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Alan Hollinghurst: uma narrativa que destrói, com fúria mascarada de bonomia e fleuma muito "british", bons sentimentos, acções exemplares e doces memórias... PEDRO CUNHA

Ficção

Ninguém recorda nada

Depois deste livro, será difícil apreciar novamente os grandes romances, os filmes e as séries de televisão "de época", a que a Grã-Bretanha nos habituou. Helena Vasconcelos

O Filho do Desconhecido

Alan Hollinghurst

(Trad. Tânia Ganho)

Ed. Dom Quixote

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Depois de "A Linha da Beleza " (Prémio Booker, 2004), Alan Hollinghurst publica "O Filho do Desconhecido", um romance ostensivamente centrado nas questões relacionadas com a poesia e os poetas, embora este nobre propósito seja sistematicamente "minado" pela peculiar ironia do autor. Porque se a poesia é a mais nobre das artes, criada pelos mais nobres dos homens para manter viva a memória dos actos mais grandiosos e elevados, como explicar o efeito demolidor desta narrativa que destrói, com fúria mascarada de bonomia e fleuma muito "british", bons sentimentos, acções exemplares e doces memórias? Esta saga, que se estende ao longo de quase um século, centra-se ostensivamente num poema, obviamente críptico, escrito sobre os escombros de um triângulo, não amoroso mas erótico, formado por Cecil Valance (o poeta), George Sawle (o amante) e a irmã deste último, Daphne Sawle (a noiva).

Num fim-de-semana do Verão de1913, George Sawle chega à casa de campo familiar, trazendo consigo o carismático, aristocrático e belo Cecil Valance, seu colega em Cambridge e promissor poeta. Enquanto que a mãe, Freda Sawle, desconfia do hóspede, Daphne, a irmã de quinze anos de George, ignorante do que se passa entre os dois jovens, fica embevecida com o desconcertante e sensual amigo do irmão. Subrepticiamente, este e George trocam olhares e carícias, enquanto disfarçam a sua ânsia erótica com a alusão a uma "sociedade secreta" a que pertencem, referência à célebre Fabian Society muito frequentada pelos membros do Grupo Bloomsbury. Daphne, que é uma leitora assídua de poesia e admira Lord Tennyson (de cujo poema com vibrações homoeróticas, "In Memoriam A.H.H.", é retirado o título do livro) tenta juntar-se aos "rapazes" e num dos seus passeios quase os surpreende em pleno acto. Mais tarde, e para aumentar a perturbação, Cecil atrai Daphne e beija-a violentamente, deixando-a convencida e presa de um sentimento que não existe. As noites são quentes, as sombras acolhedoras, tropeça-se no escuro e a nudez é o "estado natural" da procura de satisfação sexual num cenário febril de um "Sonho de uma Noite de Verão". Improvisa-se uma espécie de espaço teatral para ouvir Cecil dizer os seus poemas e, na penumbra, os habitantes da casa seguem as suas paixões, todas elas mal orientadas e carregadas de enganos. Ao partir, Cecil deixa um poema no livro de autógrafos de Daphne, que ela supõe ser-lhe destinado, enquanto George se debate cheio de duvidas e ciúme.

Cecil é um decalque da figura "byroneana" do poeta inglês Rupert Brooke, que Yeats considerava "o homem mais belo de Inglaterra". Brooke, que teve relacionamentos intensos, tanto hetero como homossexuais (Virginia Woolf gabava-se numa carta a Vita Sackeville-West de terem ido juntos nadar nus ao luar, em Cambridge), passou a representar, depois da sua morte em 1915, o ideal do jovem soldado, corajoso e brilhante. ("The Soldier", o seu poema mais conhecido, conquistou a admiração de Winston Churchill). Cecil morre na Guerra, tal como Brooke, e adquire uma fama póstuma, construída à custa de delírios de admiradores, de desvios de detractores e de bem intencionadas ocultações de familiares.

No segundo capítulo de "O Filho do Desconhecido" a acção ganha ímpeto. Os restos mortais de Cecil foram repatriados e estão sepultados na cripta de Corey, a casa da família Valance. Daphne está casada com Dudley, o alcoólico e louco irmão de Cecil, e George leva avante um estranho matrimónio com uma seca intelectual de nome Madeleine. Em 1926 a família reúne-se para discutir factos e fornecer dados a um tal Sebastian Stokes, incumbido pela mãe de Cecil de escrever uma biografia do filho. Anos mais tarde, quando a casa da família Valance está transformada num colégio interno, entra em cena Peter Rowe, um dos professores. Rowe conhece Paul Bryant que trabalha para o genro de Daphne e este encontro, numa festa, faz reavivar as lembranças do grande poeta. Peter e Paul iniciam uma relação baseada na mútua admiração pela figura e obra de Cecil e Bryant assume o papel de um inquisidor, lançando-se-se na escrita de uma biografia, cuja intenção é a de "repor a verdade dos factos" mas que tem por trás motivos mais obscuros. O final do livro, em 2008, transporta o leitor para uma cerimónia fúnebre em honra de Peter Rowe, onde várias personagens, incluindo Paul Bryant, tentam reavivar o interesse pelas complexas relações entre os Valance e os Sawle, numa paródia subtil às infindáveis biografias, ensaios e estudos que deliciam a "inteligentsia" britânica. No entanto, parece já não haver espaço no universo literário contemporâneo para as ruminações de Bryant e não há quem se interesse pela longínqua e tortuosa relação erótica entre George e Cecil. "Ninguém recorda nada", a epígrafe retirada de um verso de "In Memoriam Alfred Lord Tennyson", do poeta escocês Mick Imlah - a quem o romance é dedicado - fecha brutalmente o círculo e encerra todo o sarcasmo de Hollinghurst.

O início de "O Filho do Desconhecido" remete os leitores para os romances de Evelyn Waugh e de E. M. Forster e aproxima-se perigosamente de "Expiação" de Ian McEwan. As semelhanças com este último são, de certa forma, parodiadas por Hollinghurst que cria um pastiche recheado de detalhes: o despertar sexual num verão antes de uma Grande Guerra, o mergulho "baptismal" erótico (numa fonte ou num charco), o terrível mal-entendido criado pela inexperiência de uma jovem (criança ou adolescente), um enigma que fica por resolver, uma violação e um arremedo de violação, o sexo explícito e, no final, uma velha senhora que resiste, não para desvendar a história mas para a tornar ainda mais obscura. Hollinghurst é totalmente cínico em relação ao amor, à amizade ou a outros sinais benignos (domesticidade, sentimentos filiais, maternais, fraternos ou paternais) e constrói a sua história em torno do tormento dionisíaco da pulsão erótica e bélica, oferecendo o triunfo a Thanatus, pervertendo sistematicamente a força da memória. Nem mesmo um poema medíocre, que encerra uma charada trivial e que, de tantas vezes repetido, se transforma num símbolo de heroicidade, resiste ao tempo e aos desvarios humanos. Há um episódio em que um dos supostos biógrafos e a família vão rodeando e contemplando a estátua jazente de Cecil, enquanto comentam as suas parecenças e dissemelhanças, numa paródia a "O Retrato de Dorian Gray" de Oscar Wilde. Quanto a Alfred (Lord) Tennyson é citado amiúde com uma troça acutilante. Recorde-se que Tennyson, Poeta Laureado de Inglaterra e bardo do Império, escreveu um dos poemas mais patéticos de todos os tempos, o célebre "A Carga da Brigada Ligeira", no qual enalteceu a coragem da cavalaria inglesa ("apesar do soldado saber/ que alguém tinha feito asneira") numa batalha da Guerra da Crimeia que resultou em incontáveis perdas de vidas por incompetência. A relação com Somerset Maugham tão pouco é de desprezar e os apreciadores do prolífero romancista recordarão a trama de "Cakes and Ale" que se centra na figura da viúva de um escritor que persegue a tarefa de encomendar uma biografia do marido. Na altura, tanto Thomas Hardy como Hugh Valpone não ficaram satisfeitos uma vez que, apesar do veemente desmentido do autor, se viram claramente retratados. O facto de Maugham tratar abertamente da manipulação de biógrafos para cimentar uma determinada imagem dos biografados aproxima-se da forma como Hollinghurst satiriza esse género literário, apresentado como um "filão de oiro", usado e abusado sem pudor nem discernimento.

"O Filho do Desconhecido" está repleto de citações e de ironias relativas à literatura e ao ambiente literário anglo-saxónico e até a revista "Granta" aparece no seu formato pré Bill Buford. Hollinghurst afasta-se com uma terna zombaria (ou talvez com uma espécie de desafiadora libertação) do seu autor de culto, Henry James, ao criticar acerba e abertamente a discrição e a ambiguidade sexual que encobrem as relações humanas de forma hipócrita, causando dor, perda e danos psicológicos que atravessam gerações.

Hollinghurst também aborda o processo histórico e o seu "branqueamento", mantendo uma referência constante aos objectos, espaços e arquitectura dos períodos eduardiano, vitoriano ("horrendo") e georgiano - as respectivas casas emblemáticas vão sendo destruídas ao longo do tempo - e a uma certa sociedade que perpetua a nostalgia de um tempo de grandiosas festas e jantares em mansões campestres, de punhos de renda e "dinner jackets", de criados de quarto e de regras sociais que sempre encobriram (ou "enobreceram") os comportamentos mais indignos. Decididamente, depois deste livro, será difícil apreciar novamente os grandes romances, os filmes e as séries de televisão "de época", a que a Grã-Bretanha nos habituou.

Numa memória viva não há naturezas mortas

Uma escrita incomparável, um livro incomparável, demasiado grande para caber numa prateleira. Fernando Sousa

Contos Reunidos

Felisberto Hernández

(Trad. Jorge Fallorca)

Oficina do Livro

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O que é que nos aconteceu - ou do que fomos testemunhas - há uns quinze, vinte ou trinta anos? E bem arrumadinhas as lembranças, elas ficaram tal e qual? Mexeram-se? E nesse processo - que é uma boa parte de toda a literatura - em que conta tivemos as coisas inanimadas - uma estátua, um inesperado remoinho de folhas no caminho, um estrondo, um chuvisco, um canteiro seco ou até um acaso? Redescubro Felisberto Hernández, agora em português, e dou-me conta da importância - decisiva - do pormenor marginal, do irrelevante.

Por exemplo, dos bichos que povoavam o corpo de Colling, da forma como ele lavava as mãos, no amor com que o escritor lhe lavava os pés, pedacinhos de uma das histórias de "Contos Reunidos", acabado de publicar pela Oficina do Livro. Ou dos braços brancos de Celina, que desviavam continuamente a atenção do nosso escritor, ainda rapaz, dos fastidiosos trabalhos de casa, noutra recordação. Ou ainda da misteriosa motivação que nos pode levar a remexer numa peça de roupa (no caso, feminina) no cesto de uma casa de banho emprestada e da pavorosa expectativa de alguém de repente abrir a porta...

Não é uma obra fácil, muito longe disso. Mas só lendo-a podemos aperceber-nos do desafio: a busca dos processos íntimos de evocação, a procura de sentido no mundo de estranhezas, "non sense" e bizarrias da natureza humana, a sedução pela desordem.

São dez textos, incluindo alguns dos mais importantes da fase literária mais intensa da vida do autor uruguaio, que tentou conciliar o piano e a escrita até optar por esta (ainda quis re-unir as duas, dando um concerto, mas já não foi a tempo).

A obra de Felisberto Hernández é um mergulho monumental nos mecanismos da memória. Basta ler "Nos tempos de Clemente Colling", de 1942, e "O cavalo perdido", de 1943, os dois dos anos pós-piano, a que devemos acrescentar "Terras da memória", de 1944 - publicado postumamente, em 1965.

Em todos, escritos na primeira pessoa, o narrador recorda, numa vagabundagem controlada, episódios passados, trazendo os seus enredos ao de cima, interrogando-se sobre olhares, sensações e mesmo sentimentos, tentando à distância de uma vida entretanto adulta situá-los por exemplo no processo exigente da consciência.

E isto entre relações simultaneamente com pessoas e coisas, à descoberta da importância dos objectos, casas, mesas, jarras, flores, armários, camas, que aparecem como companheiros inseparáveis em todos os acontecimentos. Estruturantes da recordação.

Não mexe nesses momentos. Lembra-os só, paira sobre eles sem os ordenar demasiado, como avisa Elvio E. Gandolfo no prólogo, esforçando-se por compreender o modo como se sugerem uns aos outros, se tocam, articulam e influenciam um universo sem naturezas mortas, num processo de associação de ideias absolutamente único e extraordinário.

Uma cama pode ser muito mais do que uns ferros a aguentar um estrado ou uma sugestão de algo separado dela: "[...] As suas barras niqueladas faziam-me lembrar uma jovem louca que se entregasse a qualquer um". Ela, a própria cama.

"A associação de ideias não é só o jogo predilecto dos personagens de Felisberto, é a paixão dominante e declarada do autor e também o procedimento com o qual estes relatos se vão construindo, enlaçando um motivo com outro, como numa composição musical", escreveu Calvino.

"Menos Júlia" ou "A Casa Inundada", outro dos lados de Felisberto, o do mistério, já são exercícios diferentes. Qualquer deles é farto de "gags" e metáforas, e de novo marcado pela interacção quer do narrador quer dos protagonistas com as coisas. Mas em qualquer dos casos o ambiente criado, o cenário e o mistério do enredo são muito menos importantes do que o que acontece ao lado, sejam os ruídos que despertam ansiedades ou os cheiros que lembram outras coisas, as chaves da narrativa.

"O que desencadeia aqui a fantasia de FH são os convites inesperados que abrem ao tímido pianista as portas de casas misteriosas, de quintas solitárias onde moram personagens ricos e excêntricos, mulheres cheias de segredos e neuroses. Uma enorme casa afastada, o infaltável piano, um senhor docemente maníaco e perverso, uma jovem sonhadora, uma matrona que celebra obsessivamente os seus infortúnios amorosos [...]", escreveu Italo Calvino no prefácio à edição italiana.

[Ficamos à espera que a Oficina do Livro nos traga também "Las Hortensias", um conto centrado na produção de bonecas rivais das mulheres verdadeiras, que um fabricante constrói para alimentar as fantasias de um estranho coleccionista e que desencadeiam atritos e dramas conjugais.]

Comum a toda a obra de Felisberto: a palavra.

"[...] Ele queria expressar-se bem, mas demorava a encontrar as palavras; e além disso fazia rodeios e digressões. [...] Eu não queria ouvir a história, porque o esforço daquele homem em perseguir as palavras fazia-me sofrer [...]" (Ninguém acendia as lâmpadas)

As palavras como entidades com vida própria:

"... tenho como um processo de amizade com as palavras, primeiro faço-me amigo directo delas; e depois fico muito contente quando me aparecem juntas, duas que nunca haviam estado juntas, que se haviam simpatizado ou que se haviam atraído em algum lugar da minha alma não vigiado por mim. [...] Mas há palavras que nunca poderão ser minhas amigas, as que não me parecem naturais ou as que não entram no mistério da simpatia" (Carta a Paulina Medeiros, escritora e amiga muito próxima)

As palavras livres do maior número possível de espartilhos, vernizes, polimentos, escolas ou modas:

"Rejeitei definitivamente dedicar-me a escrever de maneira crítica, puramente consciente, porque me horrorizavam os que via nesse estado" - citado por Gandolfo.

Felisberto Hernández foi pianista até concluir que isso era insuficiente para o que o preocupava. Percorreu como concertista cidades e povoados da província de Buenos Aires, a Pampa e General Pico, quase sempre sem um peso no bolso, à procura de um eco cultural que se mostraria simplesmente inexistente, acabando por vender o piano e dedicar-se por inteiro à escrita, à palavra.

Foi quando produziu os contos que mais cativaram pela originalidade e profundidade, entre outros, Italo Calvino ou Júlio Cortázar, ou Gabriel García Márquez, que o cobriram de elogios tão mais importantes quanto calaram muita gente despeitada com a sua novidade ou condicionada por motivos políticos (Felisberto Hernández era anticomunista).

"O senhor alcança a profundidade sem a procurar minimamente devido a uma inclinação natural para a profundidade. O senhor tem o sentido inato do que um dia será clássico", escreveu-lhe Jules Supervielle, amigo e cúmplice, adiantando-se à História.

Já tinha então juntado muita vida. Era amigo de filósofos como Carlos Vaz Ferreira e de psiquiatras como Alfredo Cáceres, director do Hospital de Vilardebó, que visitava frequentemente, ou Radecki, pioneiro da psiquiatria no Brasil, Uruguai e Argentina, relações essenciais, senão determinantes, nas evocações e nas histórias que deixou, porque no fundo mais do que músico e do que escritor, e isso aparece raramente nas críticas, era um pensador - como lhe fez justiça Reina Reyes, a quarta mulher.

"[...] Não sei se o que escrevi é a atitude de um filósofo valendo-se de meios artísticos para transmitir o seu conhecimento, ou o de um artista que toma para a sua arte temas filosóficos. Creio que a minha especialidade está em escrever o que não sei, pois não acredito que apenas se possa escrever o que se sabe. E desconfio dos que nestas questões pretendem saber muito, claro e com segurança. Seduz-me uma certa desordem que encontro na realidade e nos aspectos do seu mistério. E aqui se encontram a minha filosofia e a minha arte." ("Diario del sinvergüenza y últimas invenciones". Montevideo, Arca, 1974)

A obra de Felisberto Hernández não é para toda a gente, é duro dizê-lo, mas é a pura verdade. Só é acessível, citando de novo Calvino, a leitores dispostos a renunciar a abordagens lineares, uma característica tão rara nos anos de 1940, e Felisberto Hernández bem penou por isso, como hoje. Mas não há realmente sorte mais invejável do que um curioso que ouse lê-lo.

Uma escrita incomparável, um livro incomparável, demasiado grande para caber numa prateleira.

Pesadelo dode-cafónico

Violência, fome, frio, miasmas, doença: o horror como lugar-comum. Eduardo Pitta

O Longo Inverno

Ruta Sepetys

(Trad. Susana Sousa e Silva)

Contraponto

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Ruta Sepetys é uma americana de origem lituana que se estreou este ano com um romance pungente acerca da violência exercida, durante a ocupação soviética, sobre centenas de milhares de lituanos. Inspirado na experiência de contemporâneos dos seus avós, "O Longo Inverno" mostra quão devastadoras foram as purgas estalinistas. No que à Lituânia diz respeito, entre 1940 e 1953 foram presos e deportados mais de 300 mil nacionais. A história do país é uma sucessão de rupturas: Estado independente até 1385, unido à Polónia de 1385 a 1918, de novo independente, ocupado pela Alemanha em 1939, anexado pela União Soviética em 1940 (ocupação que durou mais de 50 anos), independente mais uma vez a partir de 1991, embora o exército soviético ali permanecesse até Agosto de 1993.

Contudo, antes de ser outra coisa, "O Longo Inverno" é sobre o direito que temos à nossa própria identidade.

Lina Vilkas tinha 15 anos no dia em que foi deportada para a Sibéria: "Levaram-me em camisa de noite." A ela, à mãe e ao irmão mais novo. Lina desconhece o paradeiro do pai, Kostas Vilkas, professor da universidade de Kaunas. Estamos em Junho de 1941. Quando recorda o que aconteceu nessa noite, tem presente o som dos punhos golpeando a porta. Os oficiais do NKVD (a polícia secreta de Estaline) deram 20 minutos para abandonarem a casa. Um desses oficiais apagou a beata acesa no chão imaculado da sala. Lina percebeu: "Estávamos prestes a transformar-nos em cigarros." Antes de irem para o camião, a mãe esconde no casaco um maço de rublos e parte todos os cristais que tem em casa. "Destruíste propriedade soviética", grita um dos russos. Lina vê a mãe levar uma coronhada.

A sequência cronológica é entrecortada por pequenos trechos em itálico que fazem o "flashback" dos dias "antes dos russos". Ruta Sepetys tem uma escrita que nunca se distrai do essencial. As seis semanas de viagem entre Kaunas e o campo de trabalho de Altai (na Sibéria) são descritos sem complacência pela voz de Lina. O comboio onde segue é um "caixão rolante". O buraco da latrina colectiva tem usos inesperados: serve para passar um naco de presunto ou fazer desaparecer o cadáver putrefacto de um bebé. Quando os cigarros acabam, Jonas (o irmão de Lina) e um amigo arrancam folhas dos "Cadernos de Pickwick" para enrolar tabaco. Lina fica irritada: ela gosta muito de Dickens e o livro tinha sido um presente da avó.

A meio do trajecto, numa paragem de rotina, Lina e o irmão encontram o pai. Kostas Vilkas está num dos vagões do "comboio dos homens". O comboio de Lina só tem mulheres, velhos e crianças. Jonas e o rapaz de 17 anos que se tornou seu amigo escaparam do comboio dos homens porque as mães respectivas subornaram oficiais do NKVD, fazendo passar os filhos, à custa de rublos e jóias, por "atrasados".

Quando chegaram a Altai foi como se tivessem saído de um "armário escuro". Iam ser vendidos como escravos. Se não tivessem sido deportados, Lina teria ido para uma escola de Arte. Mais de uma vez os seus desenhos (simbólicos ou literais) foram fonte de preocupação do pai e dos professores, sobretudo um, figurando Estaline num corpo de palhaço. Agora não. Os desenhos vão ser a sua arma: pode, com eles, enviar ao pai mensagens codificadas.

O tom narrativo isenta-se de harmónicas, a prosa martelada como numa peça dodecafónica. Lina não descreve uma viagem de recreio entre o Báltico e os Urais. Fala dos pais, do irmão, do amigo do irmão (e seu futuro marido), do velho delator, das mulheres com quem sobreviveu 42 dias no vagão de gado. Pessoas desapossadas das suas vidas, no limiar da indignidade.

O intervalo da unidade colectiva de produção de Altai dura 10 meses. A seguir é pior: em Trofimovsk, no Círculo Polar Ártico, a noite tem 180 dias. No horizonte, o mar de Laptev. Andrius, o amigo do irmão, ficou em Altai. Lina e Andrius estão apaixonados. Antes da morte da mãe tem notícia de que o pai morreu em Krasnoyarsk. Jonas sobrevive por milagre. O horror (violência, fome, frio, miasmas, doença) devém lugar-comum. A liberdade chega em 1953.

A edição portuguesa é a única que não respeita o título original da obra (algo como "a vida em tons de cinza"), traduzida em vários países, Brasil incluído.

No campo inglês

Retrato cheio de humor de uma comunidade rural obstinada, e muito ciosa das suas convenções.

José Riço Direitinho

A Livraria

Penelope Fitzgerald

(trad. Eugénia Antunes)

Clube do Autor

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Florence Green era uma viúva de aspecto "um tanto insignificante vista de frente, e de trás, totalmente", que havia anos vivia em Hardborough com uma pequena herança deixada pelo marido. A vila de Hardborough, em Suffolk, no Leste de Inglaterra, pouco mais era do que "uma ilha entre o mar e o rio", uma vila que se fechava sobre si própria aos primeiros sinais de frio, e onde tudo o que fosse visto acontecer passava a ser objecto de comentário. Em 1959, quando em Hardborough ainda não havia "fish and chips", nem cinema, nem lavandaria, a senhora Green teve a ideia de abrir uma livraria. Depois de algum tempo de indecisão e de ponderação, ela decide comprar uma pequena propriedade, a Old House e o "telheiro das ostras", construída há quinhentos anos e aparelhada com vigas de carvalho. A casa estava há muito desabitada, tresandava a ratos, e as gralhas tinham ganhado o hábito de por lá fazerem ninho. Para além disso, também o Oculto se interessara pela casa, pois dizia-se estar assolada por um "poltergeist", que em Hardborough eram apelidados de "rappers" (o agente imobiliário usara a expressão "atmosfera de uma época invulgar"). Mas Florence Green lidava bem com estes contratempos, só não esperava que fosse nessa exacta altura em que ela decidira ali abrir uma livraria, que Violet, a mulher do General, e a mais proeminente mulher da vila (uma espécie de decana das artes), mostrasse desejos de ali criar um centro de artes e entregar a sua gestão ao estranho e inteligente Milo North, uma personagem a quem as emoções, "por falta de exercício, haviam desaparecido quase por completo"; o mesmo Milo que mais tarde sugeriria à viúva Green que encomendasse o "Lolita", de um tal Nabokov, "pelo nome parecia russo"...

"A Livraria", da inglesa Penelope Fitzgerald (1916-2000), originalmente publicado em 1978, foi nesse ano finalista do "Booker Prize". Fitzgerald - que foi uma autora "tardia", escrevendo o primeiro dos seus nove romances aos 60 anos de idade - chegou por quatro vezes à "short list" do "Booker", recebendo o prémio em 1979 com o romance "Offshore". "A Livraria" é o seu segundo livro por cá traduzido: em 2009 a editora Relógio D"Água publicou "A Flor Azul" (distinguido com o "American National Book Critics Award"), um romance magistral em que Penelope Fitzgerald nos narra, em jeito de biografia romanceada, os anos do começo da idade adulta do barão von Hardenberg - que ficou para a História da Literatura com o pseudónimo Novalis - um dos mais importantes poetas do Romantismo Alemão do século XVIII.

Em "A Livraria", Penelope faz um retrato moral de um certo tempo na típica e conservadora Inglaterra rural, servindo-se para isso de uma pequena comunidade obstinada onde pouco acontece. Num estilo discreto e com um olhar mordaz ela vai compondo o que à primeira vista pode parecer uma espécie de galeria de excêntricos, mas que aos poucos se nos vão tornando quase familiares e não tão excêntricos como pareciam. "Mr. Brundish, descendente de uma das mais vetustas famílias de Suffolk, vivia tão enfiado em casa quanto um texugo na sua lura. Quando emergia no Verão, nas suas roupas de "tweed" entre o verde-escuro e o cinzento, mais parecia um arbusto ambulante entre a giesta, ou terra por entre o aluvião."

Poder-se-ia ser levado a pensar, após a leitura das primeiras páginas, ser esta uma daquelas histórias para amolecer os corações dos amantes dos livros, em que uma viúva tudo faz para abrir uma livraria no meio da barbárie. Mas não é disso que se trata, a livraria é apenas o centro da história e a razão para descrever (e Fitzgerald fá-lo magistralmente) aquele mundo pequenino, de invejas e maldades, de aparências, de gente que se quer pôr em bicos dos pés, e que não permite que as convenções sejam desafiadas demasiado depressa. Mas o que mais sobressai em todo o romance é a fineza do humor, tão característico de uma certa cultura "British" e resultado de um poder de observação singular. "Assim que ela partiu, os grupos de convidados reagruparam-se, como o gado havia feito quando Raven puxara o velho cavalo à parte. Agora eram todos da mesma espécie, voltados para o mesmo lado, pastando juntos."

"A Livraria" é um romance sábio, tocado aqui e ali por alguma melancolia de um tempo passado, e escrito de maneira tão consistente e vívida, que a mais pequena das cenas se enche de impressões como se fosse insuflada de cores. No final da leitura, o leitor anseia por mais romances desta grande romancista inglesa.

Ensaio

Esquisita crise

"Crise" também significa (em Grego) resultado ou desenlace e, assim, o que sai de uma crise de verso é outro verso. Soa esquisito, mas "exquise" é a palavra francesa que qualifica a "crise" como preciosa. Gustavo Rubim

Crise de Versos

Stéphane Mallarmé

Deriva

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Livros pequenos, poucos exemplares, circulação discreta, às vezes até despercebida: não é essa, hoje, a situação de quase toda a poesia?

Aqueles para quem a poesia não seja, simplesmente, uma coisa do passado ou uma irrelevante inexistência, terão a tentação de falar em "crise", mas ninguém dará a isso grande importância. Perante outras crises, ubíquas, assustadoras, uma "crise de versos" pesa pouco, quase nada. Nem era disso, aliás, que falava Stéphane Mallarmé quando em 1897 publicou, no volume "Divagações", esta "Crise de Versos" escrita em prosa fragmentada. Um dos textos mais lentos que alguma vez se escreveu: dez anos para compor (em boa parte, com passagens doutros escritos) as catorze pequenas páginas aqui duplicadas pela decisão de acompanhar a tradução com o texto original.

Não diminui, aumenta com isso a importância do trabalho de Rosa Maria Martelo e de Pedro Eiras, os tradutores. O Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, do Porto, em que ambos trabalham e que dirige a colecção Pulsar (de que este nº 5 é o ponto alto), mostra como também no âmbito literário vale a lição de Mies van der Rohe: "Menos é mais." Que é aqui uma lição de leitura, pois levar este livrinho para casa e decidir-se a lê-lo é apostar em tudo menos no consumo rápido: a prosa de Mallarmé, nisso indistinta da poesia, é para ler mesmo devagar, saboreando a deliciosa dificuldade dos "seus sobressaltos e inversões", verificando como uma crise de versos é afinal "crise também da prosa - que se expõe e se assume", conforme ensinam os co-autores deste genuíno acontecimento nas nossas letras.

Mas crise, em Mallarmé, é praticamente uma palavra feliz. Ela designa, como sempre desde o Grego antigo, o instante decisivo, a separação, o próprio acto de escolher. Num dos parágrafos finais do texto, Mallarmé descreve um desejo moderno da poesia que é, precisamente, um desejo crítico: "Um inegável desejo do meu tempo é separar, para destinos diferentes, o duplo estado da palavra, ora bruto ou imediato, ora essencial." Esse desejo, que instala ou abre uma crise, uma divisão na linguagem, não é por isso menos afirmativo nem menos capaz de fundar a convicção da poesia. Isto é, em plena crise, a confiança no poder do verso: "O verso, que de vários vocábulos refaz uma palavra total, nova, estrangeira à língua e como que encantatória, completa esse isolamento da palavra (...)".

Não será fácil hoje aceitar esta celebração do isolamento da palavra pelo verso, a não ser, como já várias vezes sucedeu, trocando o entendimento por ressentimento e acusando Mallarmé (e outros) de isolar a poesia, de a mergulhar no ininteligível, de a afastar da fruição universal, etc. Mas não se faz essa troca sem sacrificar a poesia àquilo a que Mallarmé chama "a universal reportagem", o que vem a dar no mesmo que liquidá-la. Boa parte da grandeza inegável de Mallarmé, à distância de um século, é ter percebido que para a poesia moderna tudo se joga crucialmente na relação com a linguagem, porque "moderno" é o mundo onde todo o poder se traduz em forma e força de discurso.

Daí que a sua "Crise de Versos" seja a crise, ínfima, mas "preciosa, fundamental", como se lê no início, da relação da poesia com o seu traço mais tradicional e constitutivo: o verso mesmo, claro. É uma nova liberdade do verso que Mallarmé anota e intensifica, traçando o seu acontecimento local (em França, após a morte de Victor Hugo) e limitado, como se o verso se rompesse sem rotura: "sei que se explora mais um jogo, sedutor, com os fragmentos do antigo verso (...) do que qualquer súbito achado, completamente inédito." O verso livre, nesse sentido, é ainda um resultado do verso disciplinado, que nunca desaparece deste cenário crítico. Colhe-se aí a singularidade do pensamento de Mallarmé: "crise" também significa (em Grego) resultado ou desenlace e, assim, o que sai de uma crise de verso é outro verso. Soa um pouco esquisito, mas "exquise" é exactamente a palavra francesa que qualifica a "crise" como preciosa. E talvez a poesia não seja outra coisa senão o domínio em que só o esquisito é fundamental.

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