Hermitage O Prado é agora a casa dos czares

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Rapaz com Alaúde ANDREA COMAS/REUTERS

O Hermitage aterrou em Madrid. A exposição que abre hoje no Prado faz uma viagem por 25 séculos da História da Arte através de 180 obras da colecção do museu russo, um dos mais importantes do mundo. Pintura, escultura, desenho e artes decorativas saídos das colecções dos czares. Ticianos, Caravaggios, Monets, Picassos e Kandinskys, mas também caixas de tabaco cravejadas de pedras preciosas, diademas gregos e um anel que uniu dois amantes há mais de 2000 anos.

Há qualquer coisa de aeroporto no átrio dos grandes museus, qualquer coisa de gare de comboios: centenas de pessoas de um lado para o outro, filas intermináveis, seguranças atarefados, estudantes de mochila com ar de quem não dormiu. É assim o Prado a menos de uma semana da abertura da exposição que leva ao museu madrileno 180 peças da colecção do Hermitage de São Petersburgo, um dos mais importantes do mundo.

A avaliar pelos japoneses e alemães que tentam, sem sucesso, visitar O Hermitage no Museu do Prado (de hoje a 25 de Março) quando a exposição está aberta apenas às dezenas de jornalistas espanhóis e estrangeiros que a percorrem no dia da apresentação à imprensa, a embaixada do museu russo vai certamente aumentar a confusão no átrio nos próximos meses.

Entre Fevereiro e Maio, o Museu do Prado levou 60 obras da sua colecção à cidade de Pedro, o Grande, numa exposição que marcou o início de um ano de intensos contactos entre a Espanha e a Rússia. O Prado no Hermitage foi vista por 630 mil pessoas, um número-recorde para as exposições temporárias neste museu que tem anualmente 2,6 milhões de visitantes. Agora é a vez dos russos mostrarem os tesouros que guardam as suas galerias do Palácio de Inverno, através de um núcleo de obras que abrangem 2500 anos de história, começando no século IV a.C.. Pintura, escultura e desenho, mas também artes decorativas, vestidos da imperatriz, jóias que saíram de escavações arqueológicas ou do atelier de Carl Fabergé. Um pequeno Hermitage: "É a maior e mais importante representação das colecções do museu fora do museu", garantiu aos jornalistas o director adjunto do Hermitage, Georgy Vilinbakhov. "Quisemos mostrar toda a diversidade do nosso museu" e, em tempos de crise generalizada, provar que a Europa tem muito para oferecer ao mundo: "A cultura pode salvar-nos, tal como a beleza."

Miguel Zugaza, director do Prado, concorda com Vilinbakhov, que viajou para Madrid em substituição de Mijail Piotrovski, o especialista em História e Arte Islâmicas que há 20 anos dirige o Hermitage e que, por isso, é uma espécie de ministro da Cultura russo. "Este é um projecto épico", admitiu Zugaza na conferência de imprensa. Um projecto "difícil", "exigente", comparável à tentativa de condensar dois dos clássicos da literatura espanhola e russa: "Fazer esta exposição foi como resumir o Quixote ou o Guerra e Paz (...). Gosto de pensar que ela é como uma antologia de poesia em que escolhemos apenas os versos mais belos, mais intensos."

É a primeira vez que o Prado permite que a nova ala de exposições temporárias seja ocupada durante tanto tempo pela mesma mostra (20 semanas - geralmente são 14), o que coincide com a decisão de passar a abrir o museu sete dias por semana, explicará mais tarde o seu director adjunto, Gabriele Finaldi: "Esperamos que muitas pessoas venham ver esta amostra da magnífica colecção do Hermitage, que fiquem para ver como viviam os czares, como se interessavam pela arte dos mestres do século XVI e XVII sem deixarem de estar atentos ao que se fazia na sua época."

Os coleccionadores

O imenso retrato de Catarina II (Johann Baptist Lampi, 1793) parece ainda mais imponente sobre a parede amarelo-ocre do primeiro dos nove núcleos da exposição, o mesmo em que se reúnem as outras duas figuras a que a história da colecção, e do próprio palácio, está ligada: Pedro, o Grande (tudo começa com o seu gabinete de curiosidades, onde guardava peças arqueológicas e espécimes exóticos), e Nicolau I, que amplia o Palácio de Inverno e o transforma, em parte, num museu, em meados do século XIX.

Apesar da importância dos dois imperadores, é a Catarina II que se deve o espírito do Hermitage e uma parcela muito significativa do seu acervo, de que hoje fazem parte três milhões de peças, das quais apenas 3% estão expostas no gigantesco complexo palaciano nas margens do rio Neva que, em 2014, ano em que se festeja o 250.º do museu, deverá abrir ao público uma nova ala dedicada à arte dos séculos XIX, XX e XXI.

Foi a imperatriz, que deu continuidade ao trabalho de Pedro, o Grande e transformou a Rússia numa superpotência, que andou pela Europa a comprar colecções de arte de ministros (Pierre Crozat, ministro das Finanças de Luís XV foi um deles) e a encomendar obras a artistas como o parisiense Jean Siméon Chardin. O gosto francês está, aliás, muito presente no dia-a-dia desta princesa alemã que se tornou imperatriz da Rússia, do nome afrancesado do museu aos seus pintores de eleição, passando pela correspondência com Voltaire (Catarina chegou mesmo a comprar a sua biblioteca depois da morte do filósofo). "Catarina II é a grande coleccionadora, sobretudo de pintura", explica Gabriele Finaldi, que partilha com Sviatoslav Savvateev o comissariado da exposição. "[A imperatriz] gostava de teatro, de música, de filosofia, era uma mulher de grande cultura e inteligência política."

Do ouro da Sibéria à pintura

Quem percorre os primeiros módulos d"O Hermitage no Museu do Prado não pode deixar de reparar nos artefactos saídos dos túmulos dos chefes das tribos nómadas que dominavam a Eurásia no primeiro milénio a.C.. Fivelas de cinto, pregadeiras e um magnífico pente com uma cena de batalha (século IV a.C.) - todos da colecção de Pedro, O Grande - rivalizam com o espólio grego, onde, para além de um pendente com a cabeça de Atena e um diadema com o nó de Hércules, característico da ourivesaria helénica, há um pequeno anel, em forma de pé, encontrado no túmulo de um casal, em cuja inscrição podemos antever uma história de amor: "Gestiei deu-o a Mammia".

Se os artefactos resultantes de trabalhos arqueológicos impressionam - ainda hoje a Rússia dá grande importância às escavações, tendo 20 equipas a trabalhar em simultâneo, dentro e fora do país -, as outras peças de ourivesaria ocidental e oriental, muitas delas encomendas, outras presentes de chefes de Estado, não lhe ficam atrás. A deliciosa caixa de tabaco de Frederico II da Prússia - num surpreendente cor-de-rosa-forte, decorada com uma cena campestre, com dois amantes - e o ramo de flores da casa Fabergé, o famoso fabricante dos ovos da Páscoa do czar, são reflexo do luxo da corte, mas também de um gosto erudito, lê-se no catálogo da exposição, coordenado por Mijail Piotrovski, e que abre com um texto do primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, e outro do líder do executivo espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero (a cultura ao serviço da diplomacia, de acordo com a melhor tradição europeia).

É na pintura, no entanto, que estão as grandes estrelas da exposição, a começar pelo São Sebastião (c. 1576), de Ticiano, uma obra tardia do mestre de Veneza, e terminando no Quadrado Negro (c.1932), de Malevich, que fecha a exposição. Pelo meio ficam Van Dyck e Rubens, El Greco e Mengs, Carracci e Rembrandt, com um quadro que impressiona pela sua humanidade (A Queda de Amã, de 1660-65, um dos 30 quadros do holandês que fazem parte da colecção do Hermitage). "O Ticiano tardio - uma obra que revela o génio do pintor, que na altura estava quase cego - vai muito bem com os Ticianos do Prado", defende Finaldi, lembrando que há quem garanta que esta é a última obra, inacabada, do pintor, escondida durante anos nas reservas do Hermitage.

Lamentação Sobre o Corpo de Cristo Morto (1576-80), uma obra serena e luminosa de Veronese, valeria por si só uma visita à exposição: Maria debruçada sobre o corpo do filho, a quem um anjo de caracóis loiros dá a mão, numa cena que associa intimidade e transcendência. E, não muito longe do pio Veronese, podemos encontrar o rapaz do alaúde, com os seus lábios vermelhos e o olhar lânguido a sugerir grande sensualidade e erotismo, que Caravaggio pintou entre 1595 e 1596; e O Almoço (c. 1617-18), uma das típicas cenas de taberna de Velázquez. Como é ver um Velázquez que não é do Prado exposto no museu? Finaldi responde: "É estranho, mas bom. Se tivermos em conta que Velázquez terá feito 120 pinturas ao longo da vida [há mais 10 ou 15 cuja autoria é discutível] e que 45 estão no Prado, é como se fizéssemos do dono da casa um convidado. Por outro lado, é óptimo porque este é um tipo de bodegón de Velázquez que o museu não tem - do início da sua carreira, quando ele teria 20 anos e vivia ainda em Sevilha."

Poderosa Madalena

Passeando pela exposição, Finaldi não tem dúvidas em escolher uma obra - a Maria Madalena penitente de Antonio Canova (c. 1808-9), escultura em mármore que é considerada uma das melhores obras do artista italiano. "É uma escultura belíssima, comovente física e psicologicamente. E depois há este estranho paradoxo de ser ao mesmo tempo incrivelmente erótica e espiritual. Surpreende-me sempre toda esta emoção na pedra fria." A mesma emoção densa, pesada, que se reconhece no molde de barro de Bernini para a obra O Êxtase de Santa Teresa.

Subindo as escadas - para trás ficaram as paredes vermelhas e azuis, a lembrar as de muitas das salas do Palácio de Inverno das margens do Neva - entra-se no núcleo onde estão expostos os exemplares da colecção de arte dos séculos XIX e XX. É lá que podem encontrar-se Claude Monet, Paul Gauguin, Paul Cézanne, Henri Rousseau, Pablo Picasso e Henri Matisse, este último com A Conversa (1909-12), uma pintura em que o pintor aparece vestindo um pijama às riscas.

A exposição fecha com dois russos: Composição VI (1913), de Vasily Kandinsky, e Quadrado Negro (c. 1932), de Kazimir Malevich; ambas muito expressivas na carreira dos seus autores e na própria História da Arte. "Queríamos obras fortes para fechar", diz o comissário russo, "e nada melhor do que estas duas. [A de Kandinsky] transformou-se no manifesto da arte abstrata, [a de] Malevich põe toda a gente a discutir: tenho colegas no Hermitage que dizem que está fora do lugar e outros que defendem que é o melhor da colecção."

Percorrer as salas desta exposição que reúne em Madrid uma "sinopse incompleta" do Hermitage, um dos membros do G7 dos museus, faz pensar que é obrigatório visitar o original. É nele que Piotrovski, o director que não viajou por motivos de saúde e que cresceu nos corredores do palácio dos czares porque herdou o cargo do pai, passa grande parte dos dias. Para ele este museu que tem 2000 funcionários e um destacamento de gatos a trabalhar no sótão (segundo o diário espanhol El País, sãocerca de 70 com a tradicional missão de perseguir ratos e ratazanas) é múltiplo: é o da arqueologia do antigo Oriente e dos clássicos, de Ticiano e de Caravaggio, de Picasso e Kandinsky. Até Março, o Hermitage fica mais perto.

O P2 viajou a convite do Turismo de Espanha

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