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Longe da sujidade, do suor e da balbúrdia dos escritórios em que os arquitectos criavam noutros tempos, a arquitectura dos Aires Mateus expõe-se sem mácula

Sem mácula

Em "Voids", emerge o gesto conceptual da obra dos arquitectos Aires Mateus. Nesse sentido, não podia ser uma exposição mais contemporânea. Ana Vaz Milheiro

VoidsDe Manuel Aires Mateus e Francisco Aires Mateus.

Lisboa. Appleton Square. R. Acácio Paiva, 27, R/C. Tel.: 210993660. Até 17/09. 3ª a Sáb. das 15h às 20h

Arquitectura.

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Manuel Aires Mateus e Francisco Aires Mateus apresentam até amanhã na galeria Appleton Square, em Lisboa, a exposição "Voids". Trata-se do mesmo material - quatro maquetas de dimensões colossais, representando cada uma dois projectos - que expuseram na 12.ª Bienal de Arquitectura de Veneza em 2010, a convite da comissária Kazuyo Sejima. Sejima lançara como desafio o tema "People meet in architecture", no que poderia ser interpretado como uma exposição "autobiográfica", assente num conjunto de escolhas muito pessoais; os irmãos Aires Mateus surgiram como os únicos portugueses seleccionados (para lá da representação nacional a cargo da Direcção-Geral das Artes do extinto Ministério da Cultura).

A decisão de mostrar, em Lisboa, o projecto levado a Veneza deve ser louvada, por rentabilizar investimentos e ampliar a divulgação das presenças portuguesas em encontros internacionais. Mas não se pode deixar de considerar que, em Lisboa, a intenção dos autores surge descontextualizada da leitura geral de Veneza. Todavia, é como acto isolado que é aqui analisada.

É a segunda vez que a galeria Appleton Square expõe arquitectura. A primeira foi em 2009, com a exibição do projecto de João Luís Carrilho da Graça para a Fundação de Serralves. Tal como em 2009, o comissariado de "Voids" para a Appleton Square foi da responsabilidade do crítico de arte do Ípsilon Nuno Crespo, que assina o texto de apresentação "Praticar o Vazio", incluído no livro-catálogo lançado ontem com design gráfico de Pedro Falcão.

A presença de críticos de arte em curadorias relacionadas com a arquitectura (e não o contrário) tornou-se corrente, reflectindo uma estratégia multidisciplinar bem sucedida. As alterações que esta estratégia introduz na prática profissional da maioria dos arquitectos são eventualmente residuais; mas quando se trata de expor arquitectura tornam-se determinantes. A presença de profissionais do universo artístico introduz modificações de "linguagem" ou de "terminologia" que influenciam, inclusive, o modo de pensar e organizar este tipo de mostras. Em "Voids", por exemplo, falamos de "instalações" e não de maquetas ou modelos. O arquitecto comunica assim através dos "meios" da arte - as oito casas expostas perdem qualquer conteúdo arquitectónico, para se fixarem como espectros brancos. No livro-catálogo, os lugares a que se destinam (Coruche, Cadoços, Quinta do Lago, São Brás, Monte Caveira, Aroeira, Serra do Caldeirão, Monsaraz) abstractizam-se em fotografias que exploram o efeito do "sfumato" (técnica pictórica inventada por Leonardo Da Vinci) em graduações preto e branco. Não obstante a diferenciação dos projectos - a casa da Aroeira é talvez das mais radicais na perspectiva da exploração espacial evocada ao longo da mostra -, estes apresentam-se como iguais. Nuno Crespo descreve-a assim: "A instalação "Voids" é constituída por quatro massas brancas que emergem de uma noite negra [...] e à sua superfície surgem corpos que as percorrem como golpes de luz a revelar territórios".

Para o espectador, é uma arquitectura sublime. Longínquo é o tempo em que os arquitectos traziam para as exposições fragmentos dos seus escritórios, da sujidade, do suor, da balbúrdia em que criavam, procurando assim uma maior empatia com o público, através da exposição de uma espécie de "humanidade". Agora, a arquitectura expõe-se sem mácula, livre de resíduos espúrios e da dureza do quotidiano. Não há maquetas de trabalho; não há esquiços; não há desenhos rigorosos (aliás, o trabalho do designer gráfico funciona como um filtro que altera a percepção do público transformando um documento "técnico" numa imagem).

Em "Voids", emerge o aspecto conceptual da obra arquitectónica. O arquitecto tornou-se um ser "cerebral", em oposição à figura híbrida do passado (meio-artista, meio-técnico). Actualmente, projectar transformou-se num gesto de abstracção e não na "resolução" de um problema. Neste aspecto, "Voids" não poderia ser mais contemporâneo.

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