Martin Luther King O primeiro negro entre presidentes

"Graças a Deus que ainda estou vivo para ver isto", diz o afro-americano Micah Johnson. O memorial de Martin Luther King é o primeiro dedicado a um negro num panteão que até agora pertencera exclusivamente a presidentes americanos

Numa extensão de terra onde até recentemente só presidentes e soldados tinham sido imortalizados, existe agora o primeiro memorial dedicado a um pastor negro - um homem, como lembrava há dias o New York Times, que não só não foi um criador de leis, mas que, durante algum tempo, foi um violador deliberado das mesmas. A imprensa americana não deixou passar em branco o jogo de palavras: "A king among presidents", escreveu o USA Today. "King" é o apelido, mas significa também "um rei entre presidentes".

O memorial dedicado a Martin Luther King deveria ser oficialmente inaugurado amanhã por Barack Obama, mas a proximidade do furacão Irene pela região de Washington obrigou ao adiamento da cerimónia para "Setembro ou Outubro". O monumento demorou 28 anos a materializar-se, mas as adversidades podem ser providenciais: que o primeiro memorial dedicado a um afro-americano seja descerrado pelo primeiro Presidente negro americano é um símbolo extraordinário. Quando Obama venceu as eleições presidenciais em 2008, não faltaram análises notando que o "sonho" de Martin Luther King se tinha finalmente concretizado.

"Pessoalmente, penso que é um passo gigantesco na história do nosso país que o primeiro Presidente afro-americano inaugure o primeiro memorial de uma pessoa de cor dedicado aos Estados Unidos", declara Harry Johnson, presidente do conselho de administração da Fundação Martin Luther King, responsável pelo projecto, numa apresentação do monumento à imprensa, esta semana.

Existem outros memoriais dedicados a Martin Luther King nos EUA, mas este é o primeiro no National Mall, em Washington - uma combinação de parque e panteão nacional como só poderia existir na América, pontificada por monumentos e templos neoclássicos dedicados aos pais fundadores da nação. Simbolicamente, é o espaço sagrado da democracia americana, delimitado pelo Capitólio, num extremo, e pelo Lincoln Memorial, no lado oposto, a Casa Branca a norte, o Memorial de Thomas Jefferson a sul e um obelisco homenageando George Washington no centro. Durante o Verão, o National Mall é o destino de milhares de americanos vindos de todo o país em peregrinação.

"Pela primeira vez, esta terra vai ser diversificada", diz Harry Johnson. O monumento dedicado a King está localizado numa linha directa entre os memoriais de Lincoln e Thomas Jefferson, explica aos jornalistas Bill Line, do gabinete de comunicações do Serviço Nacional de Parques. "Thomas Jefferson é o cérebro da Constituição americana e Abraham Lincoln é o grande unitário. A justaposição de Martin Luther King entre os dois é muito importante." Até porque, apesar de professar ideais de igualdade, Jefferson era dono de escravos. Lincoln libertou os escravos com a Guerra Civil, mas a segregação racial prosseguiu no Sul do país até à década de 1960.

As irmãs Rosa e Phyllis Lee eram crianças nos anos 60. "Quando houve a grande marcha em Washington [em 1963, onde King proferiu o seu célebre discurso I have a dream], acho que passámos o dia inteiro a vê-la na televisão", recorda Rosa, uma assistente social de 63 anos. "Quando se passou por essa experiência, as coisas têm outro significado. E nós vivemos esse período", nota Phyllis, professora reformada, de 64 anos. "Nós vimos o que a nossa gente [negros] teve de passar no Sul. E vimos como ele pôs fim a isso. E não foi só por nós que ele fez isso. Foi pelo país."

Rosa e Phyllis estão entre os visitantes que decidiram ver o memorial antes da inauguração - para evitar as multidões previstas para o dia da abertura ou, simplesmente, porque não podiam esperar. Na terça-feira, todos os outros memoriais no National Mall foram encerrados ao público na sequência do tremor de terra, mas o de Martin Luther King continuava aberto, supostamente para satisfazer a curiosidade pública - o único sítio em Washington onde o tema de conversa não era o terramoto.

Pedra de esperança

Famílias inteiras posavam ao sol, frente à monumental figura de King, para as fotografias. Jovens afro-americanos imitavam a postura de King. Corredores suados detinham subitamente o passo e levantavam a cabeça como gruas para o alto. Toda a gente a pedir a alguém: "Não se importa de nos tirar uma fotografia?"

O memorial é composto por três blocos de granito branco. A entrada faz-se por uma abertura entre dois blocos que formam uma montanha. O bloco do meio, com seis metros de altura, encontra-se mais à frente, com a figura de Martin Luther King esculpida em alto-relevo, emergindo da pedra.

O autor baptizou as duas peças na retaguarda de "Montanha do Desespero" e o bloco central, com King, de "Pedra da Esperança", inspirando-se num excerto do discurso I have a dream, em que King menciona uma "pedra de esperança" saída de "uma montanha de desespero": "With this faith we will be able to hew out of the mountain of despair a stone of hope." King está de pé, vestido com um fato, braços cruzados, a mão esquerda segurando um rolo de papéis. A expressão facial é austera, o olhar é diagonal, demasiado elevado para alguma vez se cruzar com a linha de visão dos visitantes.

"Ele parece ter aquele olhar que o teu pai faz quando estás a fazer alguma coisa errada", comenta Lisa Schmitt, 43 anos, que estava a correr no National Mall com duas amigas e colegas de trabalho. "Mas acho que ele parece muito assertivo e seguro de si mesmo." Lisa Gyory, 46 anos: "No outro dia, ouvi alguém comentar na rádio que ele parece um pouco desapontado e que há muito trabalho por fazer. E concordo. Durante a vida ele tentou ultrapassar uma série de desapontamentos, esperando que o mundo mudasse. Portanto, acho que é bastante adequado." Elaine McSweeney, 39, a terceira mulher do grupo: "Acho que ele tem um olhar de esperança."

Escultor chinês

A ideia de erigir um memorial nasceu em 1983 e partiu da mais antiga confraria afro-americana nos EUA, Alpha Phi Alpha, de que King fez parte. Durante as quase três décadas seguintes, os organizadores enfrentaram batalhas com comissões governamentais sobre a localização e o design do projecto e problemas de financiamento - originalmente, o custo projectado foi de um milhão de dólares; o custo final é de 120 milhões de dólares, obtidos através de contribuições privadas nos últimos dez anos. A família de King alegadamente exigiu e recebeu 800 mil dólares pela autorização do uso da sua imagem e de excertos dos seus discursos no memorial.

Em 2007, a selecção de um escultor chinês, Lei Yixin, para executar o memorial gerou controvérsia por não ter sido escolhido um artista afro-americano, ou mesmo americano. No dia da apresentação do monumento à imprensa, alguns afro-americanos apareceram no local, com T-shirts que diziam: "Martin Luther King Jr. nascido na América. Pedra da Esperança made in China?"

Mas a maior parte dos visitantes desconhece que o autor é chinês. "Sabe que mais? Eu não sabia disso até alguém o mencionar há pouco", diz Denis Johnson, 55 anos, um polícia afro-americano de Detroit. "Não creio que a mensagem dele [King] fosse destinada apenas a um grupo de pessoas. Acho que era universal. Tal como Mahatma Gandhi - apesar de ele ser indiano, penso que a mensagem dele destinava-se a mais do que só aos indianos."

Phyllis Lee: "As coisas que ele fez para ajudar este país a andar para a frente... E não necessariamente apenas este país: no outro dia estava a ler que durante a revolução no Egipto eles basearam uma boa parte do que estavam a fazer na filosofia de King."

Um livro de banda desenhada narrando a história de Martin Luther King circulou entre os jovens protestantes da Praça Tahrir, esta Primavera, como uma forma de promover actos de desobediência civil pacifista.

As críticas ao memorial voltaram a emergir esta semana. O New York Times considera-o um monumento "falhado", retratando King de forma autoritária, como se fosse "um guerreiro ou um estadista". O Washington Post escreveu que o resultado é "um colosso austero, vestido no mesmo estilo de fato que se vê em muitas estátuas de Estaline".

Mas o último teste é o escrutínio público.

"Eu tenho sentimentos contraditórios", diz Phyllis Lee. "Vejo King como um cavalheiro, e esta postura [cruza os braços no peito] é..."

"Uma postura de desafio", completa a irmã Rosa.

"Exacto. E isso não é o tipo de pessoa que ele era."

"Nos anos 60, havia outras pessoas que queriam assumir uma posição, não quero dizer violenta, mas mais activa contra o racismo. Mas ele era um homem de paz", continua Rosa. "Acho que é por isso que não gosto da escultura."

O que não quer dizer que não esteja grata por, finalmente, Doctor King ter o seu memorial.

Como diz Micah Johnson, 63 anos, funcionário administrativo de uma universidade em Washington: "Graças a Deus que ainda estou vivo para ver isto."

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