Crazy Horse, por Frederick Wiseman: a expressão das nádegas

O coreógrafo Philippe Decouflé trabalha num espectáculo chamado Désir para o "nude show mais chic do mundo". Frederick Wiseman filma. Não o que está do lado de lá do palco do cabaret. O que está do lado de cá. As fantasias que criamos

Mãos, dedos, teatro de luz e sombras projectado na parede, algo próximo de uma fantasia infantil. Assim começa e assim acaba a viagem do documentarista norte-americano Frederick Wiseman por uma "instituição" parisiense, o Crazy Horse - depois da Comédie Française (La Comédie-Française ou l"Amour Joué, 1996) e do Ballet da Ópera de Paris (La Danse, 2009), agora é o cabaret da Rue George V, fundado em 1951 por Alain Bernardin.

Lá fora a cidade, flashes, apenas apontamentos, para isolar ainda mais aquele mundo interior numa estufa, como matéria de fantasia, onde o coreógrafo Philippe Decouflé prepara um espectáculo chamado Désir.

É verdade que Crazy Horse (na secção Venice Days) também é feito da matéria dos making of. É verdade que entramos para o outro lado do palco, onde se prepara o guarda-roupa, a maquilhagem; onde se ensaia, onde Decouflé se debate com as exigências de um boss, com o planeamento de um clube que tem de manter um espectáculo em exibição enquanto se trabalha noutro ou com a herança figurativa daquele para quem foi criada a categoria do "nude show mais chic do mundo" - e eles falam sobre erotismo e desejo, alguém convoca em delírio Fassbinder, Helmut Newton ou Marlene por Sternberg para inscrever o Crazy Horse numa linhagem. É verdade, mas sente-se menos do que noutros filmes de Wiseman a estrutura de um organismo vivo em marcha, o que pode provocar algum solavanco no espectador. Mais do que os bastidores, por exemplo, o que interessa a Wiseman são as nádegas ("Meninas, sobretudo as nádegas para cima", grita quem dirige uma sessão de casting). Não é coisa de octogenário babado. É coisa irónica - e de uma inocência quase infantil. Coisa de fantasia. E de fantasmas.

Explicamos. Não lhe interessa a cara das bailarinas, definitivamente nada da sua expressão interior (ninguém aqui é personagem). Mas a luz. E a forma como ela transforma a carne - como deserotiza a carne. O que Wiseman mostra é sempre o espectáculo, o que está on, mais do que o que está em off. E com essa falsificação, as formas arredondadas pelos trabalhos da luz, com essa insistência no espectáculo, Crazy Horse abre as portas à abstracção na concentração do espectador. Impõe-se como superfície reflectora. Não é a reprodução de Désir, de Decouflé, que está em causa, como já se percebeu. Não é o que está do lado de lá do palco do cabaret. É o que está do lado de cá. É o nosso desejo. O que fazemos. As fantasias que criamos. V.C., em Veneza

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