Arte roubada Há um gigantesco museu invisível

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RUI GAUDÊNCIO

Cem anos após o célebre roubo da Mona Lisa do Museu do Louvre, o FBI calcula que as transacções de obras de arte roubadas movimentem hoje mais de quatro mil milhões de euros anuais. Há 250 mil peças dadas como desaparecidas e a lista aumenta ao ritmo de dez mil por ano. Todas juntas, formariam a maior colecção de arte do mundo

Na madrugada do dia 21 de Agosto de 1911, um artesão italiano de 30 anos, Vincenzo Peruggia, saiu calmamente do Museu do Louvre trazendo a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, escondida debaixo do casaco. A obra-prima de Leonardo era já então considerada uma das mais importantes pinturas da Renascença, mas não mais do que isso. As verdadeiras jóias da coroa do Louvre, as peças que todos os visitantes queriam ver, eram ainda as esculturas da Vénus de Milo e da Vitória de Samotrácia. Mas o roubo da Mona Lisa teve uma tal repercussão internacional que, uns dias depois do audacioso assalto de Peruggia, o retrato de Lisa Gherardini, dita A Gioconda, tornava-se, da noite para o dia, a mais famosa pintura de todos os tempos. Azar de Peruggia, que tencionava manter a obra escondida durante algum tempo, para depois a vender a um dos seus contactos no mundo do crime. Mas já não era assim tão fácil vender uma peça que andava reproduzida nas primeiras páginas dos jornais de todo o mundo.

Franz Kafka, acompanhado do seu amigo Max Brod, foi um dos muitos curiosos que acorreram ao Louvre expressamente para ver o espaço vazio onde estivera a Mona Lisa. E, uma vez que estava em Paris, aproveitou para ir ver um espectáculo de vaudeville, cujo tema era, claro, o roubo do Louvre. Ninguém falava doutra coisa. O golpe de Peruggia era evocado em canções de cabaré e nas ilustrações das revistas, e chegou mesmo a ser rodada uma curta-metragem. Boa parte das sátiras tinha como alvo a polícia francesa, e com bons motivos, já que a investigação não se revelou propriamente um modelo de competência.

Peruggia era empregado do Louvre e fora um dos responsáveis pela colocação de um vidro de protecção na Mona Lisa. O assalto que concebeu não podia ser mais simples. Depois de o museu fechar, no domingo, deixou-se ficar escondido no interior, com os seus dois cúmplices. No dia seguinte, o Louvre estava fechado, de modo que teve todo o tempo que quis para subtrair a peça.

Após o roubo, as autoridades foram interrogá-lo à pensão onde se alojava - e onde tinha escondido a pintura, no fundo falso de uma arca de madeira -, mas não desconfiaram de nada. E Peruggia até tinha cadastro. Fora preso em 1908 por roubar uma prostituta e, uns meses mais tarde, viria a ser detido por posse de arma. É possível que a polícia achasse inconcebível que o autor do roubo do século fosse um pobre emigrante italiano, já que a verdade é que, acossada pela opinião pública, prendeu uma enorme quantidade de alegados suspeitos, incluindo o pintor Pablo Picasso e o poeta Guillaume Apollinaire.

Quase dois anos e meio após o roubo, Peruggia regressou à sua Florença natal. Viajou de comboio, levando consigo a arca onde escondera a Mona Lisa. Tentou, então, vendê-la a um negociante de arte, que, por integridade ou receio, achou mais avisado alertar a polícia. Peruggia foi julgado em Itália, alegou que o movera o propósito patriótico de devolver a obra de Leonardo a Florença, e safou-se com uma pena de oito meses de prisão. A pintura regressou ao Louve e, nos dois dias que se seguiram à devolução, foi vista por cem mil pessoas. O corrupio mantém-se até hoje: a Mona Lisa é apreciada anualmente por oito milhões de visitantes.

Crime lucrativo

O desaparecimento de pinturas ou esculturas famosas - não por acaso tema de muitos romances e filmes - tem um lado emocionante, que atrai compreensivelmente a atenção dos media. Mas não são os roubos de Rembrandts e Picassos que, por si só, fazem do tráfico de arte a quarta actividade criminosa mais lucrativa no mundo actual, logo a seguir ao tráfico de drogas, à venda ilegal de armamento e ao crime financeiro.

O FBI estima que o mercado negro da arte movimente cerca de seis mil milhões de dólares anuais (4,1 milhões de euros). Mas estes números abrangem também, por exemplo, o lucrativo comércio ilegal de peças arqueológicas. O roubo de uma antiguidade no Peru ou no Equador dificilmente é notícia de primeira página, mas é muito mais frequente do que o roubo de um Da Vinci ou de um Van Gogh. Na lista de obras de arte desaparecidas em 2011, disponibilizada pelo FBI, os artefactos de arte pré-colombiana e outras preciosidades arqueológicas são a esmagadora maioria.

E, recuando alguns anos, pense-se, por exemplo, nas guerras do Golfo, em 1991 e 2004, durante as quais se perderam milhares de obras-primas deixadas pelas sucessivas civilizações mesopotâmicas, muitas delas desviadas para o florescente mercado negro de antiguidades da Europa, dos EUA ou do Japão. No domínio daquilo a que se poderia chamar a arte de autor, um saque desta dimensão só ocorreu uma vez na história, durante os anos da Segunda Guerra, quando os nazis pilharam sistematicamente a arte dos países ocupados, sobretudo a que se encontrava na posse de judeus. Muitas obras nunca reapareceram, algumas foram devolvidas aos descendentes dos seus proprietários e outras, hoje na posse de museus em todo o mundo, continuam a ser reclamadas em tribunal.

O roubo de objectos de arte sacra - as igrejas costumam ser menos protegidas do que os museus - é outro subgénero determinante deste tipo de crime. Em Portugal, representa cerca de 65 por cento de toda a arte roubada no país. E poder-se-ia ainda acrescentar esse capítulo à parte que é o da falsificação. Ainda há menos de um ano, em Outubro de 2010, a Polícia Judiciária encontrou, numa casa de Cascais, quase centena e meia de imitações de pinturas e desenhos de Da Vinci, Monet, Matisse, Modigliani, Picasso, Chagall ou Kandinski, muitas acompanhadas de certificados igualmente forjados. A falsária era uma cidadã norueguesa, que, a ter conseguido vender as telas como genuínas, poderia ter arrecadado centenas de milhões de euros.

Mas, mesmo quando se trata de uma peça genuína, não é muito fácil vender um quadro célebre, já que os grandes coleccionadores dificilmente se arriscam a comprar uma obra que nunca poderão mostrar e cuja posse os pode levar à prisão. Essa é uma das razões que leva a que algumas das mais famosas pinturas roubadas permaneçam durante décadas no submundo do crime, servindo de moeda de troca, ou mesmo como uma espécie de garantia bancária, para transacções de droga ou de armas.

Um Rembrandt azarado

Nos filmes e romances, o cenário do roubo de uma obra de arte é, quase sempre, um museu, cujos sistemas de alarme são cuidadosamente neutralizados por ladrões sofisticados. A realidade é que a maior parte dos roubos de arte tem como vítimas proprietários privados. E alguns são bastante azarados. Rusboroug House, a propriedade, na Irlanda, onde o falecido coleccionador Sir Alfred Beit (1903-1994) mantinha a sua colecção, foi assaltada quatro vezes.

O IRA inaugurou a série em 1974, roubando 19 pinturas, incluindo obras de Goya, Vermeer e Rubens, estimadas em nove milhões de euros. Os assaltantes tentaram trocá-las pela libertação de prisioneiros da organização, mas não tiveram sucesso e acabaram por ser detidos, tendo as peças sido todas recuperadas. Em 1986, um gangue de Dublin roubou 18 obras da mesma casa, e revelou-se mais selectivo: o conjunto valia mais 30 milhões de euros. Duas telas do pintor veneziano Francesco Guardi nunca foram recuperadas, as outras apareceram em diversos locais, da Bélgica à Turquia. No assalto seguinte, em 2001, desapareceram um Gainsborough (que já tinha sido roubado em 1986) e um Belloto. Regressaram às paredes de Russborough House no dia 28 Setembro de 2002, precisamente na véspera do último assalto, no qual levaram sumiço dois Rubens, também posteriormente recuperados.

Também há quadros que parecem ter uma vocação especial para serem roubados. O retrato que Rembandt fez do artista holandês Jacob de Gheyn III já desapareceu quatro vezes ao longo do último meio século, reaparecendo em locais tão estranhos como um depósito de bagagens de uma estação ferroviária, um táxi ou mesmo uma mala acoplada à traseira de uma bicicleta.

Rembrandt, de resto, só perde para Picasso no ranking dos artistas com mais obras roubadas. Segundo a lista da Art Loss Register - uma organização empenhada na inventariação e recuperação de obras de arte desaparecidas, criada em 1991 por uma parceria de leiloeiras, seguradoras e várias instituições públicas -, só nos últimos cem anos foram roubadas 80 pinturas do mestre flamengo. O último, um esboço intitulado O Julgamento, cujo valor rondará os 200 mil euros, foi surripiado há 15 dias de um hotel da cadeia Ritz-Carlton na Califórnia, EUA. Reapareceu poucos dias depois, numa igreja das proximidades, onde a polícia o encontrou graças a uma denúncia anónima.

Mas o mais famoso Rembrandt desaparecido é provavelmente Tempestade no Mar da Galileia, a única paisagem marítima que se lhe conhece, roubado a 18 de Março de 1990 do Isabella Stewart Gardner Museum. O assalto a este museu de Boston, nos EUA, talvez seja o maior roubo de arte de todos os tempos. Entre as treze peças levadas pelos ladrões está O Concerto, de Vermeer, considerada, dentre as que se mantêm desaparecidas, a mais valiosa pintura alguma vez roubada. Nenhuma das restantes obras, incluindo três Rembrandt, um Manet e cinco desenhos de Degas, foi até hoje encontrada. No seu conjunto, valem quase 300 milhões de euros, e o museu oferece cinco milhões de dólares a quem forneça indicações que conduzam à sua recuperação.

Um novo Arsène Lupin

Mas, das 250 mil obras que a Art Loss Registry dá como desaparecidas - um responsável da organização estima que o inventário aumente ao ritmo de dez mil novas entradas por ano -, a mais mítica é provavelmente Os Juízes Justos, um dos painéis do monumental políptico da catedral belga de Ghent, iniciado por Hubert Van Eyck e terminado pelo seu irmão Jan Van Eyck. Roubado em 1934, nunca reapareceu, e ainda hoje há vários detectives amadores que continuam a seguir obsessivamente alegadas pistas há muito arrefecidas. Em Outubro de 2002, um taxista belga quase convenceu as autoridades de que, baseado nos vários pedidos de resgate que o ladrão enviara, há mais de 70 anos, ao bispo de Ghent, conseguira mesmo localizar o painel, que estaria escondido numa pequena igreja de Wetteren, nos arredores de Ghent. A polícia virou o templo do avesso, mas não encontrou nada.

A escolha da pequena cidade de Wetteren não fora casual. Alguns meses após o roubo, morria ali um corretor da bolsa, Arsène Goedertier (curiosamente homónimo do mais célebre ladrão elegante da literatura de ficção, Arsène Lupin), deixando uma mensagem na qual afirmava ser o único que sabia onde estava o painel roubado. Infelizmente, não indicava o local. Garantia apenas: "Está num lugar onde nem eu nem ninguém o poderá recuperar sem chamar a atenção". Podia tratar-se de um louco ou de um moribundo com um sentido de humor estranho, mas, quando a polícia revistou a casa de Goedertier, encontrou cópias a papel químico das 13 notas enviadas ao bispo, e ainda uma 14.ª que nunca chegara a ser enviada.

Se Goedertrier talvez não fosse um Arsène Lupin da vida real - muitos não acreditam na sua culpabilidade -, o francês Stéphane Breitwieser, nascido em 1971, é um excelente candidato. Sobrinho-neto do pintor alsaciano Robert Breitwieser, Stéphane levou a cabo o seu primeiro golpe num castelo medieval em Gruyères, na Suíça, donde tirou, auxiliado pela sua namorada Anne-Catherine Kleinklauss, uma pequena pintura de Christian Wilhelm Dietrich. Era o começo de uma bela carreira. Nos sete anos seguintes, roubou, segundo ele próprio viria a admitir em tribunal, 238 obras de arte de museus e outras instituições, nos mais diversos países da Europa. Que se saiba, nunca tentou vender nenhuma. Apreciador da arte flamenga do século XVI, o seu propósito era o de criar uma vasta colecção pessoal. Foi apanhado em 2001. Cumpriu três anos de prisão na Suíça, e mais dois em França. A sua companheira foi sentenciada a seis meses com um ano de pena suspensa. A sua mãe, Marielle Schwengel, também foi sentenciada, tendo cumprido um ano e meio de prisão efectiva. Não estava envolvida nos roubos, mas quando percebeu que, afinal, o filho não andava a comprar quadros em leilões, como este lhe fizera crer, achou mais seguro desfazer-se das obras. Algumas foram recuperadas, mas há 60 que nunca apareceram. E sabe-se que várias foram irremediavelmente destruídas, como uma tela de Brueghel, o Novo, que a mãe de Stéphane retalhou à tesourada, ou uma pintura de François Boucher, mostrando um pastor adormecido, que a senhora deitou ao lixo.

Roubos recentes

Neste início do século XXI, uma das grandes vítimas dos ladrões de arte tem sido o pintor norueguês Edvard Munch. A sua obra-prima, O Grito, foi roubada em 2004 do Museu Munch, em Oslo. Uma versão diferente do mesmo quadro - Munch pintou quatro -, já tinha sido levada em 1994 da Galeria Nacional de Oslo. Ambas foram recuperadas, tal como aconteceu com outras três pinturas de Munch roubadas em 2005, de um hotel na Noruega.

Também foi recuperado, em 2006, o célebre saleiro de ouro da autoria de Benvenuto Cellini - a única peça em ouro que garantidamente criou -, roubado três anos antes no Kunsthistorisches Museum de Viena. Mas os museus nem sempre têm essa sorte. Os quadros de Salvador Dalí, Picasso, Matisse e Monet que foram roubados, em 2006, do Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, continuam desaparecidos. Também no Brasil, o Museu de Arte de São Paulo viu serem roubados, em 2007, o Retrato de Suzanne Bloch, de Picasso, e o Lavrador de Café, de Portinari, estimados em cerca de 40 milhões de euros, mas a polícia já conseguiu reaver ambas as obras.

Como o espólio dos roubos tende a ser rapidamente dispersado, é frequente que algumas peças reapareçam e outras não. Das quatro pinturas impressionistas roubadas em Fevereiro de 2008 da Fundação E. G. Bührle, em Zurique, duas (um Van Gogh e um Monet) já foram encontradas no parque de estacionamento de um hospital psiquiátrico da mesma cidade suíça. Mas continuam desaparecidas as telas Ludovic Lepic et ses Filles, de Degas, e Jeune Garçon au Gilet Rouge, de Cézanne. Esta última, avaliada em 60 milhões de euros, já fora anteriormente roubada pelos nazis e devolvida, depois, ao seu legítimo proprietário, que a vendeu ao industrial suíço Emil Georg Bührle.

Mas aquele que é, até ao momento, o mais importante roubo de arte do século XXI ainda estava para vir. Na madrugada de 20 de Maio, cinco obras-primas da arte moderna - Le Pigeon aux Petits Pois, de Picasso; La Pastorale, de Matisse; a Nature Morte aux Chandeliers, de Fernand Léger; L"Olivier près de l"Estaque, de Georges Braque; e La Femme à l"Éventail, de Modigliani - foram roubadas do Museu de Arte Moderna de Paris. Os peritos avaliam-nas em cem milhões de euros. Todas permanecem nesse gigantesco museu invisível da arte roubada, que infelizmente não está aberto a visitantes.

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