Sigmund Freud Um amante ciumento

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Freud e Martha Bernays casaram-se em 1886. Tinham tido quatro anos de noivado à distância e trocado cerca de 1500 cartas. A editora alemã S. Fischer Verlag está a publicá-las na íntegra

Sigmund Freud e a sua noiva, Martha Bernays, trocaram mais de 1500 cartas durante o noivado secreto de quatro anos. Por correio, zangaram-se, reconciliaram-se, partilharam sonhos e esperanças e até compararam experiências com cocaína.

Durante muitos anos, ninguém fora da família soube que as cartas tinham sobrevivido. Bernays, que viveu até 1951, quase as destruiu depois da morte do seu marido, porque eram tão privadas e íntimas. As filhas convenceram-na a não o fazer. E, agora, a editora alemã S. Fischer Verlag vai publicá-las na íntegra pela primeira vez, cinco volumes ao longo de cinco anos. O primeiro volume, cobrindo o período de Junho de 1882 a Julho de 1883, já está publicado.

A intensa correspondência revela uma relação intempestuosa e um Freud ciumento, inseguro e dominador. Ilse Grubrich-Simitis, uma psicanalista e especialista em Freud, é uma das três editoras e assina a introdução. Conversámos no seu escritório esparsamente mobilado na elegante zona ocidental de Frankfurt, sentados em duas cadeiras junto a um sofá vazio.

A imaginar Freud no divã, pergunto se podemos analisar o fundador da Psicanálise a partir das suas cartas.

"Esta é a mais íntima e mais reveladora das correspondências de Freud, por isso é muito tentador", diz Grubrich-Simitis, arranjada e elegante, de óculos e cabelo grisalho. "Mas é preciso lembrar que ele era muito jovem - tinha 26 anos quando começou e 30 quando acabou [o noivado]. O seu intempestuoso e precário estado psíquico na altura tinha muito a ver com o seu estatuto social incerto."

Os dois esconderam o noivado das famílias porque Freud ainda não se tinha estabelecido e não tinha rendimentos fixos. A família Bernays mudou-se de Viena para Wandsbek, perto de Hamburgo, semanas depois do noivado. O casal só se voltou a ver durante as breves visitas de Freud. Escreveram-se quase todos os dias enquanto estiveram separados.

"Eles separaram-se demasiado cedo", diz Grubrich-Simitis. "Não puderam realmente desenvolver uma base de confiança a partir de um contacto directo. Ele era muito mais estável e conseguia lidar com a situação. Para ele, era um desafio enorme."

É a primeira vez que as cartas de Bernays se vêem publicadas. Ela surge como uma mulher viva e inteligente com sentido de humor e bom senso. Freud discutia o seu trabalho com ela e esperava que ela o acompanhasse.

"O papel dela será agora completamente reavaliado", diz Grubrich-Simitis. "Ela foi companheira intelectual de Freud durante esses anos - isto não era sabido antes. No princípio, ela era muito tímida e duvidava do seu valor. Vemos a sua autoconfiança a crescer ao longo da correspondência."

Em cartas mais tardias, Freud partilhava as suas descobertas sobre a cocaína com Martha, diz Grubrich-Simitis. Ele acreditava que a cocaína poderia levar a uma importante descoberta médica e acabar com as suas dificuldades financeiras. Até mandou alguma à sua noiva por correio.

"Martha experimentou-a por algum tempo", diz Grubrich-Simitis. "Achou que era excelente. Ocasionalmente, pedia mais."

Freud usava cocaína "frivolamente", diz ela. "Usava-a para superar medo e timidez e para energia antes de longas caminhadas, ou quando se sentia em baixo."

O jovem neurocientista tinha ciúmes de quase toda a gente no círculo mais íntimo de Martha - dos seus admiradores, mas também do seu irmão e da sua mãe. Ele queria moldar Martha, de forma a encaixar em si. Numa carta, pede-lhe: "Sê minha da forma que imagino." Também ele cresceu nos quatro anos do noivado, diz Grubrich-Simitis.

"Ele compreendeu muito rapidamente quão importante ela era para a sua estabilidade, como ligação ao mundo real", afirma. "Ele percebeu ao longo da troca epistolar que era impossível moldá-la, e que não seria bom."

Sigmund e Martha acabaram por ter seis filhos. Portanto, foi um casamento feliz? Grubrich-Simitis diz que "não há réstia de prova" para fundamentar as alegações surgidas em anos recentes de que, mais tarde, Freud teve um caso com a irmã mais nova de Martha, Minna.

"Não posso dizer se foram felizes até ao fim", diz Grubrich-Simitis, encolhendo os ombros. "Mas ele foi certamente com frequência um marido ausente, uma vez que passava todo o dia no seu consultório e à noite escrevia. Se isso foi sempre divertido para ela, não sei, mas duvido."

Die Brautbriefe, Band 1 (qualquer coisa como As Cartas da Noiva, Volume 1) está já à venda em alemão. Não há ainda planos para a publicação na íntegra noutra língua.

Exclusivo PÚBLICO/Washington Post

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