Ela esperou 7500 anos coberta por um manto de conchas

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Nuno Bicho

A forma como o corpo, provavelmente de uma mulher, foi sepultado revela a complexidade social das últimas populações nómadas em território português, que coexistiram com grupos que já se dedicavam à agricultura

O corpo foi colocado em cima de conchas, deitado de lado, com as pernas dobradas. A mão direita ficou a repousar nos joelhos, enquanto o braço esquerdo foi encolhido e a mão colocada junto ao peito. A cabeça terá sido apoiada num objecto que se degradou, por isso o pescoço descaiu para trás. A tapar o corpo, um manto também de conchas. Assim ficou durante 7500 anos, até que este Verão o seu esqueleto foi descoberto numa escavação arqueológica perto de Muge, no concelho de Salvaterra de Magos.

A equipa do arqueólogo Nuno Bicho, da Universidade do Algarve, tem escavado os famosos concheiros de Muge, acumulações de conchas e de outros restos da alimentação deixados pelos últimos caçadores-recolectores em território português. Há cerca de oito mil anos, aquelas populações ainda não tinham incluído a agricultura no seu modo de vida, ao contrário de outras de regiões vizinhas. Tinham um estilo de vida nómada: caçavam e, da ribeira de Muge, apanhavam peixe e marisco.

Foi no topo de um desses montes de conchas, conhecido por Cabeço da Amoreira, com cerca de três metros de altura e metade da área de um campo de futebol, que em meados de Julho apareceu o esqueleto humano.

Inicialmente, o Cabeço da Amoreira foi ocupado por caçadores-recolectores há cerca de oito mil anos, que fizeram o acampamento num lado e o cemitério noutro. A certa altura, abandonaram o local e quando regressaram, 200 a 300 anos depois, começaram a aglomerar as conchas por cima do cemitério. Abandonaram de novo o local, voltando só esporadicamente para depositar os mortos no topo da concentração de conchas, ou pelo menos aquele que agora se encontrou.

"Apesar de não termos uma datação absoluta, o esqueleto terá 7500 anos. Temos datações para a envolvente onde foi encontrado", refere Nuno Bicho. "Provavelmente, é de uma mulher jovem, entre os 15 e os 20 anos de idade. Mas é tudo preliminar, os estudos ainda não estão feitos."

Pedras sobre a sepultura

O Cabeço da Amoreira é dos primeiros concheiros descobertos em Portugal, em 1863, por Carlos Ribeiro, pioneiro da Geologia portuguesa, que logo os relacionou com sítios idênticos na Dinamarca. Desde então, foi escavado na década de 1930, por Mendes Corrêa, da Universidade do Porto, e na de 1960 pelo geólogo Octávio da Veiga Ferreira, dos Serviços Geológicos de Portugal, e pelo historiador francês Jean Roche.

Apesar de terem sido encontrados mais de cem esqueletos humanos no Cabeço da Amoreira (e mais de 300 nos vários concheiros de Muge), muito tinha ficado por escavar. Em 2008, a equipa de Nuno Bicho regressou ao local e desde aí, todos os anos, tem feito campanhas de escavação. Este ano foi brindada com este esqueleto envolto por um manto de conchas.

Só que das escavações anteriores pouca informação se registou sobre o próprio enterramento, por isso Nuno Bicho considera que as campanhas iniciadas em 2008 no Cabeço da Amoreira, com registos mais pormenorizados, trazem uma nova visão sobre aquelas populações de Homo sapiens sapiens. "As novas técnicas de escavação permitiram reconstruir, ainda que preliminarmente, o modo como aquele indivíduo foi sepultado", realça. "Em todos os outros concheiros [de Muge], escavados ao longo de 150 anos, se encontraram muitos esqueletos, mas nenhum foi documentado desta forma. Além disso, nos outros concheiros há várias dezenas de anos que não se encontram esqueletos."

Houve grande cuidado e ritualidade no enterramento, para o qual foi aberta uma cova pouco profunda com o tamanho do corpo. Quanto às conchas, eram de lambujinha no fundo da cova, tal como as que cobriam a cabeça e o tronco; enquanto as das pernas e cintura eram de berbigão. Junto ao corpo, como oferenda, também foram depositados ossos de veado e parte do crânio de um cão doméstico. "Após este enterramento, e provavelmente outros que não encontrámos, cobriram o sítio com uma camada de pedras, de maneira a proteger esse local de utilização funerária", conta Nuno Bicho.

Organizados em clãs

"Este tipo de enterramentos dá uma nova perspectiva do nível de complexidade social daquelas populações. Sendo essencialmente igualitárias, tinham com toda a certeza uma dimensão de separação e hierarquização da sua sociedade com base na idade e no género", realça o arqueólogo. "A sua sociedade estava provavelmente organizada em linhagens, ou clãs, que praticavam a exogamia."

Levado para a Universidade de Coimbra, o esqueleto vai aí ser submetido a estudos de Antropologia Física. Além de se verificar o sexo, a antropóloga Cláudia Umbelino irá determinar a sua idade aproximada e procurar nos ossos marcas de patologias.

Outros estudos incluem a datação por radiocarbono e a obtenção de ADN, que será comparado com amostras já retiradas de vários esqueletos dos concheiros de Muge.

"Queremos saber qual era a ligação genética entre várias pessoas e grupos existentes em Muge naquele período", diz Nuno Bicho. Tudo para se descobrir quem era, afinal, a pessoa da sepultura de conchas.

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