Manuel Fúria tem uma desculpa para ser épico

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Por entre guitarras, baixos, bandolins, tripés, baterias e microfones, um tipo de barba à Joaquin Phoenix no dia em que resolveu fazer de conta que ia deixar o cinema PEDRO CUNHA

O primeiro disco a solo de Manuel Fúria, líder de Os Golpes, andou a ser preparado no norte, e a ser gravado na cidade, em Belém, que é onde se vai parir. É um disco enorme, de homenagem às raízes e ao campo. É uma desculpa para ser épico. É brilhante.João Bonifácio

À porta do Belém Clube, em Lisboa, havia, há dias, um frigorífico gigante deitado de lado e com rodinhas, alimentado electricamente por um par de grossos fios eléctricos pretos. Claro que se alguém, questionando-se por que raio estaria ali um frigorífico gigante deitado de lado, abrisse a porta do dito, descobria uma outra coisa: um estúdio de gravação portátil de onde emanava uma música simultaneamente pop, rural e sinfónica.

Seguindo os fios que saíam daquela "vanette" rectangular entrava-se na sede do Belém Clube, instituição que não deve ser confundida com Os Belenenses. É um edifício antigo, consta que em risco de fechar, dominada pela sala de baile, uma divisão ampla e alta, de soalho inclinado em direcção ao palco. A fímbria da sala é dominada pela plateia em que as cadeira estão (possivelmente há muito) recolhidas; lá em cima há um balcão ornado e minúsculas luzes que dão ao espaço uma luz rarefeita. E no palco, por entre guitarras eléctricas e acústicas, baixos, bandolins, tripés, baterias desmontadas e microfones, um tipo de barba à Joaquin Phoenix no dia em que resolveu fazer de conta que ia deixar o cinema.

O tipo, que dá pelo nome Manuel Fúria e é conhecido por ser guitarrista e vocalista da banda Os Golpes, está a tentar gravar as vozes de uma faixa chamada "Que haja festa não sei onde", presumivelmente o primeiro single do seu disco de estreia a solo - aquele que estava então a gravar e que sairá em Janeiro do ano que vem.

Explica-nos que aquele é "o momento [Julian] Casablancas [vocalista dos Strokes] do disco" mas a imagem podia ser outra: dos auscultadores sai uma música que lembra os Joy Division no meio do pasto, acordeão e cordas a unirem-se a uma "new wave" de claustro. A melodia é pop, as guitarras são indie, mas tudo em volta é épico, grandioso - e o próprio som assemelha-se a um monumento.

Ele bebe água para aclarar a garganta, dá uns goles de aguardente para combater uma gripe que o atacou uns dias antes e lança-se ao tema. Deixamos um ouvido descoberto para ouvir a voz ecoar solitária na sala enquanto o outro está recolhido dentro do auscultador de onde emana a faixa gravada há uns dias. Ele tenta uma, duas, três vezes, mas de dentro do frigorífico dizem-lhe que a voz dele está a ficar nasalada, que assim não dá. Pelo que pega nos óculos de sol e vai à farmácia encher-se de comprimidos, rebuçados, drops, gotas e xaropes.

Meia hora depois a voz sai-lhe limpa e mistura-se na perfeição com o ambicioso som criado por um conjunto de onze músicos.

"A minha maneira de pensar sempre foi grandiosa", dizia-nos um bocado depois quando nos sentámos a ouvir as vozes que havia gravado.

Ele não está a brincar. A primeira faixa que nos mostra soa aos Triffids mais opulentos, com timbalões a ribombar, cordas pelos céus, uma parte disco-sound, guitarras glam. A segunda que ouvimos, "Estandarte", é aberta por um acordeão que antecipa o refrão prenho de avisos: "Tem cuidado, rapariga/ tem cuidado com a cidade". De seguida há uma explosão de metais e violinos. Uma terceira faixa confirma a tendência sinfónico-épica: "Tempestade" é um pouco um grito de Viriato transformado em prog-rock.

Num raro momento de admissão das suas fragilidades Manuel admite que a imponência das canções pode derivar de "uma necessidade" de se esconder, de se "camuflar" em algo que seja muito maior do que ele.

Os passos e as pernas

Nem sempre escreveu tão em grande, no entanto. Há uns anos constava do Myspace deste rapaz um mini-álbum chamado "Manuel Fúria Apresenta As Aventuras do Homem-Arranha", uma mão cheia de canções lo-fi com ambições pop e a promessa de ouro à espera de polimento nos refrões. Daí para o disco de estreia dos Golpes foi um salto valente - tudo mais encorpado, um som desenhado para rebentar as colunas do automóvel. Agora o salto é ainda maior - e já não é o automóvel que fica em risco mas a casa inteira. E no entanto este primeiro verdadeiro disco a solo é, diz, "a continuação desse mini-disco" que só teve edição digital.

"Esse primeiro disco foi gravado de forma arcaica. Quando houve necessidade de reunir uma banda para o tocar ao vivo tive de compor mais canções porque só tinha quatro ou cinco. Fui sempre pensando como as gravaria".

No Verão de 2010 ManUel reuniu, em casa dos pais, no norte, uma banda para gravar esses temas. Mas depois as coisas "ficaram na gaveta por causa dos Golpes". E foi "compondo e gravando novas canções em casa". Seleccionar o que era para o disco a solo e o que era para os Golpes não foi difícil: "Os Golpes são uma banda e toda a gente traz ideias e faz arranjos e decide em conjunto e com estas canções eu não queria enfrentar essa luta porque já sabia de antemão o que queria". O disco foi sendo imaginado dentro da sua cabeça, com um som sinfónico definido. Havia "medo de que tudo o que tinha imaginado caísse", confessa. "Mas não caiu", diz, abrindo os braços para a mesa de mistura de onde salta mais uma canção imponente. "E é lindo".

É, de facto, lindo. E não trai a grandeza que o dono lhe queria imprimir - antes pelo contrário, reflecte uma ambição desmesurada, uma vontade de fazer em grande. Não se pensa que houve 11 músicos a gravar. Pensa-se que houve 111.

"O meu modo de actuar sempre foi dar passos maiores do que as pernas. Nunca tive medo de seguir os meus instintos e fazer pela vida", diz, enquanto metais fazem fogo-de-artifício na mini-sala. "Com audácia, com lata, chega-se onde se quer".

A lata cristalizou-se nisto: convidar, no início do verão, os mencionados 11 músicos para gravar estas canções em modo "Tudo ou nada". Não são os mesmos músicos que foram com ele para o norte em retiro espiritual, são outros, que contribuíram com arranjos novos dando a volta a algumas canções.

"Fui para o norte naquela altura para me retirar de Lisboa, da cidade. O disco tem a ver com isso: é uma elegia rural, da simplicidade". Segundo Fúria, o álbum parte do "Sermão da Montanha", de Padre António Vieira, e repete uma ideia sublinhada num dos versos cantados no disco: "Só quero ver Lisboa a arder". "Mais cedo ou mais tarde quero sair daqui", diz, reportando-se a Lisboa. "Esta terra terá de ser um ponto transitório na minha vida".

"Em geral, Portugal é um país rural. São uma minoria as famílias com várias gerações nascidas nas cidades". Ele afiança que o disco serve para pensar como se posiciona no mundo numa escala progressiva que reflecte as suas preocupações: "a minha casa, a minha rua, o meu bairro, a minha freguesia, a minha cidade, o meu país, o mundo".

Diz que não tentou "enfiar tudo o que se podia imaginar" no disco. Antes procurou "enfiar algumas coisas, as essenciais para as canções terem vida". Acima de tudo, "não queria esperar". "Não queria esperar para fazer este disco quando fosse um músico virtuoso ou soubesse escrever os arranjos em pauta. Quero que o disco registe este tempo e este entusiasmo".

Sendo um disco que homenageia um campo idealizado - por oposição ao cinismo da cidade, digamos - e que procura recriar aquela coisa de aldeia reunida a cantar, havia referências que Manuel tinha e que lhe davam uma certa segurança do caminho a seguir: os Waterboys, os Pogues, "aquela coisa de ter muita gente a tocar ao mesmo tempo". Mas não queria que o disco fosse só isso. "Tinha de ser outra coisa, uma coisa que só pudesse ter sido feita em Portugal".

Portugal é sempre uma ferida no coração de Manuel Fúria, uma ferida que ele lambe com carinho. Por vezes parece que ainda sonha com o Portugal imperial de outrora, mas rejeita essa ideia: "O Império, para mim, funciona como um livro de cavalaria funciona para um puto: põe-no a sonhar. Fá-lo inventar e imaginar coisas. O Império é uma coisa romântica que me alimenta".

Ainda assim há uma ideia por trás do disco que ele gostaria de ver transposta para o país: fazer bem, fazer em grande. "O país está demasiado preocupado consigo mesmo, com o que vai dizer de si mesmo. Devia estar preocupado em fazer bem, fazer aquilo que nos é específico, em vez de diluir-se na especificidade dos outros".

Isto é o que move Manuel Fúria: fazer a sua especificidade, fazê-la em grande, fazê-la bem. Portugal, bem "Portugal é uma desculpa". Mas "é a melhor das desculpas".

Um cavaleiro, este rapaz. Um cavalheiro e um cavaleiro.

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