Festival Todos Os "estrangeiros" do Largo do Intendente

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O espectáculo passa pelo apartamento dos dois actores

Dois actores chegaram ao Largo do Intendente há dois meses. Arranjaram uma casa e ficaram a ver pela janela as vidas que se cruzam na praça. Depois saíram à rua e falaram com as pessoas. A pouco e pouco integraram-se na coreografia diária de um mundo com regras próprias. A história vão contá-la num espectáculo no Festival Todos - que começa hoje na zona mais multicultural de Lisboa.

Há um homem que fala alto e a voz ecoa por todo o Largo do Intendente. À porta das instalações ocupadas desde há alguns meses, numa medida simbólica, pelo presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, estão alguns polícias. Um pouco mais à frente, uma mulher de vestido preto justo fala com um sem-abrigo sentado sobre os seus pertences. Do outro lado está uma mulher negra, com a cabeça cheia de trancinhas. Um chinês sai de um armazém, arrastando um saco de plástico preto.

O Largo do Intendente é um pequeno mundo. Os carros não entram, e são poucas as pessoas que passam por ali. Estamos ao lado da avenida Almirante Reis mas é como se estivéssemos noutro mundo, silencioso, mas onde as vozes e os passos ecoam, como num grande cenário de teatro.

Da janela de um dos prédios recentemente restaurados, duas pessoas, dois "estrangeiros" ao largo, têm estado nos últimos dois meses a observar o que se passa lá em baixo. Às vezes tomam notas num caderninho, descrevendo quem passa, as reacções dos turistas, as figuras habituais, os "reis do largo", como lhes chamam.

Cláudio da Silva (que vimos no Filme do Desassossego, de João Botelho) e Joana Craveiro (do Teatro do Vestido) são actores, e Madalena Victorino, uma das organizadoras do Festival Todos - Caminhada de Culturas - uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa e da Academia de Produtores Culturais, cuja terceira edição começa hoje e se prolonga até domingo, na zona do Intendente e Martim Moniz, como nos anos anteriores - desafiou-os a apresentarem um espectáculo a partir deste espaço e da Rua do Benformoso, que parte discretamente de um dos topos do largo e se estende até ao Martim Moniz.

A pensão vazia

Cláudio e Joana não se conheciam antes. E de repente estavam ali, a partilhar uma casa num segundo andar do Largo do Intendente, por cima de uma das antigas pensões de prostitutas, encerrada há poucos meses. Tinham à frente um largo, algumas personagens que o habitavam, uma rua que partia dele, e o projecto de contarem histórias a partir daqui. "Éramos estrangeiros um ao outro e ao bairro e decidimos que o espectáculo seria sobre essa descoberta, esse olhar", contam na pequena sala da casa onde têm vivido.

A história dessa descoberta será contada em Esquina das Coisas, um espectáculo de teatro em episódios, que poderá ser visto durante os quatro dias do festival. A peça passará por esta casa, que se foi enchendo de histórias - há, por exemplo, uma fotografia antiga do casamento dos avós de Joana, em que a avó usa uns sapatos de camurça pretos comprados na Rua do Benformoso, há uma fotografia de Joana e Cláudio junto à fonte do largo no primeiro dia em que ali chegaram, e há a memória da "pensão de cinco euros", e dos quartos hoje vazios no andar de baixo, com bidés e lavatórios abandonados no chão e velhos recortes com a imagem do Papa João Paulo II na parede. Mas o espectáculo passará também por uma visita guiada pelas ruas e pelas lojas que vão receber os dois actores para estes lerem poemas e textos.

Não foi fácil. Às vezes Joana saía para a rua para meter conversa com as prostitutas e deparava com a desconfiança destas. Respondiam-lhe com meias frases, e ela vinha-se embora. Outras vezes, quando ela nem esperava, começavam a conversar. Como quando se mostrou preocupada com a ausência do sem-abrigo que ali dorme todas as noites e foi perguntar às mulheres se imaginavam onde poderia estar.

Depois, conta Joana, "há aquele homem de chapéu, fato e gravata, que observámos muitas vezes". Para onde iria?, interrogavam-se. "Fomos também construindo personagens", explica Cláudio. "As pessoas estão a viver as suas vidas. Nós ficcionamos." E dessa realidade/ficção fazem parte as cartas que trocaram inicialmente, os bilhetes que deixaram um ao outro com recados, "as impressões, os preconceitos, os medos".

Numa altura em que Cláudio se ausentou por uns tempos, Joana ficou sozinha na casa e começou a escrever um diário em que relata esses encontros e desencontros - a prostituta com quem tenta falar sem sucesso, os chineses que vendem mexilhões a cinco euros o quilo, os lojistas, o jogo de bilhar no clube em frente, as conversas aos telemóveis em línguas estrangeiras. "Queria entrar nas casas das pessoas e escrever sobre elas. Como não podia ou não conseguia, entrei no restaurante indiano e pedi um garlic nan e um papadom spicy e aguardei", escreve. E depois, passados alguns dias, descobre "a estranha sensação de rever velhos amigos e conhecidos enquanto andava pelo Intendente".

Saímos da casa para percorrermos a Rua do Benformoso (diz um velho artigo de jornal que o nome vem de um Boi Formoso que ali havia) com Cláudio e Joana. Das janelas abertas do Sport Clube do Intendente (onde o festival Todos propõe jogos de tabuleiro de diferentes pontos do mundo) sai música alta. Entrámos pelo Benformoso, a primeira parte da rua, aquela que no início Joana tinha medo de percorrer. É a zona mais dura - um rapaz fuma droga, prostitutas encostam-se às paredes ou recolhem-se na escuridão dos bares.

Salão de Baile em chinês

Mais à frente fica o edifício do Grupo Excursionista Recreativo Os Amigos do Minho, onde António Carvalho, o director, nos abre a porta, sorridente. Lá dentro está tudo em arrumações para receber quem quiser vir ao baile (outra proposta do Todos), domingo, dia 11, a partir das 16h. A peça de Joana e Cláudio também irá passar por aqui, por este pequeno salão de baile (um papel à porta anuncia "Salão de Baile", em português e chinês), com chão de madeira, e palco em miniatura decorado com uma imagem de montanhas cobertas de neve. Aí, sob um grande espelho na parede, todos os domingos à tarde os Amigos do Minho juntam-se para dançar, ao som dos vários conjuntos residentes, que têm ali as suas salas de trabalho.

No andar de cima, onde António Carvalho nos convida a ir, há mais salas, uma delas com uma mesa grande rodeada de cadeiras almofadadas - "ao fim-de-semana jogamos aqui à sueca e ao dominó". Saímos para um pátio coberto por uma videira. À esquerda, umas escadas estreitas levam-nos a um segundo pátio, um terraço também coberto por uma videira, para onde os bailes de domingo à tarde se mudam quando o tempo está bom. Nos canteiros estão plantadas couves, tomates, malaguetas. Mas o orgulho de António Carvalho é o vinho - a vindima já foi feita, mas o vinho, que está agora "a ferver" dentro dos barris, só será aberto em Dezembro, no aniversário do grupo.

Seguimos Rua do Benformoso acima, passando por algumas das lojas onde a peça de Joana e Cláudio vai entrar, por montras cheias de objectos de plástico de todas as cores, pelo edifício novo em folha no local onde foi em tempos uma fábrica de caixões, pela casa que resistiu ao terramoto, e pela cabine telefónica que, segundo contaram aos dois actores, "as pessoas no Bangladesh conhecem". Quem chega a Lisboa vindo do Bangladesh sabe que pode ir ter a esta cabine, no extremo da Rua do Benformoso mais próximo do Martim Moniz, e que mais cedo ou mais tarde aparecerá alguém que lhes ajudará a encontrar alojamento e trabalho.

Subimos à esquerda até ao Beco do Alegrete, por onde a peça irá também passar. Foi aqui que Joana e Cláudio conheceram algumas senhoras que lhes contaram histórias - "abençoado encontro, mais de uma hora a conversar, e no meio daquilo elas fazem-me uma visita guiada de memória à Rua do Benformoso do antigamente, e dizem-me havia um alfaiate, uma ourivesaria, um lugar, e eu perguntava "onde?"", escreve Joana no diário.

A loja da D. Luísa

No beco, no cimo das escadinhas, há duas mesas, algumas cadeiras e um quadro pintado. Diz-se que foi deixado numa casa por um inquilino e que alguém o pendurou ali fora. Na fachada de um prédio há outro, um poster com o Piu-Piu rodeado de corações, e uma declaração de amor.

Ainda voltámos à Rua do Benformoso para conhecer a D. Luísa, que atende uma cliente chinesa na sua loja cheia até ao tecto de fitas de cores, pentes de plástico, tesouras, caixas com meias, novelos, apitos de plástico e tudo o que ainda consegue vender escapando à concorrência dos chineses, que desde que chegaram ao bairro lhe deram cabo de boa parte do negócio - ao mesmo tempo que se tornavam nos seus melhores clientes. Aqui Cláudio e Joana vão ler Florbela Espanca, uma escolha de António Barroso, o marido da D. Luísa.

Despedimo-nos. Cláudio e Joana vão voltar à sua casa e à sua janela sobre o largo. Em baixo estará o sem-abrigo e as prostitutas e os polícias, e todos aqueles que com o tempo foram-se habituando à presença ali daqueles dois estrangeiros que só queriam contar histórias, mas que para isso tinham que compreender um pouco que fosse daquele sítio - e foi assim que se tornaram também eles numa história. Os "estrangeiros" do Largo do Intendente.

Esquina das Coisas

De Cláudio da Silva e Joana CraveiroLargo do IntendenteHoje às 21h; amanhã às 20h e às 23h; sábado às 11h, 16h30, 19h e 23h; domingo às 15h, 16h, 17h, 18h e 19h. Sessões entre 30 a 60 minutos. Gratuito

Programação do Festival Todos (que inclui música, dança, teatro, performance, fotografia, workshops, gastronomia e jogos) em http://todoscaminhadadeculturas.blogspot.com

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