Memória algarvia...

"As cigarras cantarão o silêncio de bronze"

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto.

Os azuis intensos e límpidos, os vermelhos da terra, os amarelos e os verdes das árvores - chamam-nos à vida. Estamos entre Barlavento e Sotavento - rigorosamente no centro algarvio, de leste para oeste e de norte para sul, onde a serra abraça o Barrocal, descendo serenamente até ao mar, à longa frente de falésia que define a transição. Os Verões da minha infância foram passados no Algarve. E tenho a lembrança antiga dos preparativos, do alvoroço da expectativa, do gozo do reencontro. O meu avô vinha-nos buscar. A minha mãe providenciava tudo. O momento era único: a casa, as árvores, as flores, os animais, as coisas e sobretudo as pessoas. A lembrança juntava-se à surpresa. E a aventura começava na Estação de Sul e Sueste até ao Barreiro. O encontro com o Algarve exigia o caminho-de-ferro, e depois passou a obrigar, de automóvel, a longuíssima serra do Caldeirão... O comboio deixava-nos em Albufeira. E chegávamos à terra da promissão. Ficavam para trás a cidade, as paredes limitadoras da liberdade, começava o ar livre, a imaginação, a autonomia, tudo. O primeiro almoço aguardava-nos - canja de galinha e arroz de cabidela, e antegozávamos essa oportunidade, que a minha avó especialmente caprichava. Era a melhor cabidela do mundo. À distância, a saudade traz-nos os cheiros, os sabores, os sentimentos, os sorrisos especialmente gostosos e belos. Os sabores eram inesquecíveis, os figos secos, os doces de amêndoa, açúcar e ovos, os Dom Rodrigo, os morgados e as peças de escultura da doçaria de massa de amêndoa - frutas e peixes recheados de ovos-moles... O poeta fala da "raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira". Tínhamos de aproveitar bem a luz do dia. Os dias de Verão eram longos. Quando a noite caía, ou havia o luar de Agosto e da desfolhada, ou vinha o breu e os candeeiros de petróleo. E um dia, no final dos anos 50, veio a electricidade e a televisão. Mas o essencial era a paisagem diurna e luminosa sobre a extensão de mar, num panorama que vai da Ria Formosa até Albufeira. Entre hortas e pomares e árvores de sequeiro, havia um mundo - do silêncio às cigarras, passando pelo rumorejar do regadio. Havia figos durante todo o Verão, dos temporãos aos serôdios. A minha avó fazia questão de os ter das diferentes qualidades, para que nunca faltassem em braçados e cestas. As amêndoas eram deliciosas e quanto às alfarrobas não suspeitávamos das suas mil utilizações. De Loulé, o meu avô falava-nos com entusiasmo do buliçoso comércio. António Aleixo e os seus poemas repentistas eram recordados. E quantas conversas amenas com o dr. Joaquim Magalhães... Ao folhear a Monografia do Concelho de Loulé, de Ataíde de Oliveira, percebíamos a riqueza de um concelho marcado pela ligação à serra através das vias dos almocreves e das memórias do Remexido. As mouras encantadas, o romanceiro, as lendas diziam-nos da multiplicidade de influências - e, quando lemos O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge, entendemos os muitos mistérios e a enorme capacidade de efabulação desta gente fantástica. Maria Aliete Galhoz e José Ruivinho Brasão têm sido incansáveis na revelação desses mistérios. E Orlando Ribeiro percebeu bem o fenómeno natural: "O algarvio leva consigo o jeito de acomodar-se, o ar aberto, acolhedor, o gosto de rir e de falar, com a vivacidade que lhe deu fama ele é, na posição como no temperamento, o mais meridional dos portugueses". E o ser vivaz contrasta com a melancolia, ditada pela estranheza dos dias de vento de levante. Porém, sente-se o folguedo algarvio, o colorido, a diversidade, entre a serra e o mar, e a luminosidade sem igual do Mediterrâneo. Teixeira Gomes é lembrado: "Que lindíssima terra esta, exclamava eu, ainda na passagem da ponte (...) O céu alaranjado empanava-se de escumilhas doiradas com franjas de púrpura, e pelo cetim do rio corriam, leves, para a barra, as velas cor de açafrão, cruzando outras, brancas de cal e curvas, que cortavam o ar com o movimento sereno de asas livres no espaço". Quando se fala de património cultural (material e imaterial) e de criação cultural na novíssima Convenção de Faro do Conselho da Europa, agora entrada em vigor, tudo isto sentimos muito bem (*).

(*) A nova Convenção de Faro entrou em vigor no dia 1 de Junho de 2011. Está publicada em Património, Herança e Memória, Gradiva, 2ª ed., 2011.

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