Salvador Allende pôs a Kalashnikov debaixo do queixo e premiu o gatilho

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Allende matou-se com uma espingarda que Fidel Castro lhe ofereceu REUTERS

Desde 1973 que a morte do então Presidente do Chile é motivo de especulação. Suicidou-se ou foi morto pelas forças de Pinochet? David Pryor, especialista britânico em balística, fez parte da equipa que este ano exumou os restos mortais de Allende. Esteve ontem em Lisboa a explicar como foi confirmada a tese de suicídio.

Primeiro abriu-se o caixão metálico exterior, em seguida a urna de madeira mais pequena que estava lá dentro e onde tinham sido depositados os restos mortais de Salvador Allende. "O conteúdo estava todo amontoado. Havia muitos cabelos cinzentos-escuros encaracolados", descreve o britânico David Pryor, especialista em balística que fez parte da equipa que a 23 de Maio deste ano exumou os restos mortais do antigo Presidente chileno no mausoléu de mármore da família no Cemitério Geral de Santiago. Seguiu-se uma análise multidisciplinar para determinar a causa e a forma da morte de Allende, deposto no golpe militar de Augusto Pinochet.

Pryor, que trabalhou no Serviço de Ciências Forenses britânico até 2008 e agora é consultor independente, foi contactado em Abril deste ano pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha, em Genebra, para participar na equipa que levaria a cabo a investigação judicial à morte de Allende a 11 de Setembro de 1973.

Os resultados foram divulgados a 19 de Julho, em Santiago, com Isabel Allende, filha do antigo Presidente e agora senadora socialista, a falar numa conferência de imprensa, em que David Pryor esteve. Mas, ontem, o perito britânico deu uma palestra em Lisboa sobre este caso durante a reunião anual do Grupo de Trabalho de Armas de Fogo e Resíduos de Disparo da Rede Europeia de Institutos de Ciências Forenses, organizada pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária. Pretexto para uma conversa sobre esse outro 11 de Setembro que foi o ponto de partida para os 17 anos de ditadura do general Pinochet, até 1990, e que deixou mais de 3100 mortos e desaparecidos e 28 mil vítimas de tortura. O caso de Allende é o mais mediático, mas outros 725 relativos a violações dos direitos humanos chegaram aos tribunais e estão agora sob investigação.

Durante anos, especulou-se como morreu Allende, eleito Presidente em 1970 por uma coligação de esquerda. Suicidou-se, como sempre disseram a família, quem estava com ele no Palácio de La Moneda naquele dia e os militares? Ou foi assassinado pelos militares que entraram no palácio?

Suicidou-se - é a conclusão unânime da equipa internacional de que Pryor fez parte, confirmando-se assim a versão mais consensual ao longo destes anos. "Forma médico-legal da morte: suicídio", lê-se no relatório final, assinado pelos dez elementos da equipa, liderada pelo Serviço Médico Legal chileno. "Causa da morte: lesão perfurante da cabeça por projéctil de arma de fogo a alta velocidade, à queima-roupa."

Recuemos então aos últimos momentos de Allende. Na manhã de 11 de Setembro, pelas 7h20, chegou ao Palácio de La Moneda no seu Fiat 125. Entrou por uma porta lateral, no número 80 da Rua Morandé, como sempre fazia. Já se suspeitava da existência de movimentações militares e as dificuldades em contactar os altos comandos militares aumentavam ainda mais esses receios. Aos poucos, chegavam ao palácio os colaboradores de Allende, incluindo os médicos Patricio Guijón e Óscar Soto.

Pelas 8h42, a junta militar, liderada por representantes dos três ramos das Forças Armadas - incluindo Pinochet, general do Exército -, emitia o primeiro comunicado. Apelava a Allende para abandonar o cargo, o que ele recusou. "Recusou, porque não queria ser humilhado pelo novo regime", diz David Pryor. Uma hora depois já havia tanques junto ao palácio presidencial (o bombardeamento terrestre e aéreo começaria pelas 11h). Allende fez então um discurso na rádio Magallanes, a única que ainda não tinha sido silenciada.

Nas últimas palavras que dirigiu aos chilenos disse-lhes: "Esta será a última oportunidade de me dirigir a vós. (...) Só me cabe dizer-vos: não vou renunciar (...), pagarei com a minha vida a lealdade do povo. (...) Outros homens superarão este momento cinzento e amargo, onde a traição pretende impor-se. Mas saibam todos que muito mais cedo do que tarde se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor."

Teria pensado em matar-se antes do discurso ou foi um acto cometido num impulso? "Pensou claramente nisso quando fez o discurso. É o que acho", refere Pryor. "Percebeu que o fim estava perto."

Quem estava com Allende no palácio também se lembra de o ouvir dizer: "A mim não me farão sair em pijama, nem irei exilar-me numa embaixada."

Ao início da tarde, disse às filhas para saírem e despediu-se dos colaboradores, enquanto ele próprio se dirigiu para o Salão da Independência, no segundo andar do palácio. Patricio Guijón também estava a ir-se embora quando se lembrou de que tinha deixado para trás uma máscara antigás, que queria levar como recordação daquele dia. Voltou ao segundo andar e, mesmo em frente à porta do Salão da Independência, deparou-se com o momento em que Allende, com uma espingarda entre as pernas e o cano debaixo do queixo, premiu o gatilho.

"Vi quando voaram a cabeça, os ossos e a massa encefálica", repetiu recentemente o médico à Rádio Cooperativa. Tem sido no relato deste médico, e também de Óscar Soto, que entrou no salão pouco depois, que a família de Allende tem acreditado fielmente.

"Sendo médico, foi ver se podia ajudá-lo e mexeu na espingarda. Mas percebeu que era inútil. Allende estava morto e foi levado pela porta traseira do palácio", refere por sua vez Pryor, dizendo ainda que logo nessa noite o corpo foi autopsiado no Hospital Militar de Santiago e o local da morte foi isolado. "Seguiram um bom protocolo. As forças de Pinochet não deixaram ninguém entrar no salão. Há desenhos da posição relativa do corpo e das marcas dos projécteis na parede e das duas cápsulas recuperadas", realça o perito britânico.

No relatório final, os dez elementos da equipa recordam o que consta do relatório elaborado pela Brigada de Homicídios da Polícia de Investigações do Chile que estava de serviço de 11 para 12 de Setembro de 1973: "O cadáver jazia sentado num divã de veludo, junto à parede oriental do palácio, entre duas janelas que dão para a Rua Morandé, com a cabeça e o tronco levemente inclinados para o lado direito; os membros superiores levemente estendidos e ambas as extremidades estendidas e um tanto separadas."

Há uma fotografia da arma entre as pernas de Allende, com o selector de tiro na posição automática de disparo - facto importante, frisa o perito britânico, pois explica como se pensa que o antigo Presidente conseguiu disparar dois tiros debaixo do queixo. "É impossível com a arma na posição automática disparar só um tiro."

Era uma AK-47, ou seja uma Kalashnikov, uma espingarda de assalto concebida e desenvolvida na ex-União Soviética na década de 1940. Fora oferecida a Allende por Fidel Castro, com a dedicatória: "A Salvador, do seu companheiro de armas, Fidel."

Aliás, tanto Fidel como o escritor Gabriel García Márquez sempre recusaram que Allende se tivesse suicidado.

Um projéctil, duas cápsulas

Recuperaram-se duas cápsulas de munições. Os projécteis atingiram a parede e uma tapeçaria por cima do sofá onde se encontrava Allende. No entanto, só um projéctil foi recuperado, de uma almofada num sofá do lado oposto do salão em relação ao corpo. "Ninguém sabe onde está o segundo projéctil", diz Pryor. Isso é importante? "Não, porque estes três elementos - o projéctil e as duas cápsulas - foram positivamente associados a Allende", responde. "Se houve um segundo projéctil, foi durante o mesmo disparo, seguindo uma trajectória semelhante com uma diferença de milissegundos, mas não é possível confirmar ou descartar essa possibilidade mediante o exame do material ósseo conservado e outras técnicas actualmente disponíveis", refere-se no relatório final.

Também a AK-47 desapareceu. "Foi levada como recordação pelas forças de Pinochet. Nunca mais foi vista", conta Pryor.

Seja como for, o disparo deste modelo de Kalashnikov, arma de fogo de alta velocidade, provocou uma lesão maciça no sistema nervoso central, diz ainda o relatório. "A parte de cima do crânio foi destruída. A morte foi instantânea, com síndrome do coração vazio. Quando a morte é instantânea, não há sangue no coração", explica Pryor, que, em 1999, participou no estudo de vítimas de massacres pelas forças sérvias no Kosovo.

Feita a identificação dos restos mortais como sendo de facto de Salvador Allende, pelos registos dentários e análises de ADN, a equipa radiografou-os e foram recolhidas amostras dos ossos das mãos, da mandíbula e do crânio para detectar a presença de resíduos dos disparos. "Obtiveram-se níveis elevados na mandíbula e no interior da parte de trás do crânio e relativamente elevados nas mãos que seguraram a arma", relata o especialista. No resto do esqueleto, não se detectaram resíduos de disparo: "Este resultado negativo é importante." Se a arma tivesse sido disparada por outra pessoa, mesmo que muito perto da vítima, seria o autor dos disparos a ficar com mais resíduos, principalmente nas mãos. "Tudo é consistente com um ferimento auto-infligido com uma arma de alta velocidade. É um caso clássico de suicídio. Tudo encaixa. Não há indícios de luta, não há outras fracturas", remata Pryor.

Do amontoado de ossos, entre os quais estavam os fios de cabelo grisalho, reconstruiu-se o esqueleto, ainda quase completo.

Havia razões para os ossos estarem amontoados e para a existência de duas urnas. Logo no dia seguinte à morte, o corpo de Allende foi sepultado em Viña del Mar, de forma anónima. Em 1990, os restos mortais foram exumados durante a noite e trasladados para o mausoléu da sua família em Santiago. Foi nessa altura que os ossos acabaram misturados e depositados na urna mais pequena.

Só agora é que se procedeu a uma investigação oficial dos restos mortais de Allende para apurar se se matou ou foi morto.

Entre os ossos ainda se encontravam pedaços da camisola, das calças, cuecas, meias e sapatos que usava quando foi enterrado. "Uma coisa surpreendente é que o casaco não estava na urna." Entretanto, desapareceu. "A família estava um pouco aborrecida com isso", conta Pryor.

O segundo projéctil, o paradeiro da Kalashnikov e do casaco que Allende vestia até podem permanecer um mistério, mas o mais importante - as circunstâncias da sua morte - ficou esclarecido. Caso encerrado? David Pryor e os outros membros da equipa de peritos dizem que sim. E o juiz que tinha o caso em mãos, Mario Carroza, aceitou o relatório da equipa. Em Setembro os restos mortais de Allende regressaram ao mausoléu da família. "A família ficou aliviada quando lhe mostrámos os resultados", diz Pryor. "Acho que Isabel Allende usou estas palavras: "A família está em paz.""

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