A Rainbow Family é quase Woodstock

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O movimento hippie pode ter nascido há mais de 50 anos, mas o espírito de "paz e amor" continua bem vivo na Rainbow Family. Formada dos resquícios do movimento norte-americano, a "família" alastrou-se por todo o mundo, reunindo-se regularmente nos Encontros Arco-Íris. O Rainbow Gathering não é um festival, mas está lá perto. E, este Verão, o arco-íris regressou a Portugal - a Montalegre.

Na pequena aldeia de Salto, em Montalegre, já praticamente toda a gente reparou nos estrangeiros vestidos de forma invulgar e quase sempre descalços que, de vez em quando, descem da serra. No café O Condestável, à entrada da localidade, calcula-se o número de visitantes que, pelo menos há um mês, se têm instalado para lá do rio, no meio do arvoredo. "Pelo que dizem, eles devem ser milhares", relata uma senhora atrás do balcão, de olhos arregalados a expressar o próprio espanto perante as descrições que lhe são feitas.

"Eles" são a Rainbow Family e juntam-se pelo amor, pela paz, pela comunidade, pela natureza, pela liberdade, pela espiritualidade ou mesmo pela experiência social. Juntam-se porque são "irmãos e irmãs da mesma tribo", e é nos Rainbow Gatherings que se sentem em casa. Juntam-se regularmente, desde 1972, nos Estados Unidos e, desde o início dos anos 1980, na Europa. Há 15 anos, o arco-íris coloriu o interior português pela primeira vez. Este ano, a família volta a chamar "casa" à serra transmontana. Como sempre, de Lua Nova a Lua Nova.

"Para encontrá-los não há que enganar", garante um cliente. "Vai vê-los já ali a descer a estrada que dá para a serra. É que a esta hora, costumam vir cá abaixo comer". E assim foi.

Bem-vindos a casa

Nem um quilómetro à frente, Gianni, de tronco nu e um turbante improvisado enrolado sobre os cabelos, caminha serra acima descalço, com um saco de plástico carregado de compras em cada mão. O ruído do carro a aproximar-se fá-lo virar-se para trás para pedir boleia. Ainda tem alguns quilómetros pela sua frente até chegar ao acampamento e o calor tórrido dificulta a caminhada. É a primeira vez que Gianni vem a um encontro "destes maiores". "Já tinha ido a alguns mais pequenos, lá em Itália, e quis ver se a energia é a mesma. E é, mas maior", certifica, "há uma energia muito positiva, de liberdade e comunidade". E há muita gente, acrescenta, "mesmo muita".

Ao longo do caminho, percorrido quase sempre aos solavancos, há pedaços de cartão com arco-íris desenhados pregados às árvores a indicar a direcção a seguir. Mas o sinal mais óbvio de que se está a aproximar o local do encontro é a fila aparentemente interminável de automóveis e autocaravanas estacionados na beira da estrada. As matrículas empoeiradas espelham a variedade das proveniências dos membros da família arco-íris europeia. Há viaturas francesas, belgas, holandesas, alemãs, britânicas, espanholas, italianas, algumas portuguesas. Poucas, tendo em conta a localização.

Na margem do riacho que serpenteia junto à estrada, um casal está sentado, de pernas cruzadas, olhos fechados e mãos pousadas sobre os joelhos, em pose de meditação. Pouco depois, a mulher, de longos cabelos loiros e pele enrubescida pelo sol, levanta-se e mergulha na água. Tal como muitos outros participantes do encontro, não traz roupa nenhuma vestida, porque na família arco-íris "clothing is optional [a roupa é opcional]".

Da ponte que sobranceia o curso de água, avistam-se famílias inteiras com crianças de cabelos compridos com os pés mergulhados nas águas frescas, ou a trepar as encostas, onde, a pouca distância, pasta uma manada de vacas, com compridos chifres curvados.

"Hi!", "Hello!", "Hola!" Toda a gente se cumprimenta com um sorriso genuíno e aberto. Por vezes, há também abraços a desconhecidos que duram uma eternidade. "Welcome home! Bem-vindos a casa! Bienvenidos a casa!" está escrito com as cores do arco-íris num cartaz à entrada do acampamento.

Reencontrar a tribo

Poucos metros à frente, um coro de vozes exclama em uníssono: "Hi!". É uma espécie de comitiva de boas-vindas reunida no "centro de informação" do encontro. Aqui, vem-se para consultar o "manual" do arco-íris, escrito em várias línguas numa caligrafia infantil, e decorado com padrões e imagens coloridas de tendas tipi, corações e símbolos da paz, e fica-se para partilhar uma taça de café ou chai (chá, por vezes, misturado com especiarias ou ervas aromáticas) porque há sempre um lugar "especialmente para ti" nos tapetes dispostos à volta da fogueira.

"Aqui sentes-te em casa, reencontrada com a tua tribo", explica Asha com os olhos semicerrados. "Há pessoas aqui com muitos problemas, assim como toda a gente no mundo. Isto é um lugar de cura. Para mim é muito espiritual. Tenho este espírito sempre dentro de mim, mas nos encontros há uma energia mais forte". A rapariga de meigos olhos verde-água e argola prateada entre as narinas nasceu nos Estados Unidos, mas não assume uma nacionalidade. "Sou da Terra", declara antes de beber um gole da sua caneca de chá.

Albani acena com a cabeça coberta de cabelos num tom loiro platinado presos na nuca, e acrescenta: "Sempre que venho a um encontro, algo muda em mim. Não é só um recarregar de baterias". Reflecte durante alguns segundos e continua: "Todos os encontros são importantes, mas este talvez tenha sido mais especial para mim, porque, pela primeira vez, estou cá desde o início".

O início é o seed camp, ou acampamento semente, que começa pelo menos uma semana antes do encontro "oficial", e durante o qual são feitos todos os preparativos necessários para receber a família: constrói-se o sistema de distribuição de água, a cozinha principal e os espaços dedicados à saúde e cavam-se as primeiras latrinas. Tal como em tudo o resto nestas reuniões, não há um grupo seleccionado para fazer este trabalho. Qualquer pessoa é bem-vinda, desde que esteja disposta a pôr as mãos na massa. Ou na terra, neste caso.

E o mesmo acontece após o encerramento do encontro, com a segunda Lua Nova. Quem estiver disponível, fica para ajudar a arrumar e limpar o espaço comum, mas cada um é responsável, pelo menos, pelo próprio lixo. "Quando sais, deixa o sítio onde acampaste melhor do que quando chegaste!", pode ler-se no folheto informativo. Os Rainbow orgulham-se de não deixar qualquer vestígio da sua presença na "Mãe Terra".

"Não podes tirar fotografias!", precipita-se a exclamar, de forma algo agressiva, um dos presentes no círculo, que não ouviu ou não compreendeu quando foi pedida permissão para fotografar. Com bastante diplomacia e algumas traduções, é possível acalmar os ânimos, mas várias pessoas alertam: "Cuidado, há muita gente que não gosta de ser fotografada".

Jau percebe porquê, mas não concorda. "Não te posso proibir de olhar para mim, e a minha imagem pode ficar agarrada à tua retina. Por isso, porquê proibir-te de fotografar-me?", questiona e, em pouco tempo, convence um dos seus conterrâneos espanhóis a posar para a câmara.

Sentado na beira da Coffee Mountain, decorada com uma enorme bandeira arco-íris, Jau aponta para o círculo central, o "coração do encontro", e, no tom condescendente de quem está perto de se tornar no "grandfather, abuelo" da família, explica: "Isto é o paraíso. Nós saímos do paraíso e temos de voltar para aqui, para isto".

Um novo modelo social?

Micky Mau ("é o meu nome havaiano"), de chapéu de palha à cowboy, faz uma análise mais política do encontro. Comentando a evolução das reuniões desde a década de 1970 até à actualidade, defende que o modo de vida rainbow está, cada vez mais, pronto para se abrir ao mundo como modelo social alternativo, tal como aconteceu na manifestação de 15 de Maio (15M), em Espanha. "Aquilo que vimos no 15M é isto, é um novo modelo de sociedade. E funciona, como podemos ver aqui. Tanta gente junta e conseguimos organizar-nos, sem líderes. Muitos rainbow estavam no 15M, e muitos do 15M vieram para aqui".

"Não podes fazer mudanças positivas sem amor", acrescenta Jau, que há 30 anos, entrou neste "paraíso", quando deixou a discoteca que tinha e que lhe trazia "muito dinheiro", foi para Paris tornar-se pintor, e depois de uma limpeza espiritual, se tornou num viajante, "porque o viajante é o mensageiro da alma".

Com um olhar azul profundo fincado entre as rugas da sua pele queimada, apresenta-se como "aquele que sabe", que já ascendeu à 4.ª dimensão, "em que o cosmos te dá a solução para todos os problemas". "Há por aí muita gente que intui, mas tu tens que falar comigo, porque eu sei", explica depois de exibir o auto-retrato que fez, esculpindo um pedaço de madeira no topo da montanha: o retrato de "um hippie, mas com um capacete de xamã, sábio e bondoso", que vigia todos aqueles que passam pelo círculo central. A forma circular, explica ainda, é a disposição perfeita: "A arquitectura moderna quadrada é caótica porque não permite o fluxo da energia. E, se vives num sítio caótico, vais ter uma vida caótica".

O "xamã", como se designa, propõe-se a "meter luz nesta obscuridade". "Religião, política - é tudo contaminante e contaminado", critica. É esta, também, a "visão do arco-íris" descrita nas páginas coloridas que circulam pelos membros da família: "ser a luz na noite de ódio e ganância que rodeia o planeta".

Anarquia tribal

A conversa é interrompida pelo som da guitarra que alguém começou a tocar junto ao fogo onde se prepara o café. Uma rapariga trepa um rochedo e começa a mover os pés e as mãos ao ritmo da música, de olhos fechados e com o rosto virado em direcção ao sol. Toda a música tocada no encontro tem de ser acústica. É mais uma das regras deste grupo que diz viver numa "comunidade de anarquia tribal".

Nas tribos arco-íris, não há líderes, mas há um conjunto bastante específico de linhas orientadoras que tem de ser respeitado. São passadas de boca em boca, compiladas nas folhas de papel disponíveis nos acampamentos, e, mais recentemente, divulgadas na Internet, através de blogues, fóruns e redes sociais, onde também se disponibiliza o mini-manual dos Rainbow Gatherings, com o subtítulo "Sabedoria Aconselhada Seleccionada de Anos de Experiência e/ou Tentativa & Erro".

É que, apesar de nos encontros os aparelhos electrónicos não serem bem-vindos, durante o resto do ano é através da Internet que se mantém o contacto dentro da comunidade. E, contam os habitantes locais, mesmo durante a reunião, há muita gente que desce à aldeia para aceder à Internet. Longe vão os tempos, em que a todos os convites eram enviados pelo correio tradicional. Hoje, há formas mais fáceis, rápidas, baratas e abrangentes de reunir a família.

Na cozinha principal, conta-se até três e grita-se em conjunto: "Help in the kitchen! [Ajuda na cozinha]". Quem ouve, repete o pedido, até chegar a todos os ouvidos do acampamento. Num local onde a utilização de aparelhos electrónicos é proibida, é assim que se transmitem as mensagens que devem chegar a todos.

Há também um quadro de avisos, pendurado por cima de um mapa rústico de todo o espaço, onde se combinam, por exemplo, boleias de volta para os países de origem. O placard é também um ponto de reencontro para antigos conhecidos, e de encontro de estranhos, que se abraçam afectuosamente mesmo antes de trocarem as primeiras palavras.

Debaixo de um toldo branco apoiado em troncos de árvores, um grupo de mulheres corta melões em pedaços, em cima de uma mesa.

No chão, um outro grupo descasca legumes enquanto um dos seus elementos trauteia uma melodia. Outros ainda, desfazem os condimentos e especiarias numa placa de pedra pousada no chão. As crianças correm por entre as pernas dos adultos, com os pés cobertos de terra e os rostos pintados com desenhos coloridos.

Junto ao fogão, uma fogueira a lenha em que os tachos de tamanho industrial são pousados sobre pedras dispostas para o efeito, Eva mexe a aveia no fundo do recipiente com uma comprida colher de pau e suspira de fadiga e calor passando a mão pelos cabelos curtos, rapados nos lados. Nascida na Hungria, viveu a maior parte da vida em Israel, onde foi ao seu primeiro Rainbow Gathering. Para Portugal, veio sozinha, mas rapidamente reencontrou muitas caras familiares. "Venho pelo amor, pelas pessoas, pela liberdade", explica antes de pedir ajuda para despejar os cereais cozinhados para um recipiente e passar a colher a um homem de rastas que lhe pergunta se está cansada.

Um pouco atrás, duas vacas, que pastavam nos campos junto à cozinha, tentam invadir as tendas tipis onde está guardada a comida comunitária, mas são afugentadas a tempo.

"Têm que ver o círculo da comida", impele Eva. E como sabemos quando é? "É fácil. Há um chamamento. Vão ouvir muita gente a gritar "Food circle [círculo da comida]". Mas só uma ou duas horas depois é que as pessoas começam mesmo a vir".

Na realidade, grita-se "Food circle" duas vezes no espaço de cerca de uma hora e meia, e, algum tempo depois, vem o verdadeiro chamamento: "Food circle now [círculo da comida agora]". E, só então, é que a família se começa a dirigir lentamente para o círculo central. Muito lentamente.

"Façam silêncio para o Om"

Até então, o espaço de encontro central, delimitado por um muro de pedra, estava praticamente vazio. De um lado, um grupo de quatro ou cinco pessoas realizava a coreografia de ioga de Saudação ao Sol. Perto do centro, um homem apanhava sol nu e outros dormitavam debaixo do gigantesco espanta-espíritos suspenso entre duas árvores.

Aos poucos, vindas dos vários caminhos que vão dar ao "coração" do encontro, as pessoas começam a juntar-se para a refeição comunitária. "Não se compra nem se vende", adverte o panfleto informativo, por isso, para as "necessidades comunais", existe o chapéu mágico, que passa depois do círculo da comida para amealhar os fundos para a refeição seguinte.

"Cada um dá o que quer, e, quem não tiver nada, não tem que dar nada", explica uma participante. O que, por vezes, faz com que não haja comida suficiente para alimentar toda a gente, e leva muitos a deslocar-se até à aldeia para abastecer as suas tendas.

Por isso, mais do que para matar a fome, o círculo da comida serve para conviver. No centro, junto aos tachos pousados no chão, começa-se a formar o círculo central. Adultos, crianças, idosos, homens, mulheres, descalços, calçados, vestidos, despidos, hippies, anarquistas, tribalistas, guias espirituais, naturalistas... todos dão as mãos, formando três círculos concêntricos que se estendem até aos limites da clareira.

O compasso de espera por aqueles que ainda não se juntaram ao círculo é preenchido com uma "música rainbow", uma das músicas conhecidas de cor por aqueles que já não são novatos nestes encontros, e acompanhadas após poucas repetições por todos os outros. "I"m so glad... Every little cell in my body is happy and well [Estou tão contente... Cada pequena célula do meu corpo está feliz e bem]", repetem vezes sem conta, mexendo as ancas, ou todo o corpo e correndo para a frente e para trás arrastando o resto do círculo, que ganha assim uma forma ondulada e em constante movimento.

Batem-se palmas e alguém levanta a voz: "Por favor façam silêncio para o Om" - pedido satisfeito em poucos segundos. O "som do Universo" aumenta progressivamente, numa fusão de vozes graves e agudas que cria a vibração própria do mais conhecido e importante mantra do hinduísmo. Recuperado o silêncio, levantam-se os braços para o céu durante alguns segundos e toda a gente se senta no chão para dar início à refeição.

"Precisamos de mais servidores". E logo se organizam pequenas duplas que servem as diferentes partes dos círculos, enquanto oferecem "primeiras doses de melão", e "primeiras doses de porridge [papas de aveia]". Toda a comida, claro, é vegetariana.

Numa roda mais pequena, está o grupo da "comida crua", que prefere alimentar-se de legumes descascados. Do outro lado, há quem retome a guitarra, o didgeridoo e as flautas, e, entre os círculos, há também quem aproveite para usar o "pau-falante" e vocalizar as suas sugestões e queixas, como um homem de cabelos compridos grisalhos, que se queixa da comida do pequeno-almoço, ou uma mulher ruiva, que traz como única peça de roupa uma fita atada à volta da cabeça, e que quer organizar os festejos para a noite de Lua Cheia. E há dança, malabarismo, frisbees e hula hoops.

"Precisamos da natureza"

"Para encontrar os rainbow mais antigos, sigam o som dos tambores", recomenda Anton, o esloveno que acabou de chegar de uma viagem de três dias de carro com a sua mulher.

Penetrando na zona mais arborizada, de onde vem o ritmo enérgico e ruidoso, não encontramos os rainbow mais antigos, mas sim o acampamento francês, responsável por toda aquela animação reunida à volta de mais uma fogueira comunitária, onde um cheiro pungente a ervas queimadas se mistura com o odor do chá e do café que são oferecidos.

Mesmo com todo o espírito de comunidade inerente ao encontro, a família arco-íris tem tendência a organizar-se por "tribos", correspondentes a nacionalidades. Ninguém sabe explicar porquê. "Talvez por causa da língua", pensa Samuel, que tem alguma dificuldade em comunicar noutra língua que não o francês. Quando se trata de anúncios gerais, a comunicação é feita em inglês. Depois, há sempre quem se ocupe das traduções.

Samuel, um dos muitos que não querem ser fotografados, queixa-se da situação no seu país, onde, alega, é impossível realizar encontros destes porque "vão contra os interesses do poder instituído". A palavra democracia, em França, vem com um ponto de interrogação anexado, critica, desenhando um sinal de pontuação imaginário com o indicador.

"Aqui não há poluição psicológica", o que, na sua opinião, é muito difícil num ambiente urbano. "Precisamos da natureza", e é principalmente por causa do contacto com ela que Samuel veio. E a espiritualidade, acrescenta, está sempre presente. "Mesmo quem não vem com essa ideia da espiritualidade, é alterado de forma benéfica nesse sentido. Mesmo que involuntariamente".

Para Julian, ou Jaive Sananda, o nome místico pelo que gosta de ser conhecido, a espiritualidade "é tudo". Encostado a uma árvore, com um sorriso sossegado, conta, num português com rasgos de castelhano e francês, como, aos 14 anos, conheceu a família rainbow e, finalmente, percebeu as visões que tinha desde criança. "Depois de um Rainbow, as pessoas mudam", garante, sempre sorridente. Francês e filho de pai português, Jaive, que se quer especializar em ervas medicinais, vem pelo "ritmo de liberdade, de compartilha, de abertura ao mundo". Depois do encontro, talvez vá para a Califórnia por um mês, onde se pode receber "duzentos ou trezentos dólares por dia para cortar umas ervas", contou-lhe um amigo.

"Aqui posso ser livre, exactamente como sou, sem que a sociedade me julgue", explica Mike, que já vai no seu sexto ou sétimo encontro. "Para cada pessoa, a experiência é diferente. Eu estou aqui para dar. Estou habituado a viajar sem dinheiro, e vivo muito do que as pessoas me dão. Agora, venho aqui para dar aquilo que eu tenho. "You have to give your more to receive your less", disse Bob Marley, um homem muito sábio [excerto da música Misty Morning, que pode ser traduzido como "Tens de dar o que tens a mais para receber o que tens a menos"]. E é verdade. Na Europa, partilhar significa "primeiro eu, e depois tu". Na Ásia, partilhar é "primeiro tu, e depois eu"", disserta o alto e esguio "homem do mundo" nascido na Bélgica, com uma tatuagem do contorno estilizado de uma pomba a cobrir-lhe as costas e rastas apanhadas atrás da cabeça. "Esta é a maior organização não organizada", resume.

"Claro que há sempre algum nível de organização", contrapõe Michael, e esclarece: "há sempre os grupos que se organizam para comprar a comida, para tratar da cozinha, para cavar as latrinas. Não há é alguém que lidere". Para o alemão, residente no Algarve há duas décadas, o encontro, para além de "umas férias em comunidade, um convívio de forma muito mais livre do que aquele que é possível na sociedade em geral", é uma "experiência social" sobre a capacidade de auto-gestão de uma comunidade tão alargada. "E, claro, a parte espiritual também é muito importante", acrescenta.

Um encontro pela paz

Michael é "dos mais velhos do encontro, mas não dos rainbow mais antigos". Destes, faz parte Jan, que, nos 20 anos de membro da Família Arco-Íris, falhou "dois ou três encontros". Esteve "ali, naquele monte ao lado", há quinze anos atrás, no Rainbow Gathering de 1996, mas está mais interessado em saber o que os forasteiros pensam da reunião do que em falar das suas experiências pessoais. Repete apenas as mesmas palavras usadas por quase todos os membros da família: "Natureza, comunidade, paz".

"Há algum cepticismo relativamente ao encontro, não sei porquê. Talvez porque não gostam de ver outras pessoas nuas", supõe entre risos. Sentado numa rocha, num dos pontos mais altos do acampamento, observa os voluntários ("aqui tudo é voluntário") a levar os tachos e restantes recipientes do círculo central para a cozinha, onde já se começa a preparar a próxima refeição. "Somos hippies, mas deixamos tudo limpo. Se isto fosse um festival de música numa cidade qualquer, ficava tudo sujo no final. Eu já vi os miúdos nos festivais, estão cobertos até aos tornozelos em lixo".

"A ecologia é muito importante", explica Ben, sentado em frente a um dos muitos tipis espalhados pela floresta, num canto resguardado por lenços coloridos. Ao seu lado, uma jovem mãe sossega o seu bebé de dois meses. Pouco depois, uma outra mãe junta-se ao círculo, e pousa a sua criança no chão, onde esta começa imediatamente a brincar com a terra. Ben continua a enumerar aquilo que distingue estes encontros: "É um encontro pela paz. Comemos comida orgânica e local, vivemos nestas tendas tipi, cozinhamos com fogo, não há electricidade, não há álcool, normalmente não há drogas... Vivemos de uma forma natural. Há muita tolerância e ninguém manda. Cada um é responsável por si, e há todo o tipo de religiões e pessoas. Há miúdos punk que vivem na rua, há doutores, advogados, praticantes de reiki... Muita gente vem pela medicina alternativa".

Todos os encontros têm mesmo uma zona de "cura", onde se concentram os especialistas em diversos métodos medicinais, principalmente os chamados alternativos. Há também tendas tipi que servem de temazcal, ou sweat lodges, dedicadas a saunas ou banhos de vapor cerimoniais. E organizam-se vários workshops a pensar no bem-estar dos participantes, como no espaço dedicado ao "Ioga de Natureza", uma clareira protegida por lenços, onde um grupo de cerca de dez pessoas está sentado no chão, em meditação.

"E há muitos músicos", acrescenta Ben. Aliás, é difícil encontrar um lugar no acampamento onde não se ouça alguém a tocar guitarra, djambé, flauta ou didgeridoo. O próprio Ben é músico. "Isto é um encontro de artistas". Mas não é este estilo de vida que o atrai aos Rainbow Gatherings, até porque é assim que vive o seu dia-a-dia, na montanha. "Venho para me encontrar com amigos de todo o mundo" diz, sorrindo para o grupo à sua volta, que retribui o gesto.

Cidadãos do mundo

Kat também vem pelas pessoas. Aqui, encontra aqueles que têm "os mesmos interesses" que ela e que lhe podem "mostrar algumas coisas aqui na Europa", que ela já não conhece tão bem. Apesar de ter nascido no Reino Unido, há vários anos que Kat vive numa comuna no México, de onde regressa agora. "Depois disto, vou viver para Londres. Por isso, esta é a minha última oportunidade, o meu último momento, neste ambiente. Pode ser que aqui encontre quem me ajude a encontrar bons sítios para viver em Inglaterra".

Apesar de juntar pessoas de todas as formas e feitios, profissões e credos, este é, principalmente, um encontro de viajantes, de "pessoas do mundo", que raramente param num só lugar, mas que acabam sempre por reencontrar-se nestes momentos. "Foi um Rainbow Gathering que me inspirou a viajar", conta Thomas, enquanto beberica uma taça de chai. "Conheci muitas pessoas que eram viajantes e perguntava-lhes: "Como é que conseguem?" Tinha muitas perguntas. Mas depois percebi que as perguntas existem, porque o medo existe. Se deixar de haver medo, as perguntas deixam de existir". Hoje, conta já sete anos de viagens e uma dezena de encontros da Família Arco-Íris. "Não gosto da palavra energia", explica, por isso prefere destacar a "forma como as pessoas estão juntas nestes encontros. São muito equilibradas e positivas".

Isto não é um festival

Uma israelita, veterana na família arco-íris, chamemos-lhe Ahava, porque não quer ser identificada com o seu nome verdadeiro, adverte: "Isto não é um festival, é algo anti-sistema", e, por isso, há participantes mais antigos que não gostam que o encontro seja divulgado, "porque faz pequenas ondas" e pode atrair curiosos que não compreendem o espírito. "Mas os portugueses são muito livres e abertos a tudo isto", acrescenta. "Em Portugal, as pessoas gostam de nós. Aliás, pediram-nos para voltar", comenta Ben, que também se mostra positivamente surpreendido com o acolhimento dos habitantes locais.

José Alberto confirma que a comunidade local fica contente de receber o encontro. O dono de uma mercearia numa das aldeias próximas da serra espera, junto à sua carrinha estacionada, que alguém venha buscar as compras que encomendou. "Combinaram às seis horas, mas ainda não vieram", queixa-se, um pouco impaciente. Em 1996, o acampamento tinha sido montado num local próximo, mas "devem ter ido para outro sítio por causa das eólicas. Na altura, era diferente, porque eles iam lá abaixo buscar as compras."

Já passa da hora acordada, e é pouco provável que algum dos participantes do encontro tenha um relógio consigo. Mesmo assim, José Alberto observa, sorridente, as pessoas que vão chegando, carregadas de mochilas, tendas, e sacos de compras, e que desaparecem no arvoredo que começa no fundo da estrada. "É óptimo. Fomos lá dar uma volta e aquilo é um espectáculo".

O espaço junto ao parque de estacionamento é mesmo o mais calmo de todo o acampamento, e muitos aproveitam para descer até ao riacho e refrescar-se sob o céu dourado de final de tarde. Como Louise, que regressa agora, com o cabelo molhado e a toalha debaixo do braço, à sua bicicleta cor-de-rosa, aquela que usou para pedalar sozinha durante duas semanas e meia desde o seu país natal, França, e com a qual sofreu um acidente há uns dias, que deixou uma marca bem visível no seu olho direito.

À medida que se aproxima o final do dia, há cada vez mais pessoas a chegar à cozinha carregadas com enormes troncos. Está na hora de começar a juntar a madeira morta para a grande fogueira no círculo central.

"Queres mais tinta na cara?", pergunta uma rapariga jovem a uma criança que dança irrequieta junto à cozinha. "Sim, sim, sim!", responde esta aos pulos. Ao lado, um grupo improvisa uma melodia com guitarras e percussão e alguém começa a cantar: "I am a rainbow, I am a rainbow (Sou um arco-íris)", levando uma rapariga de tronco nu e longos cabelos castanhos entrançados a levantar-se e dançar.

"Se nunca vieste a um Rainbow Gathering", explica Ahava com um olhar afectuoso e conhecedor, "demoras pelo menos uma semana a aterrar".

rita.himmel@publico.pt

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