Furando o fundo do mar, atrás da corrente que vem do Mediterrâneo

À saída do estreito de Gibraltar, forma-se uma cascata de mil metros, invisível à superfície e bastante salgada, que transporta para o Atlântico 50 mil toneladas de sal por segundo

À semelhança dos cronistas das viagens dos Descobrimentos, a partir de amanhã Hélder Pereira, professor na Escola Secundária de Loulé, vai relatar a vida a bordo do navio norte-americano JOIDES Resolution. Só que agora, quase em directo, através da Internet, todos podem acompanhar os relatos de uma expedição internacional que, nos próximos dois meses, vai fazer uma série de furos no fundo do mar, ao largo de Portugal e de Espanha. Como assessor para a educação da campanha, Hélder Pereira contará ao pormenor como tudo isto é por causa da história de corrente de água muito salgada e quente que chega do Mediterrâneo.

Com partida marcada para amanhã de Ponta Delgada, o navio tem o golfo de Cádis como destino inicial da expedição e a costa alentejana como final. Chegará a Lisboa, onde a 18 e 19 de Janeiro do próximo ano poderá ser visitado pelo público. Até 2013, não voltará a um porto europeu.

Em operação desde 1985, o JOIDES Resolution, com 143 metros de comprimento e uma torre de sondagens de 62 metros de altura, está ao serviço do Programa Integrado de Perfuração dos Fundos Oceânicos (IODP), que teve os primórdios na década de 1960 por iniciativa de um conjunto de instituições dos EUA.

O objectivo deste programa internacional de investigação, que tem outros parceiros, como o Japão, a China ou o Canadá, é a reconstituição da história da Terra ao longo de milhões de anos, contada por rochas e sedimentos recolhidos em furos no fundo marinho. A tectónica de placas e a deriva dos continentes, a expansão dos fundos oceânicos, as mudanças do campo magnético da Terra, as alterações do clima e do nível do mar ou a evolução da vida, incluindo fenómenos catastróficos como a colisão de meteoritos, estão entre as questões estudadas.

Portugal aderiu ao programa em 1998, através de um consórcio de países europeus, pagando 66 mil euros dos 132 milhões do orçamento anual do IODP, o que dá direito à participação aproximada de 0,5 cientistas do país a bordo por ano, refere o geólogo Fernando Barriga, representante português nesse consórcio.

Já se fizeram furos um pouco por todo o mundo. Ao largo de Aveiro, da Madeira e no banco de Gorringe também houve campanhas de perfuração. Agora a broca do JOIDES Resolution, carinhosamente chamado apenas JR, vai fazer cinco furos em águas portuguesas: três ao largo da costa algarvia e dois da alentejana. Outros dois furos nesta campanha, a 339.ª do programa de perfuração internacional, serão em águas espanholas. A profundidade abaixo da superfície do mar andará entre os cerca de 500 e os 2500 metros, e a broca entrará o solo marinho entre 150 a 1500 metros, trazendo preciosas amostras.

As atenções vão centrar-se principalmente na corrente que vem do Mediterrâneo (os sedimentos a recolher ao largo do Alentejo serão sobretudo para outro tipo de estudos, relacionados com as alterações climáticas nos últimos 2,6 milhões de anos, e serão comparados com registos obtidos em terra e no gelo).

Cascata imperceptível

Há cerca de 5,6 milhões de anos, o Mediterrâneo ficou isolado do Atlântico e quase secou, o que originou o aumento da sua salinidade. Fechavam-se então os dois corredores que ligavam o Mediterrâneo ao Atlântico, na altura tanto a norte como a sul da localização actual do estreito de Gibraltar. Não se sabe bem por que ficaram cortadas essas ligações, diz Hélder Pereira. Entre as hipóteses está o movimento das placas tectónicas e as variações do nível do mar.

Passados 300 mil anos, ou seja, há aproximadamente 5,3 milhões de anos, as águas do Atlântico voltaram a passar pelo estreito de Gibraltar, como agora o conhecemos, e a encher o Mediterrâneo. "Esta é outra questão: perceber quando abriu o actual estreito de Gibraltar", realça Hélder Pereira.

Assim que estabilizou o nível da água nos dois lados do estreito, começou a haver deslocações em ambos os sentidos. Actualmente, as águas do Mediterrâneo são mais salgadas do que as do Atlântico, logo mais densas, pelo que se afundam ao passarem pelo estreito de Gibraltar. Resultado: à saída do estreito forma-se uma queda de água, uma autêntica cascata que atinge os mil metros, mas imperceptível à superfície.

Também são águas quentes, o que costuma ser uma característica das correntes superficiais, como a famosa corrente do golfo do México. "Influenciam bastante o clima mundial, porque são mais quentes [do que as atlânticas]. Têm o efeito de temperar o clima", explica o geólogo português Pedro Terrinha, do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), que tem agora duas investigadoras da sua equipa no JOIDES Resolution.

Porém, na questão da profundidade a que flui a corrente que chega do Mediterrâneo, a densidade é preponderante, pois, como é bastante salgada, ela acaba por se afundar.

Por segundo, esta corrente transporta para o Atlântico mais de 50 mil toneladas de sal. O que significa mais de 4300 milhões de toneladas por dia. Quando entra no Atlântico, passa a ser designada por Veia de Água Mediterrânica e a sua influência estende-se até ao Mar da Noruega. Enquanto chega ao golfo de Cádis, também passa por cima dela uma camada de água do Atlântico e que entra no Mediterrâneo.

Pelo golfo de Cádis, a Veia de Água Mediterrânica flui então a profundidades intermédias, entre os 500 e os 1400 metros. "Nalgumas zonas do golfo de Cádis, estas profundidades correspondem ao fundo do mar. Então a Veia de Água Mediterrânica acaba por sulcar o fundo oceânico e provocar erosão nuns sítios e deposição de sedimentos noutros. São esses depósitos de sedimentos que vão ser perfurados", diz Hélder Pereira.

Com eles, os cientistas esperam reconstituir a história dos corredores e da corrente entre Mediterrâneo e Atlântico, incluindo a temperatura da água no passado e idade dos depósitos movimentados e que se foram acumulando. "Até agora, a idade era sempre inferida, não era baseada em amostragens", realça Pedro Terrinha, explicando que se utilizarão nesses estudos fósseis de microrganismos aprisionados nos sedimentos.

Nisto tudo, Hélder Pereira será o interlocutor entre os 34 cientistas a bordo, de 13 países - incluindo as duas investigadoras do LNEG, Antje Voelker e Cristina Roque - e os museus de ciência, as escolas ou universidades de todo o mundo. Além dos relatos no blogue alojado no site do navio (http://joidesresolution.org/node/2053), haverá videoconferências, entre outras actividades. "Os miúdos podem fazer perguntas aos cientistas em directo", diz Hélder Pereira. "Vou andar com uma câmara de vídeo e mostrar as diferentes partes do navio. Há turnos de 12 horas, o navio nunca pára." No seu interior, esconde-se um mundo de laboratórios, espalhados por sete níveis.

Os relatos de Hélder Pereira permitirão ver os cientistas na procura da descoberta - como uma versão moderna do diário de bordo atribuído a Álvaro Velho, na viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, conhecido por Roteiro da Índia, e que conta uma das aventuras mais importantes dos Descobrimentos portugueses. "Serão dois meses sem voltar a pisar terra, com a particularidade de incluir o Natal e o Ano Novo."

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