Govind já pode vestir camisas

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Swara, de 12 anos, é filha de Govind Shirodkar e tem mais duas irmãs e um irmão

Cerca de 12 por cento da população de Goa é tribal, e 77 por cento da população tribal é gaudde. Dizem-se os verdadeiros goeses, mas não fazem parte das estatísticas que colocam o mais pequeno estado na tabela dos mais ricos da Índia

Percorre-se a estrada esburacada. Casas de um lado e do outro, entre mangueirais, palmeiras e jaqueiras. Crianças jogam futebol num descampado enlameado, que se atravessa para chegar a casa dos Shirodkar, na aldeia de Chimbel, a seis quilómetros de Panjim: avô, tios e primos, entre modestas paredes cor-de-laranja, lilás, verdes, azuis.

O tecto da sala de Govind está coberto de fitas com papéis recortados, como se hoje fosse dia de festa. Crianças e adultos andam descalços, pés na pedra. De um momento para o outro, a electricidade vai-se. O que há a dizer é à luz de lamparinas, numa sala com pouco mais do que três ou quatro cadeiras e uma mesinha - e um poster com a estrela de Bollywood Shahrukh Khan quase em tamanho natural.

Govind Shirodkar, de 48 anos, é um dos líderes da comunidade tribal gaudde, considerada a autóctone de Goa - ou seja, e segundo os seus números, entre 25 e 30 por cento da população -, embora os dados oficiais apontem para 12 por cento. Porque, para além dos gauddes, como ele, há ainda os kunbis e os velips. "Todas as tribos mantêm algum isolamento, comunicam muito pouco com o exterior." Ninguém diria, porque foi com muita rapidez que Govind Shirodkar lançou um convite para jantar. A mulher, Smita, fritou peixe e camarões, cozeu arroz, mandou comprar duas gasosas e colocou tudo numa mesinha encostada à parede, só para os convidados. Os filhos recebiam ordens para nem se aproximarem (três meninas, Aastha, de 14, Swara, de 12, e Teertha, de 8, e um rapaz com 3, Swaraj).

Govind trabalha na função pública, no departamento de folclore goês. É como gaudde que fala. "As tribos estão fora do mainstream. Se não lhes derem lugares especiais na educação, emprego ou indústria, não conseguirão nunca desenvolver-se", explica. "Se não têm privilégios, em termos de quotas, nunca conseguirão competir com outros na sociedade." Por isso é que, para os gauddes, como ele (77 por cento da população tribal), terem sido classificados como tribo foi uma vitória.

Como os kunbis e os velips, os gauddes tornaram-se tribos listadas em 2003. "Desde 1992 que lutei por isso". (As crianças interrompem a cada segundo; as meninas tentam pôr Swaraj na ordem). Era uma luta difícil até porque "não havia pessoas com instrução". Hoje, a sua filha Teertha é a preferida da professora. "É muito aplicada", diz um orgulhoso Govind, quando ela aparece para mostrar os livros que enchem a mochila da escola.

"A Constituição indiana remete para a identificação de "tribos" como categoria administrativa, ou seja, um grupo tem de dizer que é tribal e ser reconhecido como tal", explica a antropóloga Cláudia Pereira, investigadora do ISCTE e que fez a tese de doutoramento sobre os gauddes. "Depois de se ser reconhecido como "tribo", o grupo pode usufruir de benefícios como quotas na função pública, no Governo e nas instituições de ensino. Esta foi a forma encontrada para grupos que não tinham voz na sociedade poderem ter mobilidade social e económica."

Goa é o estado com o PIB mais elevado da Índia (2,5 vezes a média nacional; entre 2009 e 2010, o crescimento subiu de 9,46 para 13,03 por cento). Mas as populações tribais estão entre os principais excluídos do boom e dos altos índices de literacia. Govind salienta que a dívida para com elas é grande. "A comunidade que fez esta Goa existir, em todas as esferas, que criou as várias localidades, é a gaudde. Antes disso, Goa era uma terra despovoada."

As populações tribais não têm casta, diz, nem seguem a religião hindu. "Temos os nossos cultos. A primeira religião da Índia foi a nossa, com uma diferença de muitos anos. Estas tribos já cá estão há mais de dez mil anos." E enumera as diferenças que os separam do hinduísmo: "Adoramos o espírito, o espírito supranatural que nos protege. Não acreditamos na reencarnação. Enterramos os nossos corpos, não os cremamos. Acreditamos que a serpente é o nosso Deus... A nossa cultura é mais rica."

O pedido

Mas nada é assim tão linear na Índia. Há gauddes hindus e há gauddes católicos. "Para distinguir uns e outros, os hindus são identificados nalgumas aldeias, pelas outras castas e por eles próprios, como konkanne gaudde (o termo konkanne remete para habitante do Concão, Konkan, e, consequentemente, para hindu e pré-português), por contraste com os gauddes chamadoscristaon gaudde, um indicador cristão com origem no colonialismo português", explica a antropóloga.

"Há gauddes neo-hindus porque muitos líderes hindus acharam que os gauddes [católicos] tinham de ser purificados", avança por sua vez Govind Shirodkar. "Mas os swamis [responsáveis religiosos] não lhes deram todo o estatuto hindu." Cláudia Pereira adianta que "o hinduísmo não concebe a conversão porque acha que cada pessoa nasce com a religião que deve seguir na sua vida... mas tem a cerimónia de purificação para tornar hindus as pessoas que o desejarem".

A complexidade não pára aqui. "Alguns gauddes católicos purificaram-se no hinduísmo porque, por um lado, estavam revoltados com a Igreja católica por não se sentirem acolhidos por serem uma casta com pouco estatuto", avança a antropóloga. "E, por outro lado, foram seduzidos na mesma altura (entre 1928 e 1932) por movimentos nacionalistas religiosos que tentaram tornar a Índia mais "hindu", tornando hindus pessoas que anteriormente pertenciam a outras religiões."

A verdade, para Govind, é que "tudo isto dividiu muito a nossa comunidade. Não ficaram nem hindus nem cristãos". Não foi o caso dele. "A minha família nunca foi tocada. Somos gauddes puros. Quando preciso de dizer a minha religião, digo tribal."

Fala-se de casamento e de como nem tudo diverge assim tanto do resto da Índia: há casamentos arranjados (há umas décadas, as alianças até se faziam com crianças, "agora já não"). "Eu? Eu fui pedido em casamento!" Smita, de pé, ao lado do marido, sorri desta "modernice" do casal. Este não é só um "casamento de amor", é também um "casamento misto", porque ela é hindu. "O meu pai é brâmane", ou seja, da casta mais alta, dedicada aos serviços religiosos - o que não significa que seja de uma classe económica favorecida. "Aceitaram a minha decisão, claro. Estamos no século XXI.".

Agora é ele: "Ela não me perguntou "o que és tu?" Não sabia que eu era tribal".

Ela: "Ele era muito simpático e o meu cunhado conhecia-o e disse-me que era uma boa pessoa". Foi o bastante. Casaram-se. Ela novamente: "Continuo a ser hindu, não sou tribal. Os meus filhos é que são tribais." Mas nesta casa os hábitos são todos iguais para uns e outros.

Apoios não chegam

Ouve-se a televisão da sala ao lado. Swaraj anda de um lado para o outro. Todos lhe chamam "Babu" (rapaz-bebé, em concanim, a língua-mãe de Goa) e Babu é uma palavra que se ouve a toda a hora. Diz o pai: "É o miúdo mais feliz do mundo". E acreditamos.

Govind tem quatro irmãos e duas irmãs, seis sobrinhos, para além dos seus próprios filhos e o pai. Todos a viver aqui. A família mostra a casa, modesta, mas espaçosa, não fosse ter de dar tecto a tanta gente.

Anda-se de umas salas para as outras, quase sem mobília e com pouca luz. Um rapaz estendido numa cama a tentar dormir apesar do calor (o barulho nunca parece incomodar o sono de um indiano); noutra sala, uma mesa com um jogo de tabuleiro; no quarto ao lado, um monte de pneus. "É o quarto do meu avô", diz Aastha.

É ela quem agora explica que aqui, nesta cozinha colectiva (e escura, de paredes em pedra), se preparam em conjunto as refeições das festas mais importantes. O fogo está no chão e cozinha-se assim, acocorado junto à panela, como está agora a sua tia.

"Quando as mulheres estão menstruadas, não podem entrar aqui", diz Smita. Sorri sempre que fala.

Há muitas ocasiões em que todos se juntam para comer em família. "Celebramos o Natal. Temos uma mente muito aberta. As crianças fazem uma árvore, um presépio." Ao lado do fogo de chão, um pequeno compartimento onde se toma banho, sem água canalizada. Babu sairá dali encharcado não tarda nada.

Regressa-se à sala de Govind, a única que continua sem electricidade. O que mudou com a classificação dos gauddes como tribo? "O pai agora veste camisas", responde muito rapidamente Swara, de sorriso igual ao da mãe e tão bonita como ela. Govind explica: "Quando veio o comité do Governo para estudar as tribos de Goa, decidi que não podia estar de camisa. Passei a andar de tronco nu e casti", um pano enrolado à cintura que passa entre as pernas. Agora, que tudo já foi decidido, pôde voltar ao seu traje habitual, ou seja, camisa, já se sabe, e calças compridas.

De qualquer forma, as mudanças mais importantes não são essas. E muitas ainda estão para vir. Govind queixa-se de que os fundos destinados à comunidade tribal não são aplicados, nem tão-pouco todas as reservas atribuídas. "O Governo não gasta o montante que deveria gastar. Cem milhões de rupias [mais de um milhão e meio de euros] deveriam ir para as populações tribais de Goa todos os anos. Mas nem 20 milhões nós recebemos."

Essas verbas destinam-se a melhorar a habitação, as escolas, a levar o saneamento básico a casas como a da família Shirodkar. Mas "passaram-se sete anos desde a classificação e não há muito desenvolvimento para os gauddes", lamenta. "Alguns políticos acham que, se tivermos acesso a trabalho e a educação, ficaremos fora de controlo."

Luta que fica de herança

Quando os portugueses iniciaram o processo de conversões forçadas, no século XVI (o início da adminsitração portuguesa foi em 1510), não acabaram com o sistema de castas e preservaram as estruturas sociais que já existiam em Goa. "Parte dos gauddes foi convertida, mas foram dos que mais continuaram a preservar as suas raízes, continuando em segredo com os rituais que praticavam antes", aponta a antropóloga.

Os gauddes poderão até autodenominarem-se como "tribo", mas "caracterizam-se no quotidiano como uma casta", adianta. "Ser indiano implica pertencer a uma casta. Daí decorre a dificuldade dos gauddes em aceitar a sua representação de "tribais" pelas restantes castas e, ao mesmo tempo, a necessidade de pertença a uma casta."

A listagem das tribos (scheduled tribes) em Goa tem oito anos, mas no resto do país fez-se sobretudo depois da independência (1947). Antes, e juntamente com as castas mais baixas dos dálitas (antigos intocáveis, agora também chamadas de scheduled castes), eram classificadas pelos ingleses como depressed classes. Juntas representam 24 por cento da população indiana - com tendência a aumentar. Se juntarmos os other backward classes, grupos reconhecidos com carências económicas e sociais (ao qual os gauddes pertenciam antes de passarem a scheduled tribe, com mais regalias), os três grupos representam 48% dos 1,2 milhões de habitantes da Índia.

A Constituição garante-lhes o direito a lugares reservados, mas, segundo as contas de Govind Shirodkar, em Goa os benefícios estão a chegar a apenas 30 por cento dos que precisam deles. E faltam ainda representantes tribais no Governo local. Por isso, não prevê que as quotas possam terminar tão depressa. A sua luta terá de continuar. Talvez até a deixe de herança aos filhos.

Teertha passa pela sala a correr. Está outra vez contente porque a luz regressou e já pode voltar para os seus desenhos animados. Não durante muito tempo. Amanhã será dia de escola.

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