O tradutor seduzido

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Traduzir os contos de Maupas-sant foi, para Pedro Tamen, "um grato acontecimento, um acto de diversão feitode forma apaixonada" RUI GAUDÊNCIO

"Contos Escolhidos", de Maupassant, é uma oportunidade para rever ideias feitas sobre um escritor que a história da literatura arrumou depressa e com leviandade. Pedro Tamen deixou-se seduzir e descobriu, traduzindo, uma escrita onde nem todos os dias são uma festa. Rui Lagartinho

A década de 80 do século XIX em Paris fervilha de jornais e revistas. O aparente triunfo e desafogo de uma sociedade organizada em torno da bolsa - que marca os valores das matérias-primas extraídas às colónias e dita a sorte das grandes instituições financeiras, cujas sedes salpicam as grandes avenidas com a sua ostensiva arquitectura do dinheiro - define estilos.

A imprensa segue a marcha ébria do progresso. Mas para isso eram necessários textos que deleitassem os leitores à mesa dos cafés. Textos rápidos, para dobrar no bolso com o jornal. Com um ritmo de trabalho alucinante, Guy de Maupassant consegue desdobrar-se a escrever para o "Le Figaro" ou para o "Gaulois", entre outros, crónicas, romances em folhetim e sobretudo contos. São mais de 300 e, juntos, contam-nos, através de pequenas anedotas quotidianas, a vida de toda esta gente. Numa prosa leve e borbulhante como o melhor champanhe.

Num ensaio escrito em 1888, Henry James já aconselhava cautela nos juízos apressados sobre Maupassant, assegurando que não conhecia ninguém que acertasse no alvo com tão poucos tiros. Ninguém parece ter prestado muita atenção.

"O Maupassant teve um destino que o diminui. Foi arrumado de forma apressada na categoria dos autores fáceis, superficiais e de puro entretenimento. É verdade que ele foi tudo isso, mas é mais do que tudo isso", diz o poeta e tradutor Pedro Tamen. Quem o releu já neste século, confortável na distância que o tempo permite, talvez saiba do que fala. Das três centenas de contos de Maupassant, Pedro Tamen escolheu 42 para com eles fazer uma antologia que a Dom Quixote agora publica, "Contos Escolhidos". Uma empresa difícil mas gratificante: "Viciei-me nestes contos. O que me atraiu foi o carácter contraditório entre uma aparente facilidade e uma profundidade escondida."

Metade destes textos agrupa-se sob o chapéu dos contos mundanos, amorosos, eróticos e galantes, e aí "a sociedade que aparece é a das mulheres fúteis, do gosto pela vida mundana, do amor incondicional pelas jóias." Mas, se olharmos com atenção, "no mesmo conto há vários tons: o amor não é só uma aventura galante e passageira, há descrições em que o amor é dedicação, doação, fidelidade", nota Tamen. É o caso do conto que fecha esta antologia. Nele, Alexandre suporta durante 30 anos o oficial de quem é ordenança por amor à sua mulher, que vai empurrando já velha numa cadeira de rodas. "É uma prosa cheia de acontecimentos atraentes", sublinha o poeta.

Em "Os alfinetes", duas damas galantes, amantes do mesmo homem, vão deixando, cravados no reposteiro da casa que visitam em dias alternados, pequenos e subtis alfinetes de cabelo. Um amigo do enganado dá-lhe uma ideia: "Meu grande parvo, a ideia de fazer com que elas espetem os alfinetes ao mesmo tempo". Esta frase, em português, foi uma das mais difíceis de escrever em todo este trabalho: "O Flaubert que Maupassant tanto respeitou e venerou, e que eu traduzi, tem uma prosa seca e económica. E uma tradução pode, se não nos acautelarmos, resultar chocha e insuportável. Aqui há uma riqueza de registos maior. A dificuldade muitas vezes é encontrar o tom certo." Com esta antologia, ficamos também a saber que o homem que escreveu na cidade sabia o que era vida no campo. É entre aldeias perdidas que se encontram as melhores descrições. De uma gente, rude, mesquinha, de vistas curtas. Diz o tradutor: "Maupassant conhecia bem a vida no campo: descreve-a com um detalhe e uma verdade impressionantes. A maneira pícara como descreve as casas de passe da província, reduzindo-as à pequenez de um mundo onde todos se conhecem, é bem o retrato dessa minúscula sociedade francesa rural."

É o ambiente descrito em "A casa Tellier", que abre este volume. Uma Madame de uma casa de passe, uma esmerada selecção das suas funcionárias e a sociedade civil de uma pequena aldeia juntam-se para celebrar uma primeira comunhão. Mais para a frente, em "Bola de sebo", o campo será para onde meio mundo foge dos avanços prussianos, só não morrendo à fome por causa de uma previdente camponesa que não se esquece do farnel. Será também no campo que velhos amantes recordarão tempos felizes, ou que uma jovem descobrirá o amor ilícito atrás de uns frondosos arbustos. Tudo numa linguagem surpreendentemente explícita, que um leitor de hoje não suporia ali: "A liberdade de costumes ajudou a fazer a fama de Maupassant. Com motivos de atracção menos confessáveis."

Há uma volúpia que atravessa todo este universo. Aqui são muitas vezes as jóias e a sua metáfora que aglutinam sedução e poder. No conto "As jóias", o senhor Lantin julga que a mulher compra pechisbeque e é o contrário. Em "O colar", Mathilde leva uma vida a pagar um colar que afinal é falso. Neste conto, à boleia dos atributos naturais das mulheres, define-se de passagem um certo tipo de ascensor social: "A finura natural, o instinto de elegância, a agilidade de espírito são a sua única hierarquia e tornam raparigas do povo iguais às damas da mais alta sociedade". Pedro Tamen encontra "o desejo de aspiração social" em muitos destes contos: "Maupassant dá fé dessa sociedade em mudança rápida. De forma acutilante. Com reflexos na prosa, cheia de efeitos-surpresa. De golpes e contragolpes. Como os tempos que se viviam"

Traduzir estes contos foi, para o poeta, "um grato acontecimento, um acto de diversão feito de forma apaixonada." Que talvez o embale na aventura que sonha para os próximos tempos: a tradução das memórias de Giacomo Casanova.

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