O Aterro da Boavista

Para evitar confusões ao leitor desprevenido, convirá esclarecer que o Aterro da Boavista é o que hoje conhecemos por Av. 24 de Julho, entre Santos e a Praça do Duque da Terceira, em Lisboa. Dito isto, faça-se um pouco de história, tão sucinta quanto possível.

Toda esta zona era uma língua de praia que a deposição de detritos foi alargando. Consolidado o terreno, erguiam-se armazéns e, entre eles, corriam estreitas passagens ditas boqueirões, pois na maré alta se enchiam de água, dando acesso a pequenas embarcações. A praia da Boavista não era recomendável. Ali se dirigiam centenas de criados e escravos para lançarem dejectos e lixos diários, pelo que se supõem os odores dominantes. Além disso, era na praia que se armavam as forcas, atraindo a populaça ávida de divertimentos, assistindo com gáudio ao espectáculo animado dos desgraçados pendurados a espernear aos gritos.

Isto durou até que após a Regeneração, já por meados do século XIX, se resolveu dar outro ar à praia. Sob a direcção do engenheiro Vitorino Damásio, a câmara decidiu construir uma muralha sobre o rio, permitindo lançar uma aprazível alameda entre Santos e os então ditos Remolares.

Como sempre por cá, as obras arrastaram-se, mas por fim o lisboeta maravilhou-se, dispondo de passeio sombreado de árvores à brisa do rio. Foi um sucesso estrondoso, abundando os textos laudatórios sobre a novidade, atafulhada de passeantes desbarretando-se de cá para lá. Um must que, na verdade, durou pouco. Em breve as obras do Porto de Lisboa, com docas, gruas e a correnteza de armazéns, bem como o caminho-de-ferro, criaram uma barreira visual intransponível, que fez correr lágrimas em todos os embeiçados com o arejado passeio.

De marginal acolhedora a 24 de Julho tornou-se um híbrido algo desconchavado, só animado pela instalação do Mercado da Ribeira e dos vizinhos Mercados do Peixe e da Fruta. A 24 de Julho tornou-se o paraíso dos apaixonados babados das varinas galhofeiras, que à falta das brisas enchiam os olhos com as ancas opulentas de que falava o Cesário. Mas até isto acabou, a par, e ainda por cima, com inúmeros armazéns que ultimamente caíram em ruínas ou já estão destruídos, quais despojos de guerra ou de outro género de catástrofe. Muitos foram os projectos, incluindo uma torre-agulha imaginada por Norman Foster, que deu para entreter doutas discussões ou conversas de café. Finalmente, surgiu um projecto, que agora parece aprovado (em Lisboa nunca se sabe), mas que deu alguma discussão devido ao candente problema da eventualidade de um tsunami, que poria em causa a segurança das construções. O caso seria sério se não desse alguma vontade de rir. Uma cidade que tem o Terreiro do Paço aberto sobre o rio, o Parque das Nações à mercê daquela massa de água, essa sim de algum porte, do mar da Palha, ou Belém, com o ex-líbris da Torre, mais os Jerónimos e tudo o resto, incluindo a sacrossanta figura do chefe de Estado que, em tal eventualidade, talvez se visse levado aos baldões, de cabeleira empoada, num dos coches de aparato do sr. D. João V, pôr-se a questão do maremoto (prefiro as palavras portuguesas) num local onde o Tejo é mais estreito e tem, ainda por cima, em frente o porto, docas, armazéns, metro e comboio, raia a mera vontade de dizer não importa o quê.

É evidente que, ao contrário do que dizia a canção, o tempo não volta para trás. Não teremos de novo nem brisa do rio nem varinas opulentas para saciar olhares lúbricos, nem sequer a azáfama pujante dos mercados. Tudo isso é passado. Mas, em boa verdade, poderemos ter, apesar de sermos uma gente desleixada que construiu uma cidade à mercê dos malfadados maremotos, uma avenida tão simpática quanto possível, menos "autopista" no seu traçado e sem aqueles buracões vazios, espécie de vestígios sinistros de qualquer bombardeamento ou de um maremoto que, ao invés, galgou dos lados da terra.

Olissipógrafo

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