Lagostas e santolas numa praia a desaparecer

A praia de Vieira de Leiria está a apostar no arroz de marisco para atrair turistas, mas os donos dos restaurantes preocupam-se por ver a areia a diminuir. Assim, nem a lagosta de Cuba lhes pode valer.

Ainda nem há cinco minutos que Alfredo Ramusga nos está a dizer como é fantástico o arroz de marisco da praia de Vieira de Leiria, que serve há trinta anos no seu Restaurante Marisqueira Lismar, quando o lamento surge: "Há um flagelo na nossa praia: está a desaparecer."

Olhámos para trás de nós e, visto dali, da esplanada do restaurante hoje fechado (apanhámos Alfredo Ramusga quando ele estava a transportar mercearias do carro para o estabelecimento), de facto o areal parece bastante pequeno. "Prometeram-nos um molhe há anos, e nada foi feito. A praia está a diminuir. Aumentaram o molhe na Figueira da Foz e a nós nunca mais nos põem um para termos uma praia digna."

Assim não há arroz de marisco que lhes valha, por mais saboroso que seja. Ramusga garante que é (nós iremos provar mais logo). "Fazemos o arroz à moda de Vieira. Já comi arroz de marisco em todo o país e nada tem a ver com o nosso. O nosso é fora-de-série. Tem lagosta, lagostim, todas as doçarias do marisco, é por isso que não é barato."

Agora que o prato chegou aos 21 finalistas do concurso das maravilhas da gastronomia portuguesa, os restaurantes da praia esforçam-se por o divulgar e apresentar no seu melhor. Vieira de Leiria percorre-se bem a pé, e os restaurantes ficam todos concentrados aqui neste pedaço da marginal onde estamos a ouvir Alfredo Ramusga dizer que "há um segredo, claro, que não podemos divulgar" na forma como se prepara este arroz. Um segredo ajuda sempre, já se sabe.

Mas entretanto Ramusga já nos fez levantar e atravessar a estrada para irmos conhecer a Dona Primavera, que está a olhar para o mar com um ar desanimado. É dela o apoio de praia de madeira à nossa frente e, apesar dos seus 65 anos, a Dona Primavera está decidida a não deixar que o mar lhe derrube o sustento. A casinha de madeira está assente num monte de areia junto ao muro da marginal, mas não é sequer possível andar à volta dela porque o mar comeu tudo em redor e só ela se aguenta ainda (visitámo-la no final de Junho, antes de a época balnear começar a sério).

A nós parece-nos inglório, mas a Dona Primavera não podia ficar simplesmente ali de braços caídos e foi pôr à frente da casa uma série de estacas de madeira que o mar derrubará sem hesitação. "Não dou cinco anos para que a praia da Vieira vá à vida", diz ela, que herdou a barraquinha dos pais e que se lamenta de ter de pagar a dois nadadores-salvadores e mesmo assim só poder abrir o negócio mais tarde do que é costume. "Nunca vi um Verão assim."

Também ela diz que a culpa é do molhe da Figueira. Todos os molhes a norte da Vieira vão retendo as areias, e para sul as praias começam a diminuir. A Câmara da Marinha Grande ainda mandou um tractor repor areia na praia, mas não é suficiente. "O número de turistas tem estado a diminuir. As pessoas não vêm para estar em casa. Vêm para estender uma toalhinha no areal..."

"A minha praia, vejo-a cada dia mais curta", confirma José Barrote, do restaurante O Cantinho do Mar. "Estarem a pôr areia é como pôr açúcar num copo de água. Alguém tem mais poder que o mar?"

Já não será a praia do final do século XIX, como Eça de Queirós descreve em O Crime do Padre Amaro: "[...] as barracas de lona alinhavam-se ao comprido da praia; as senhoras, sentadas em cadeirinhas de pau, de sombrinhas abertas, olhavam o mar, palrando; os homens, de sapatos brancos estendidos em esteiras, chupavam o cigarro, riscavam emblemas na areia; enquanto o poeta Carlos Alcoforado, muito fatal, muito olhado, passeava só, soturno, junto da vaga, seguido do seu terra-nova". Mas também não será assim tão diferente: "Depois, de tarde, eram os passeios à beira-mar, a apanhar conchinhas; o recolher das redes, onde a sardinha toda viva ferve aos milheiros, luzidia sobre a areia molhada".

Leilão na lota

Se continuarmos sempre em frente pela marginal vemos ao fundo um ajuntamento. É a lota, ao final da tarde. Na praia os pescadores estiveram a lançar as redes e o peixe já está a ser vendido ali mesmo ao lado. Quem o vê chegar a saltar na rede, passados minutos já o está a levar para casa num saquinho de plástico. Há sardinhas, carapaus, cavalas. Os homens vão separando o peixe mais miúdo, e os clientes acotovelam-se para ver o que há e para participar no leilão, que começa por um preço alto e vai descendo até alguém dizer que quer comprar.

Não há aqui nem santolas, nem lagostins, nem sapateira, nem sequer camarões, o marisco que faz a fama do arroz. Os restaurantes que o querem servir como deve ser têm que comprar importado - lagosta de Cuba, camarão de Madagáscar. Tudo com IVA a 23 por cento. "As pessoas pagam um bocadinho mais, mas o tacho vai bem apetrechado de marisco", garante José Barrote, um verdadeiro entusiasta do arroz de marisco. "Já comi em muitos sítios, Peniche, Algarve, Nazaré, Aveiro, e nada tem a ver com o nosso, nada a ver com o nosso", repete. Não fala em segredos. Diz que tem tudo a ver com a qualidade do marisco e do arroz (que tem que ser agulha) e sobretudo com "o prazer de fazer o arroz", directamente no tacho de barro, que "quanto mais velho for melhor faz".

Ninguém sabe contar exactamente como começou a tradição, mas não terá grande história - um restaurante da praia que teve a ideia, e os outros, vendo que dava, passaram a fazer também. Em casa das pessoas será mais difícil, dizem as peixeiras na lota. Às vezes fazem, mas sem o marisco que espreita dos tachos a fumegar nos restaurantes. E, mesmo assim, alguns, como Cláudio Cabral do Restaurante Cabral, explicam que, por causa do preço, o arroz de tamboril sai melhor - uma opinião partilhada por Márcio, do Pérola do Mar, mesmo em frente à lota, que, em tempos de crise, acredita na aposta em pratos mais económicos.

Não é o que se passa na cozinha da Mariqueira Flor do Liz, onde a Dona Albertina se atarefa à volta do tacho onde o nosso arroz está a cozinhar. Tem muita experiência, mas é mais difícil com o fotógrafo do P2 à volta dela, com a lente quase dentro da comida. Cá fora, na esplanada, três estrangeiros pedem bifinhos com cogumelos e uma magnífica espetada de peixe, mas a açorda que acompanha volta para trás e é substituída por batatas fritas.

O nosso arroz chega, a fumegar. O fotógrafo pega no tacho e leva-o para o muro, junto ao mar. Da janela do primeiro andar do restaurante, Dona Albertina indigna-se: "Há-de ficar muito bom, sim senhor, tudo frio!" Mas o fotógrafo não desiste e procura outro ângulo. Da sua janela, Dona Albertina não acredita no que está a ver. Então em vez de comerem o arroz... Encolhe os ombros, abana a cabeça, e faz mais uma tentativa para salvar o cozinhado: "Olhe que daqui a bocado a lagosta salta para a água e vai parar ao Fundão..." Quando regressa à mesa, o arroz ainda fumega. Dona Albertina não tinha com que se preocupar.

Amanhã: Pudim Abade de Priscos

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