Amato Lusitano, um cérebro em fuga no século XVI

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Médico judeu no tempo da Inquisição, não admira que tenha saído do país, nunca tendo regressado

Completam-se neste ano cinco séculos após o nascimento, em Castelo Branco, não só de um dos maiores médicos portugueses mas também de um dos maiores médicos de todos os tempos. Chamava-se João Rodrigues, nome a que acrescentou o da sua terra natal, vindo mais tarde a adoptar o pseudónimo de Amato Lusitano, nome pelo qual ficou conhecido em toda a Europa.

Na sua época, passou-se a ver a abóbada celeste e também o corpo humano com outros olhos. Em 1543 eram publicados os livros Revolução dos Orbes Celestes, do astrónomo polaco Nicolau Copérnico, e Fábrica do Corpo Humano, do médico belga André Vesálio. Estas duas obras inauguraram a Ciência moderna, fundada na observação e na experiência. Esse é, por isso, convencionalmente, o ano do nascimento da Ciência tal como a conhecemos hoje. Seis anos antes, o rei D. João III tinha mudado a Universidade de Lisboa para Coimbra (não havia ainda a Biblioteca Joanina, que exibe actualmente uma exposição sobre Amato Lusitano). E, sete anos antes, o mesmo rei tinha estabelecido a Inquisição, que, embora no início quisesse contrariar a Reforma protestante, cedo se virou, entre nós, contra os judeus.

Amato Lusitano era judeu. Não admira, por isso, que tenha saído do país em 1534, nunca tendo regressado. Depois de ter estado em Antuérpia, obteve um lugar de professor de Medicina na Universidade de Ferrara, em Itália, onde, no exercício da dissecação de cadáveres, descobriu as válvulas venosas, uma observação que haveria de conduzir passadas algumas décadas à identificação do papel do coração no sistema circulatório. Tratou o Papa. Morreu, vítima de peste, em Salónica, então no Império Turco e hoje na Grécia, depois de ter passado em errância por várias cidades, como Ancona, em Itália, e Dubrovnick, hoje na Croácia. Tinha apenas 57 anos: a longevidade não era naqueles tempos o que é hoje, graças, em boa parte, aos progressos da medicina. Vesálio, por seu lado, só viveu 50 anos. Talvez se tenham encontrado, pois um colega e amigo de Amato em Ferrara era irmão de Vesálio (já na altura havia famílias com vários médicos!). Segundo alguns autores, Amato figura até no areópago dos doutores mais notáveis do seu tempo, uma vez que aparece na portada do livro de Vesálio, debruçando-se sobre um corpo anatomizado.

As citações existem desde que há Ciência. Vesálio conhecia o trabalho de Amato e citou-o para criticar o seu trabalho sobre as veias. Reciprocamente, Amato referiu também várias vezes Vesálio, também num tom crítico. Lê-se numa citação das Centúrias, uma compilação de casos clínicos e a sua obra maior:"Sobre a raiz da China me agrada falar aqui, visto que até agora, que eu saiba, pouco ou nada foi dito e tanto mais que André Vesálio, há poucos dias, publicou um livrinho a que pôs o título A Raiz dos Chineses, no qual (poderia dizê-lo sem hostilidade pessoal) nada se encontra, além do título, que diga respeito à raiz dos chinas. Com efeito, todo o livrinho é de Anatomia. Para o entender é necessário o charadista Édipo". A raiz da China é uma planta trazida do Oriente pelos portugueses, à qual eram atribuídas propriedades de cura da sífilis. Portugal desempenhou na época um papel extraordinário no mundo, que então começava a ser global, ao trazer e divulgar plantas medicinais de paragens remotas. Na mesma época, outro judeu português, Garcia de Orta, que rumou de Lisboa para a Índia no mesmo ano em que Amato se exilou, citou Vesálio a propósito da referida raiz, nos seus Colóquios dos Simples. Escreve o médico e botânico: "E destoutra raiz da China dizem Vesálio e Laguna muitos males dizendo que é podre e sem virtude e que custa muito dinheiro, e não tenho que ver com que custe muito ou que custe pouco, nem que seja cara ou barata, antes me parece bem o que diz Mateolo Senense, que basta, para esta raiz ser boa mezinha, tomá-la o Imperador Carlos V e aproveitar-lhe." Pois aqui está um dito bem moderno e que devia ser ouvido nesta época de redução dos orçamentos da saúde: não importa tanto o preço do medicamento, mas mais que o doente se cure. Professor universitário (tcarlos@uc.pt)

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