Comandante Camila

Aos 23 anos, a bela líder estudantil chilena Camila Vallejo, rosto de um movimento que está a abalar o Governo de Sebastián Piñera, tornou-se um ícone nacional

O entusiasmo dos chilenos por Camila Vallejo, a líder estudantil de 23 anos que está a fazer tremer o Governo de centro-direita do Presidente Sebastián Piñera, só tem paralelo com o que granjeou, nos anos 90, o porta-voz do Exército Zapatista de Libertação Nacional, o misterioso subcomandante Marcos. Mas, ao contrário de Marcos, Camila não esconde a sua identidade nem tapa a cara com um barrete de esquiador, o que, no seu caso, constitui uma inegável vantagem. Ela própria o reconhece: "Vêm ouvir-me por causa da minha aparência, mas depois exponho as minhas ideias".

E as ideias de Camila são claras: quer acabar com a política liberal que o Chile há muito vem seguindo na educação, caracterizada por um crónico subfinanciamento das universidades públicas e pelo apoio estatal a instituições de ensino privadas, que se tornaram num negócio lucrativo, cobrando propinas elevadas e obrigando os estudantes de menores recursos a contrair empréstimos que só conseguem saldar muitos anos após terem entrado no mercado de trabalho.

A greve geral de 48 horas que paralisou esta semana a função pública chilena e uma parte não muito significativa do sector privado, e que foi acompanhada por grandes manifestações nas principais cidades do país - os organizadores falam em 600 mil pessoas, o Governo calcula 175 mil -, é apenas o capítulo mais recente de uma vaga de protestos que se iniciou nas universidades em Maio passado, quando Camila Vallejo, que ascendera no final de 2010 à presidência da Federação de Estudantes da Universidade do Chile, saiu à rua com mais de 50 mil estudantes, numa manifestação que terminou com 138 detidos, após violentos confrontos com a polícia.

O movimento de protesto nunca mais parou e alargou-se aos sindicatos. A greve geral de dois dias - a primeira convocada desde os tempos de Pinochet - foi organizada pela confederação sindical CUT, que apoiou expressamente as reivindicações dos estudantes. Centenas de pessoas foram presas e os confrontos com as autoridades já provocaram uma vítima mortal - Manuel Gutierréz, um adolescente de 14 anos, baleado na madrugada de ontem com um tiro no peito - e dezenas de feridos, incluindo 19 polícias. Mario Parraguez, um estudante de 18 anos, foi atingido com um tiro num olho e encontra-se em estado crítico.

Com a economia chilena a crescer seis por cento ao ano, seria de esperar que Piñera, eleito em Março de 2010, tivesse um mandato tranquilo. Mas os chilenos que sentem que este milagre económico lhes está a passar ao lado são os bastantes para que as sondagens atribuam ao Presidente uns escassos 28 por cento de apreciações positivas, que contrastam com os 68 por cento de juízos favoráveis que Camila Vallejo registou num inquérito nacional realizado este mês. Na sua primeira e recente aparição televisiva, a líder estudantil conseguiu o segundo maior pico de audiência do ano.

Francisco Vidal, um ex-ministro de Piñera que já integrara o Governo da sua antecessora, a socialista Michelle Bachelet, comparou-a à histórica líder do Partido Comunista Chileno, afirmando que Camila "é a Gladys Marín do século XXI". E a sua aura já está a atravessar fronteiras. O vice-presidente boliviano, García Linera, apelou aos estudantes do seu país para seguirem o exemplo da "jovem e bela líder chilena, que está a conduzir a juventude num grande levantamento". E garantiu: "Estamos todos apaixonados por ela".

Herdeira "pinguim"

Neta de um revolucionário do grupo marxista-leninista MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) e filha de dois militantes do Partido Comunista chileno, Camila aderiu à estrutura do partido para a juventude em 2007, pouco após ter iniciado estudos de Geografia na Universidade do Chile. Quando ganhou as eleições para a liderança da Federação de Estudantes, no final de 2010, ainda pouco se falava dela. Mas tornar-se-ia, em poucos meses, o rosto (um belo rosto) do descontentamento social no Chile, e já não apenas a dirigente do movimento estudantil. Não falta mesmo quem lhe augure uma carreira política, e a própria Camila já avisou que não descarta a possibilidade de vir a candidatar-se à presidência da República.

O actual movimento estudantil tem sido associado à célebre "revolução dos pinguins", como ficou conhecida a luta dos alunos do ensino secundário que, em 2006, abalou o Governo de Bachelet. São justamente esses "pinguins", assim chamados por causa dos seus uniformes, que hoje estão nas universidades e prosseguem o mesmo combate. Em 2006, apesar de terem organizado grandes manifestações e conquistado algumas reformas, não conseguiram manter a chama acesa por muito tempo. Eram novos e faltava-lhes um líder carismático. Agora já o têm.

A ascensão de Camila começa em Maio de 2011, com a primeira grande manifestação de estudantes. O então ministro da Educação, Joaquín Lavín, tenta dialogar. Camila recusa: "Não nos vamos sentar com ninguém enquanto não existir um sinal claro de que se pretende recuperar a educação pública e regular o ensino privado, acabando com a lógica do lucro". E acusou Lavín de protagonizar um conflito de interesses, enquanto proprietário de uma universidade privada.

Os estudantes acabariam por se encontrar com Lavín, que saiu da reunião acusando Camila Vallejo de extravasar o âmbito das reivindicações estudantis, propondo a nacionalização da indústria de extracção do cobre e o fim do sistema político binominal.

Era o início dos verdadeiros confrontos. Os reitores de várias universidades públicas juntaram-se aos protestos, os estudantes organizaram sucessivas manifestações com dezenas de milhares de pessoas, universidades e liceus foram tomados pelos alunos e a Casa Central da Universidade do Chile, em Santiago, um palácio histórico que hoje alberga a reitoria da universidade, foi transformada em dormitório e cozinha improvisada.

Em meados de Junho, 80 mil estudantes manifestaram-se defronte do palácio La Moneda, sede da presidência, e exigiram um ensino superior gratuito e a renacionalização dos recursos estratégicos do país. No final do mesmo mês, Camila regressou a La Moneda, agora liderando quase cem mil pessoas. Piñera anunciou um investimento equivalente a 274 milhões de euros na educação, demitiu Lavín, substituindo-o pelo até então ministro da Justiça, Felipe Bulnes, e propôs o chamado GANE, sigla de Grande Acordo Nacional para a Educação. Camila rejeitou o acordo.

O Governo chileno começa a levar muito a sério a ameaça representada por esta jovem de 23 anos. E uma funcionária do Ministério da Cultura foi mesmo longe de mais e escreveu na Internet, recuperando uma expressão tristemente celebrizada por Pinochet: "Mata-se a cadela e acaba-se com a prole". Seguiram-se várias outras ameaças de morte nas redes sociais, e os pais de Camila conseguiram que o Supremo Tribunal ordenasse uma investigação e impusesse às autoridades a protecção da líder estudantil.

Fã dos Radiohead

A direita acusa-a de usar o movimento estudantil para impor uma agenda ideológica. Confrontada, numa entrevista televisiva, com o seu alegado "horror ao dinheiro", limitou-se a observar, referindo-se à política educativa de Piñera, que "sustentar que o lucro gera qualidade é também um argumento ideológico".

Pouco dada a falar sobre a sua vida pessoal, o que se sabe dela é o que quis contar numa breve autobiografia publicada na imprensa em Julho passado: de seu nome completo Camila Antonia Amaranto Vallejo Dowling, observa que o facto de ter um apelido espanhol e outro irlandês não significa que venha de uma família endinheirada: "Os irlandeses chegaram [ao Chile] como piratas, e todos sabemos como chegaram os espanhóis".

Camila estudou num colégio privado e licenciou-se em Geografia na universidade pública. Gosta de pintar e os seus artistas favoritos são Gustav Klimt e o chileno Roberto Matta. Diz que se interessa por política desde a infância e garante ter lido Bakunine aos 14 anos, em fotocópias emprestadas por um colega de liceu anarquista. Mas a sua referência política é hoje o Presidente boliviano Evo Morales. Já a Hugo Chávez, acha-o "um figurão".

Também gosta de dançar e, embora tenha um gosto musical ecléctico, confessa ter contraído no liceu uma particular paixão pelos Radiohead.

O seu filme preferido é Clube de Combate, de David Fincher, e haverá quem ache inquietantes as razões que adianta para tal: "Tem um tema de fundo forte - gerar uma catarse através da violência e dar-lhe um sentido".

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