeira, postura elegante, voz pausada, alguma formalidade, sorriso cativante.

"Os meus filhos?", pergunta, carregando nos erres: "São aves de arribação."

"Filipe? Uma lâmina de concisão e clareza de pensamento. O Francisco, mais propenso a análises plurifacetadas, mas que depois geralmente vão dar à mesma conclusão. É uma questão de processos. Ambos têm o sentido do serviço público, o Filipe está a construir uma obra sobre Portugal e os portugueses; o Francisco tem o sentido do país e trabalha em nome dele."

Pedro Ribeiro de Menezes tem 72 anos (bem conservados). Diplomata por vocação, embaixador aos 50 anos, é um commis de l"Etat, embora se defina - a meio caminho entre a seriedade e a ironia - como um velho soixante-huitard que viu o Maio de 68 da janela do seu primeiro posto, em Paris. Os filhos dizem-no um "gaulista de esquerda" ("lá está o pai com o seu autoritarismo de Estado!", costumava dizer-lhe Filipe), mas o ex-embaixador prefere dizer que esteve politicamente "naquela espécie de charneira onde nunca se ganha um debate, não se decide nada e se leva pancada de toda a gente"!

Ia a sua história diplomática já bem lançada - Paris, Buenos Aires, Lisboa - quando este diplomata meticuloso, rigoroso e organizado recebe um telefonema com um desafio do outro lado da linha: abrir a primeira embaixada de Portugal numa ex-colónia - a Guiné-Bissau. Foi. Estava-se em Setembro de 1974 e Portugal ardia.

A démarche, delicada - Portugal de regresso a uma Guiné agora independente -, era "uma espécie de ensaio" para os outros países de expressão portuguesa e ele partiu com mixed feelings: expectativa, responsabilidade, receio, interesse, numa aventura posteriormente rotulada como "tão entusiasmante quanto dura". Mas sem a "sombra de um reparo" face às novas autoridades do país. Da Guiné, Ribeiro de Menezes vai reabrir a embaixada em Dacar, ainda como encarregado de Negócios. Viaja como sempre com a mulher e os filhos, "presentes" em todas as latitudes: "Lembro-me que a Fernanda e eu jogávamos Monopólio e fazíamos puzzles para entreter a solidão nos longos serões africanos. Pela própria natureza da minha vida profissional, a família foi sempre muito unida, demos todos os passos - até ao limite - para estarmos juntos. Éramos só quatro!"

E um dia João Hall Themido - embaixador em Washington - faz saber que "queria" Pedro Ribeiro de Menezes como seu número dois na capital americana. Correu bem: o senhor que se seguiu na chefia da embaixada de Portugal, Vasco Futcher Pereira, manteve Ribeiro de Menezes em Washington.

"Foi justamente neste posto, corria o ano de 1983, que nos separámos pela primeira vez, quando o Francisco veio para Lisboa, para a Universidade. Foi quase um dia de luto, com o Filipe debulhado em lágrimas à vinda do aeroporto! Levei-o ao cinema e a comer um hambúrguer..."

Após uma passagem por Lisboa, onde é nomeado director-geral adjunto do ministério e conhece profissionalmente Gama ("um tipo fascinante"), segue-se outra espécie de "estreia absoluta", a segunda após a abertura da embaixada na Guiné-Bissau: abrir em Bruxelas a primeira representação diplomática permanente de Portugal (REPER) junto da então CEE. Leonardo Mathias é o maestro, Pedro Ribeiro de Menezes o primeiro-violino.

"Éramos os dois bastante inexperientes sobre matéria comunitária, conhecíamos mal os meandros e complexidades da Comunidade, trabalhou-se muito."

E se lhes cabia a "decisão política", diariamente aprofundavam o seu saber "com adaptabilidade, maleabilidade, humildade". "Aprendíamos decidindo e decidíamos aprendendo."

Nomeado embaixador em 1988, é colocado em Dublin, mas, dois anos depois, ei-lo de volta a Lisboa, onde o espera o cargo de director-geral de Política Externa do MNE. Hoje revê-se satisfeito com a "primeira presidência portuguesa da UE", que correu "muitíssimo bem", apesar dos escolhos internacionais de então. Como - por exemplo - a Jugoslávia se ter "começado a estilhaçar" no perímetro desses seis meses.

E, um belo dia, em plena crise das relações luso-brasileiras (dentistas e tutti quanti), "onde todos os dias havia uma dor de cabeça", é projectado para Brasília.

No Brasil, havia "dois Brasis" de que "era preciso cuidar", relembra Ribeiro de Menezes: o próprio país, imenso e plurifacetado que era necessário "conhecer e possuir", saindo de Brasília; e o segundo, feito de "feridas que era necessário sarar e normalizar". A "arrancada de Guterres", como diz, contribuiu bem para isso: "Passou-se do comércio da saudade, da castanha assada e do vinho rústico (estou obviamente a caricaturar)" para um "país adulto, com uma vida adulta e um projecto adulto".

"Tentei sempre combater os clichés da diplomacia, procurei sempre ter sentido de Estado, sentir sempre que, apesar da perda do Império, devíamos ter uma presença actuante na cena internacional. Erguer uma ponte entre América e África e a nossa costela de Extremo-Oriente... Quando a França perdeu as suas colónias e se tornou num pequeno país, De Gaulle dizia que era por isso mesmo que ela deveria ter uma grande política externa!"

Em 1997, nova paragem em Lisboa, desta feita como secretário-geral do Palácio das Necessidades, a convite de Jaime Gama, no seu regresso à casa, como titular dos Estrangeiros. E, finalmente, a (belíssima) embaixada de Portugal junto da Santa Sé. Mas, "sem a dimensão do prestígio do então encarregado de Negócios português em Roma, José Bouza Serrano (hoje embaixador e actual chefe do protocolo), e a sua inserção na sociedade italiana", Ribeiro de Menezes conclui que "nunca teria tido de início a sua vida diplomática tão facilitada em Roma".

Fim de carreira para este Commis de l"Etat, remate de uma vida profissional que antes e depois de Abril de 1974 cuidou prioritariamente da representação externa do país. Com igual espírito de serviço, num tempo e noutro.

Nostalgias? Pausa. "Gostaria porventura de ter deixado marca mais incisiva na carreira." Nova pausa: "É humano não é?"

Segunda nostalgia: duvidar que a capacidade, o talento, o rendimento de quem trabalha no Palácio das Necessidades "esteja puxada ao máximo". "Temo que não. Faz-se o que se pode e eu talvez gostasse de mais. Falta um grande desígnio nacional."

A casa é hoje o porto de abrigo deste leitor compulsivo: "Releio os grandes clássicos e os grandes livros da minha vida. Rraramente leio um livro novo, com excepção da pequena cota das biografias e memórias".

A casa, os filhos e essa "raiz comum" a todos ("sensibilidade, cultura, serviço, inteligência, sentido de humor"). A trindade que explica os Ribeiro de Menezes.

Mas é ainda com as suas "aves de arribação" na cabeça que este pai se despede: Filipe, é um "príncipe", dono de uma "densidade especial", vivendo hoje por entre "os claustros, oscottage e os muros cobertos de hera da Irlanda"; Francisco, "mais do mundo, mais solicitado, mais diverso, trabalhando de sol a sol, em nome de algo em que acredita". "E o Francisco está fazer-se um homem lindo, não está?"

Sugerir correcção