A devoção teatral da escultura sacra espanhola chegou ao Museu de Arte Antiga

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Soldado (63 x 120 x 24 cm ) que pertenceu ao retábulo-mor do Mosteiro de San Benito el Real (1526-1532), em Valhadolid. O escultor é Alonso Berruguete

São quase 40 esculturas dos séculos XVI a XVIII. Nesta exposição é evidente toda a virtuosidade e dramatismo dos mestres espanhóis, que preferiam trabalhar em madeira. Até 25 de Março

Estão sentados no chão, com as pernas quase esticadas e as costas dobradas. Têm a cabeça inclinada e uma serenidade triste no rosto. Iluminados, à altura dos olhos dos visitantes, ganham uma humanidade impressionante. Será que alguém reparava neles quando estavam a 15 metros de altura, no topo do retábulo que Alonso Berruguete criou para o Mosteiro de San Benito el Real, em Valhadolid, Espanha? Por que insistiu o escultor nos pormenores da roupa, repleta de drapeados e de motivos decorativos, se ninguém se aproximava destes dois soldados?

O gosto pelo detalhe e o virtuosismo técnico são duas das constantes de Cuerpos de Dolor: A Imagem do Sagrado na Escultura Espanhola (1500-1750), a exposição que abre hoje no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, e que faz parte da Mostra Espanha 2011 (ver caixa). São quase 40 exemplares da produção espanhola, dos finais da Idade Média ao Barroco, saídos da colecção do Museu Nacional de Escultura de Valhadolid, que traçam um percurso cronológico pelos "séculos de ouro" e revelam a teatralidade das imagens devocionais.

Para Miguel Ángel Marcos Villán, um dos comissários da exposição e conservador do museu, esta exposição é uma "oportunidade rara" para o público português ficar a conhecer o melhor da escultura espanhola. "Com o Concílio de Trento [o da Contra-Reforma, entre 1545 e 1563] o poder da escultura aumenta", explica, "passando a ser fundamental para o culto do sacrifício e para a defesa e difusão dos mandamentos." É por isso que as peças de Cuerpos de Dolor demonstram de forma exuberante a tristeza, a dor, o desespero. Villán explica que a escultura sacra espanhola é, ao mesmo tempo, objecto de devoção e obra de arte, encerrando um "dramatismo expressionista que o artista usa para sublinhar a majestosidade do divino" sem abdicar da sua "humanização": "Há um gosto pela verosimilhança e as figuras parecem vivas. Tudo isto serve um propósito ideológico e estas obras, propaganda da Contra-Reforma, são feitas para nos pôr a duvidar das nossas próprias crenças e convicções, o que é particularmente útil para conquistar audiências protestantes."

Grande intercâmbio

Santos e carrascos, ascetas e mártires, Virgens e Cristos ocupam até 25 de Março a galeria de exposições temporárias do MNAA. A abrir Cuerpos de Dolor está um Santo Onofre em alabastro de Juan Anchieta (a única escultura em pedra), "claramente inspirado no Moisés de Miguel Ângelo". "Há uma grande predilecção da escultura espanhola pela madeira", diz Villán, "o que não acontece em Portugal, que em meados do século opta pela pedra, sobretudo de Ançã." Isto porque, explica Anísio Franco, comissário executivo, "a escultura renascentista portuguesa é um corte abrupto com a produção anterior". Como eram os contactos entre os escultores espanhóis e portugueses? "Eles circulavam." Sabe-se que Nicolau de Chanterene, escultor de origem francesa que desenvolveu grande parte da sua carreira cá, ia a Espanha buscar material e que Juan de Juni tinha cá propriedades. "Depois, é preciso não esquecer que, entre 1580-1640, temos o mesmo rei. O intercâmbio de escultores e esculturas é grande", acrescenta Anísio Franco.

No Palácio do Buçaco, por exemplo, há uma obra de Pedro de Mena y Medrano, um dos mestres espanhóis incontestados, representado na exposição com um Ecce Homo (c. 1679) de "grande virtuosismo técnico", define Villán. "Quisemos que a exposição mostrasse os vários temas, mas também uma multiplicidade de técnicas, de centros de produção", Sevilha e Granada, por exemplo, apostando em alguns dos nomes maiores: para além de Berruguete, Mena e Juni, há obras de Gregorio Fernández, Alonso Cano e Pedro de Sierra. Entre o relicário de Santa Ana (1540-1545) em agonia e a bela Maria Egipcíaca (séc. XVIII) de Luis Salvador Carmona, a asceta que lembra uma bailarina a vaguear pelo deserto, há dezenas de obras em que "dogma e prazer estético" se misturam, muitas delas expostas no estrangeiro pela primeira vez, outras acabadas de sair da oficina de restauro (o São Paulo de Juan de Valmaseda, comprado no final do ano passado).

Com Cuerpos de Dolor, lembrou ontem o director do MNAA, António Filipe Pimentel, o museu dá continuidade à colaboração com Valhadolid, que há um ano apresentou a exposição de pintura dos "primitivos" portugueses (agora em Valência). "Conhecer a escultura espanhola deste período é fundamental para a compreensão da nossa escultura", defende Pimentel.

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