A noite que mudou o poder na Rocinha

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Helicóptero militar a sobrevoar ontem a Rocinha, durante a operação SERGIO MORAES/REUTERS

Tanques e milhares de homens ocuparam ontem a mais simbólica favela do Brasil sem tiros nem abusos denunciados pela população. O PÚBLICO passou a noite na Rocinha

Sábado, 18h15. O começo da Via Ápia fervilha. É a principal entrada da Rocinha, para quem vem por baixo. Em volta, os bairros ricos do Rio de Janeiro, no meio este morro atulhado de barracos onde vai acontecer a maior operação de guerra anunciada pela polícia carioca, com a ajuda da Marinha.

Impossível confundir Martins na multidão. À beira dos 65 anos usa umas barbas de Velho Testamento. Como quase todos aqui, veio jovem do Nordeste. Foi cobrador de autocarro, garçon, comerciante, administrador de bairro, activista social. Dormiu em chão de tábua, entre duas frestas, para fugir ao frio. Agora tem uma casa na Travessa da Liberdade, esquina com a Via Ápia.

"Esta esquina é uma grande boca-de-fumo", diz. Ou seja, ponto de venda de droga, principalmente maconha (marijuana) e cocaína, que chega como pasta-base e é transformada em laboratórios na favela. Um negócio de 40 milhões de euros por ano. À frente deste poder paralelo esteve até quarta-feira Antônio Bonfim Lopes, a quem chamam o Nem, traficante da facção Amigos Dos Amigos (ADA), preso por polícias militares que terão recusado 400 mil euros de suborno. No seu primeiro depoimento, nem disse que metade da facturação era para pagar a polícias corruptos. O tráfico não é só um sistema na favela, controlando táxis, mototáxis, carrinhas e toda uma rede de dependências. Também alimenta as chamadas "bandas podres" da polícia e o consumo de droga da classe média carioca. A Rocinha é o maior mercado paralelo da Zona Sul do Rio de Janeiro. Deixará de ser?

"Essa boca não está funcionando desde ontem", explica Martins. Os traficantes que não saíram estão quietos, nada de armas à vista. "Eu diria que tem só uns 10 por cento de probabilidade de tiros." Quando a invasão policial avançar, a partir das 2h30.

A essa hora encerram todos os acessos à Rocinha, bem como às favelas contíguas, Vidigal e Chácara do Céu, também abrangidas pela operação. O poder público tem vindo a instalar Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), em preparação para o Mundial de Futebol e para as Olimpíadas. Rocinha e Vidigal fazem parte da vista de Ipanema. E Ipanema vinha cá comprar, ou mandava vir.

"Sábado de manhã nesta esquina tinha sempre uns 50, 60 homens armados e às cinco da tarde era a rendição", diz Martins. "Mas nos últimos meses já não se viam tanto." Havia rumores de que a operação se aproximava, ao fim de décadas de ausência do estado. Para milhares de famílias isto significou décadas de convivência com o tráfico, único poder presente. "Tem coniventes e conviventes", distingue Martins. "Você pode escolher não ser conivente. Agora, convivente é impossível não ser."

19h10. No boteco Bate-Papo, mesas cheias de gente a ver a Rocinha na televisão. Cá fora, na curva, churrasco com espetadas e linguíça. Martins é interceptado por uma avó que sai de uma loja de ferramentas para lhe puxar as barbas.

"Tu "tá nervoso?", pergunta ela.

"Não", sorri ele.

"Eu "tou. Moro aqui há 40 anos e nunca vi nada igual, tem que ficar nervosa."

Mas quando a repórter lhe pergunta o nome, a avó faz que cose a boca. "Porque se você fala da polícia e não dá certo..." O tráfico habituou as pessoas a calarem a boca sobre o tráfico. E não é certo que a polícia ganhe.

Só estar com um jornalista é arriscado, diz Martins, seguindo pela ruela. "Eu falei que ia ter uma jornalista lá em casa e a moça que trabalha comigo disse: "Pô Martins, você é louco? Eu quero trabalhar contigo muitos anos.""

19h20. Caminho dos Boiadeiros, um dos principais que sobe o morro. Martins entra na papelaria de Sheila e Tico, trintões, morenos.

Tico: "A gente "tá com medo baseado no que aconteceu no Complexo do Alemão [abusos da polícia, roubos na revista às casas]."

Martins: "Mas vai ser um dia de guerra. Tem que dizer à polícia: "Sim senhor, pode entrar. Levar é que não." Há dez anos eu seria contra essa ocupação, hoje não."

Sheila: "A gente vive num estado onde as pessoas se corrompem e a gente é tida como um escudo. O comandante diz que vai encarar isto como uma guerra. Porque é que a gente tem de viver isto? Porque mora na favela?"

Martins: "Foram erros da polícia anterior."

Sheila: "Do estado."

Martins: "Sim, do estado."

Sheila: "Tive de levar o meu filho de 14 anos para a minha mãe. E o policial que revistou a gente disse: "É melhor mesmo, porque [os polícias] vão botar o pé na porta e entrar." Martins, você não acha que isso é porque a gente mora na favela?"

Martins: "É porque tem uma situação aqui."

Sheila: "Porque eles deixaram acontecer! Eu tenho de escutar helicóptero razando? Nos outros lugares [a ocupação da polícia] não resolveu o problema."

Tico: "Eles continuam vendendo droga, só não tem arma."

Passa uma mulher com um colchão, um homem com uma mala. Há gente a deixar a favela. Martins defende a liberalização das drogas. Sheila contesta, acha que a sociedade não está preparada. Uma vizinha vem anunciar: "Estão vindo tanques do Leblon. Meu filho trabalha lá e me disse."

20h20. "Pode acontecer tudo, uma carnificina ou nada", prevê Aurélio Mesquita, mulatão de tranças curtas, encostado ao balcão de um boteco. Faz teatro, fez um circo com lixo, todos os anos encena a Via Sacra num pedaço da Rocinha. "A Rocinha pára." E não agradece a operação policial: "É um dever do estado e é um direito nosso. Está na constituição. Agora, se o estado vier, terceirizando para ONG"s, a gente está fodido. É um trabalho grande que o estado tem de fazer aqui. Valores que foram jogados fora e que têm de ser colocados de novo. Mesmo que não corra bem é um começo. É o estado a cumprir o seu papel. No jornal aparece que somos beneficiados, mas não temos de pedir desculpa por séculos de abandono."

"Tudo pronto para o que vai acontecer neste domingo!", assegura o telejornal no boteco, ao melhor estilo "bandidos" versus "forças do bem".

21h. A casa de Martins, improvisada piso a piso até ao terraço, é um primor de cuidados. Fruta coberta por uma rede, ervas de molho, obra da sua ex-mulher Miriam, que hoje também vai cá dormir. Três ex-mulheres e de bem com todas, dois filhos já independentes, dois ainda cá em casa. Um foi ver o jogo do Fluminense, o outro está a trabalhar. Vai ser a guerra, mas entretanto ainda é cedo.

Miriam está a cozinhar. Ganha a vida como empregada de casas que têm mais quatro empregados. Por exemplo, uma em Ipanema onde a tarefa dela é só passar a ferro. A Rocinha também é isto: o dormitório das Miriams, cozinheiras, amas-secas, balconistas.

22h30. Chega Lucas, o filho mais novo, para dois dedos de conversa antes de tomar banho, trocar de roupa e ir dormir com a namorada. Um homem apaixonado, bonito como o pai. "Não se pode dizer que é retomada do território porque não teve uma preocupação do poder público antes. Mas também não se pode chamar invasão porque não é do outro."

Martins prefere a palavra ocupação. "Eles estão ocupando espaço. Mas se tiver resistência, é invasão. No Complexo do Alemão foi uma invasão."

Chega Guilherme, o outro filho, abatido pela derrota do Fluminense, camisa do clube, cabelão amarrado atrás, ainda mais bonito que o irmão, emais tímido. Quase cora quando diz, a propósito da operação policial ser boa ou má: "A gente se sente um pouco de outro mundo. As pessoas não vêm aqui." Não contando com os safaris turísticos.

Lucas concorda: "Ninguém acha legal ter um poder paralelo. Mas futuramente também se pode tornar local de milicianos." A milícia, composta por ex-polícias, controla várias regiões de onde o tráfico saiu ou não existia, e é tão ou mais violenta.

Porque é que Martins diz que há dez anos seria contra esta ocupação e hoje não? "Porque a situação está insuportável. Para mim, que vim da liberdade total [do Nordeste], vir para um lugar onde você não pode conversar com os amigos, tem de fechar a porta... O tráfico era uma grande opressão."

Guilherme remata: "E você não podia exigir as leis normais da cidade. Tinha um som alto e você não podia chamar a polícia. O estado democrático de direito é uma conquista recente do Brasil mas não tem na favela."

23h22. Há a história daquele churrasco na Rocinha, conta Guilherme, em que um amigo entornou sem querer pedaços de carne em cima do casaco de um rapaz do tráfico. "O cara pôs a arma na cabeça dele. A gente nunca sabe o que vai acontecer." Há códigos, punições, os novatos no tráfico são punidos por abusos. Mas entretanto toda a gente tem alguma história para contar sobre como viu a morte.

Domingo, 1h. Saímos para a Via Ápia. Lojas fechadas, rua quase deserta. Inédito numa noite de sábado para domingo na Rocinha. Últimos trabalhadores subindo a pé, recém-saídos dos restaurantes da Zona Sul, pouco antes das estradas serem cortadas.

O negrão William da Rocinha, político local e ex-presidente da Associação de Moradores, está à entrada da favela, junto a um magote de repórteres com coletes à prova de bala e carros da polícia. "Estamos aqui para fazer valer os direitos dos moradores", diz ele. "Queremos que o governo priorize as famílias que moram em situações desumanas. Tem gente na Rocinha que mora no meio dos ratos, defecando em latinhas. Isso não pode acontecer na maior favela da América Latina."

Voltamos a subir a Via Ápia. Martins nunca viu a Rocinha assim, sem mototáxis, quase sem gente, um vulto a vasculhar no lixo. "Esse cara é morador do asfalto e vem aqui comprar droga. Não sei como vai ser agora."

Uma mulher roda sozinha na cadeira de rodas. "Essa menina ficou paralítica por causa da droga", conta ele. Foi levada para uma orgia e a polícia bateu nela. "Nunca teve tanto espaço para rodar como esta noite."

4h30. O rugido de algo cada vez mais próximo. Pás de helicópteros. Blindados. A casa treme. Três tanques sobem a Via Ápia.

5h30. Ruas tão desertas que se ouvem pássaros. Neblina sobre a gigantesca Pedra da Gávea.

5h50. A mulher da cadeira de rodas continua no mesmo lugar. O helicóptero não pára de fazer voos rasantes. Os homens do BOPE (tropa de elite da Polícia Militar) já tomaram o cimo do Rocinha, vindos da Gávea.

6h. Martins faz café. Miriam segue as notícias na televisão, embrulhada numa manta: a polícia já tem mil homens dentro da Rocinha.

6h20. Na esquina da Via Ápia com a Estrada da Gávea, uma escavadora do BOPE manobra na curva. Os traficantes tentaram barricar os caminhos com obstáculos, incluindo motas. Vêem-se vários carros do batalhão ao longo da estrada. Agentes a pé, arma em riste, cobrindo esquinas, entrando em ruelas. Marcas de tanque no chão.

6h50. Na sequência de curvas a que chamam o S, o estudante Leonardo filma o avanço do BOPE. Parece uma cena de filme, o dia a clarear, a caveira que é símbolo do batalhão pintada nos carros, o perfil dos homens cortado à faca, armas em todas as direcções. "Comecei hoje a fazer um documentário sobre a Rocinha", diz Leonardo. Tem 29 anos e sempre morou aqui. Está eufórico. "É uma sensação de liberdade. Eu não tinha essa oportunidade de estar parado com uma câmara assim. O tráfico impedia a gente de usar."

Um carro blindado escorrega no asfalto: óleo deitado pelos traficantes. Um carro "à paisana" da Polícia Militar tenta expulsar-nos: "É uma zona conflagrada. Não podem estar aqui!" Até que desiste e desce.

7h20. Na curva acima, vários carros do BOPE, e uns 20 homens espalhados por esquinas, alguns já dentro dos prédios, arma posicionada à janela. Desce um tanque, outro e outro. Três tanques no alto da Rocinha. Martins nunca viu nada semelhante.

Os soldados do primeiro tanque aproveitam para tirar fotografias. Aparecem moradores a espreitar por cima do Cabeleireiro Fique Bela.

O BOPE continua a correr entre ruelas, depois cola-se à parede, apertando a arma, como no "Tropa de Elite". Só não há tiros.

Um galo canta.

8h. Feito o anúncio oficial de que Rocinha e Vidigal estão tomados, os acessos às favelas abrem ao trânsito.

8h15. Alexandre e Vânia sobem a rua 4 com a filhinha Safira ao colo. Ele trabalha num supermercado da Barra da Tijuca, ela no Shopping Leblon. "Não vamos ter mais de ver pessoal de fuzil na mão", diz Vânia. "Para ela, que é pequenina, é legal."

8h30. Leonardo Lima, o presidente da Associação de Moradores, desce a Estrada da Gávea com os seus colaboradores, todos de t-shirt amarela. O que se diz na favela é que foram eleitos com a ajuda do tráfico. Passaram a noite em claro. "Por enquanto nenhum morador fez nenhum reclamação", assegura Leonardo. E os traficantes, saíram todos? "Não posso responder. A nossa preocupação não é com o tráfico nem com a polícia, é com o morador."

11h. O governador Sérgio Cabral falou em "dia histórico e emocionante". O secretário de Segurança José Maria Beltrame disse: "O que começou hoje não tem data pra ser acabado. A área, sem dúvida, é muito grande. Trata-se de uma das maiores favelas da América Latina, e talvez do mundo."

Segundo a Secretaria de Segurança, participaram na operação três mil homens entre polícias militar, civil e federal, militares do Corpo de Fuzileiros Navais, 18 blindados, quatro helicópteros, três aeronaves e 13 cães farejadores. Os polícias que revistam as casas estão proibidos de usar mochilas, para evitar roubos.

Ao longo da manhã, algumas dezenas de armas e 100 quilos de maconha são apreendidos. A polícia dá com mansões de traficantes. Continua a não haver tiros e apenas uma prisão foi feita.

Antes da uma da tarde, no S onde os traficantes derramaram óleo, a polícia hasteia uma bandeira do Rio e uma bandeira do Brasil.

Isso Martins já viu em casa, pela televisão.

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