A ameaça rastejante que mata milhares em todo o mundo

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Os ataques de cobras venenosas têm um impacto muito maior do que o estimado até aqui. Pensa-se que, por ano, possam morrer em todo o mundo cerca de 125 mil pessoas vítimas das serpentes. Em Portugal, o risco é quase nulo. Há uma semana foi encontrada uma pitão numa caixa, em Cascais. A cobra está a recuperar

A véspera tinha sido atribulada, devido aos violentos fogos florestais que varreram as redondezas. De regresso ao armazém, um funcionário dirige-se a uma arrecadação, senta-se em frente ao computador e liga-o. Nada. Como de costume... Com um encolher de ombros, o jovem estende o braço e estica a mão para a parte de trás do aparelho. Tacteia à procura do botão, como já fez tantas vezes. Mas, hoje, sente uma dor violenta: acaba de ser mordido por uma víbora.

A história parece saída de um filme de suspense, mas aconteceu mesmo, há quatro anos, na zona industrial da Maia. Portugal, sim. Fugindo do fogo, uma víbora-cornuda foi refugiar-se exactamente na parte de trás de um computador que tinha problemas de arranque. Esta sequência de acasos acabou por ter um desfecho dramático: a braços com um choque anafiláctico (manifestação extrema de alergia), o jovem picado passou algum tempo em coma, antes de recuperar.

Esta é uma das histórias mais graves envolvendo ataques de cobras venenosas em Portugal. Até nisso a Natureza foi simpática para os habitantes do rectângulo... O número de ataques anuais conta-se pelos dedos de uma mão e, tirando crianças, idosos ou pessoas afectadas por doenças crónicas, não têm, normalmente, consequências graves - o que torna o caso da Maia ainda mais atípico, por se tratar de um adulto jovem. O último caso mortal deverá ter acontecido há cerca de 30 anos.

No passado dia 21, um grupo de desportistas encontrou uma caixa junto a um armazém em Alcabideche, Cascais. Lá dentro estava uma pitão-albina (Phyton molurus bivittatus) com 1,70 metros e 15 a 20 quilos. Encontrava-se muito debilitada e está agora a recuperar no parque Monte Selvagem, em Montemor-o-Novo.

Mas o cenário mundial é tudo menos cor-de-rosa. As pessoas invadem cada vez mais os habitats das serpentes e estas aprenderam a procurar os humanos por causa dos ratos que estes atraem. No Sudeste asiático, África subsariana e América Central e do Sul, os ataques de cobras venenosas são um sério problema. Só que estes répteis são também um factor indispensável de controlo das pragas agrícolas e o mundo começa agora a descobrir as potencialidades farmacêuticas dos compostos que formam os seus venenos.

Pânico instintivo

De regresso a Portugal. A víbora-cornuda é uma das duas espécies que representam perigo potencial para os seres humanos. Tem uma distribuição nacional, com preferência para terrenos montanhosos, o que faz com que possa aparecer até em áreas densamente habitadas. "Já retirámos algumas de casas de pessoas em locais tão urbanos como a Maia ou Benfica", recorda João Loureiro, técnico do Instituto Nacional para a Conservação e Biodiversidade (ICNB) e coordenador da Unidade de Aplicação de Convenções Internacionais.

A outra é a víbora-de-seoane, que se encontra apenas no Parque Nacional da Peneda-Gerês. Em qualquer dos casos, trata-se de serpentes pequenas (50 a 80cm) e muito tímidas, que fogem mal sentem a presença de seres humanos. Os raros ataques acontecem quando estes cometem erros, como enfiar as mãos em buracos ou deixar tendas abertas - qualquer serpente gosta de sítios escuros e quentes.

A cobra-rateira (Malpolon monspessulanus), que pode ultrapassar os dois metros de comprimento e é a maior serpente da península Ibérica, também produz veneno, mas os dentes inoculadores estão no fundo da boca, pelo que não há grandes hipóteses de afectar os humanos. Mas, em muitos casos, o medo de cobras está de tal maneira enraizado no nosso subconsciente que o pânico toma conta das pessoas antes sequer de conseguirem fazer uma análise racional do que viram.

"Ter uma senhora aos gritos ao telefone porque encontrou uma cobra em casa não é um cenário fora do comum...", sorri João Loureiro. Mas se algum dia alguém encarou estes pedidos de socorro de ânimo leve não terá sido este técnico cujo início de carreira foi, digamos, radical: "Aconteceu na Maia, das primeiras coisas que fiz no então ICN. Uma senhora telefonou, assustadíssima, porque tinha uma cobra em cima da cama. Quando lá chegámos, demos com uma pitão de sete metros... era do vizinho de cima e tinha fugido. O animal ainda passou uns anos num parque zoológico da Maia, mas morreu entretanto."

Uma pitão não é venenosa, mas morde. Aliás, quase todas as cobras são capazes de morder. Mas quando essa dentada traz consigo a ameaça de morte de um veneno, então aquele desconforto epidérmico que sentimos ao pensar nestes répteis cresce até ao pânico mais cego. "As cobras, incluindo as víboras, têm mais medo de nós do que nós delas", contesta João Loureiro. Sim, e também é verdade que sofrem muito mais com a nossa acção do que vice-versa. Mas basta a ideia de um réptil furtivo e sinuoso, de sangue frio e olhar vítreo, escondido num canto onde vamos ter de meter a mão... e pronto, lá está.

Um problema mundial

Para os que têm medo de cobras - e quem nunca sentiu, sequer, um arrepio que atire a primeira pedra - ser europeu é um luxo. Em nenhum outro continente é tão pacífica a convivência entre os humanos e estes répteis extraordinários. Isto se exceptuarmos a Antárctida, a única grande massa terrestre onde não há serpentes (e também praticamente não há humanos...). Das quase três mil espécies de serpentes do planeta, cerca de 600 são venenosas e, destas, dois terços são consideradas perigosas para as pessoas.

As mordeduras de cobras venenosas são um problema de saúde à escala planetária. Todos os anos, talvez umas 5,5 milhões de pessoas são mordidas e pensa-se que estes ataques sejam responsáveis por até 125 mil mortes e cerca de 400 mil amputações. Estes números, recorda a BBC online, tornam-se ainda mais impressionantes quando comparados com os de algumas doenças tropicais, como doença de Chagas (217 mil casos/14 mil mortes), a cólera (178 mil casos/14 mil mortes) ou a febre-amarela (2000 casos/100 mortes).

Um documentário recente da BBC, intitulado One Million Snakebites (Um Milhão de Mordeduras de Serpentes), chama a atenção para o facto de os números oficiais de ataques de cobras venenosas terem sido, até aqui, claramente subestimados, uma vez que se baseavam em registos hospitalares. Ora, na Índia, tal como em tantos outros países, há zonas agrícolas de difícil acesso onde muita gente mordida por serpentes ou morre ou se salva por si só. O título do documentário faz alusão ao número calculado de encontros traumáticos entre humanos e serpentes venenosas apenas na Índia.

Neste país, há quatro espécies responsáveis pelo grosso do milhão de mordeduras: a Naja naja (Cobra-capelo), a Daboia russelii (víbora-de-russell), a Echis carinatus (que os ingleses conhecem por saw-scaled viper, aludindo às escamas em forma de dentes de serra) e a Bungarus caeruleus (a krait-comum). São algumas das serpentes mais perigosas do planeta, nomeadamente porque procuram os povoamentos humanos, onde encontram abundância de ratos, o seu alimento por excelência.

Os tipos de veneno

Esta proximidade beneficia os humanos, porque controla as pragas que, de outra forma, arrasariam as produções agrícolas. Mas há um preço a pagar. Na Ásia, em África, na América do Sul, há milhares de mortos todos os anos, principalmente entre os que se dedicam à agricultura. Na América do Norte, onde as principais espécies venenosas vivem em zonas mais específicas (pântanos, desertos, mato) e os cuidados de saúde estão mais evoluídos, o número de desfechos fatais é infinitamente menos expressivo.

Mas o campeão do veneno continua a ser o continente australiano - só mesmo na Austrália as cobras venenosas constituem a maioria das espécies nativas. Algumas das serpentes mais venenosas do mundo (em terra e no mar) rastejam ou nadam por ali. Mas isso não significa que haja uma hecatombe entre os australianos: na verdade, são raras as mortes. Mais uma vez, a generalização dos soros antiveneno explica muita coisa. Mas há que dar crédito, igualmente, ao carácter reservado das cobras australianas.

O veneno das serpentes não é uma entidade única. Pelo contrário: existem tantos venenos quantas as espécies venenosas, divididos, genericamente, em quatro tipos principais: hemotóxicos (atacam o sangue), neurotóxicos (afectam o cérebro e o sistema nervoso central), citotóxicos (destroem as células) e miotóxicos (apodrecem os tecidos). Cada espécie encontrou uma combinação diferente de proteínas e enzimas para compor um produto final que lhe assegure vantagem na luta pela sobrevivência. Os cientistas estão, aliás, convictos de que a evolução está a tornar os venenos cada mais potentes - algo que, mais uma vez, só pode deixar-nos um bocadinho arrepiados...

Acontece que estas elaboradas combinações químicas escondem certamente respostas para alguns dos grandes desafios da medicina. Hipertensão, cancro, problemas de coração, hemofilia. A lista poderia continuar e vai, pela certa, estender-se à medida que os cientistas forem conseguindo decifrar os segredos destes cocktails criados pela evolução.

O papel de controlador de pragas torna as cobras venenosas parceiros indispensáveis da agricultura em muitas zonas do planeta. Reduzir o número de mortes causadas pelas suas mordeduras não passa, por isso, pela erradicação dos répteis, mas sim pela generalização de cuidados rápidos de saúde junto das populações em risco, que devem também ser educadas acerca da fauna da sua região. Humanos e répteis agradecem.

Quanto a nós, portugueses, resta-nos estar gratos por não termos de dormir no mesmo chão por onde se passeiam ratos e cobras venenosas...

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