1/4 Vigor

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No início dos anos 1980, Miguel Esteves Cardoso (M.E.C.) tinha uma coluna no jornal Expresso, A Causa das Coisas, onde falava das causas e das coisas que faziam do nosso país Portugal. Esta era uma delas: "Existe em Portugal um leite autêntico, branco e espesso, que ainda simboliza, de modo intacto, a privilegiada relação entre o ser Humano e o ser Vaca. Chama-se "Vigor" e vende-se, como é desejável e exemplar, em garrafas." Como os tempos, as coisas e os leites mudaram.

Registado em 1951 como "Leite Especial Vigor Pasteurizado", o leite Vigor respondia ao gosto por leite fresco da comunidade britânica residente no eixo Estoril-Cascais-Sintra, bem como das elites europeias aí exiladas durante a II Guerra Mundial. Inicialmente só distribuído porta à porta, em garrafas de vidro, chega mais tarde a pastelarias, cafés e outros estabelecimentos da região de Lisboa em garrafas de um, meio e quarto de litro.

É então que nasce o 1/4 Vigor, o da garrafa de vidro grosso e da tampa mole de alumínio. Durante décadas, e não obstante o leite (e durante algum tempo, o iogurte) Vigor ter sido vendido noutras embalagens, o pedido "um quarto de Vigor" era respondido com apenas um produto, uma embalagem, uma imagem.

Com a viragem do século, a Lacticínios Vigor é integrada na Lactogal, o maior grupo português do sector. A marca Vigor é relançada e passa a chegar também a supermercados de todo o país.

O novo alcance geográfico da Vigor obrigou à escolha de uma nova embalagem. Exploradas outras tipologias, as garrafas de vidro perderam para os pacotes Tetra Top da TetraPak: mais leves, fáceis de transportar e reciclar, mais higiénicos e capazes de suportar o novo método de pasteurização introduzido em 2006. A última embalagem de vidro de 1/4 Vigor foi cheia em 2008.

Contudo, a garrafa não desapareceu. A forma tridimensional já "gravada na retina" dos portugueses deu lugar à imagem que se tornou num ícones do leite e do design português. Um ícone de contornos pouco definidos, como explica Dinamene Branco, directora de arte na agência de publicidade McCann Erickson: o projecto do original da garrafa, cujo autor se desconhece, foi sendo adulterado ao longo dos anos.

Coordenando desde 2006 o design da imagem e embalagens do leite Vigor, a designer revela como através de "pequenos toques" se tem dado continuidade a "uma embalagem que por si vive há anos". Como o redesenhado logótipo, que adoptou um novo tipo de letra, ou a "estampa antiga" da vaca que foi "digitalizada e trabalhada, sem perder o seu traço vintage". Ou a garrafa, que vive, branca, sobre um fundo de cor plana. Ou melhor, vários fundos.

Dantes, leite Vigor era só um, como M.E.C. elogiava: "O leite "Vigor" não alinha em mariquices. Não há uma versão "Meio-gordo" para aqueles gordos que gostariam de ser meios-gordos, nem "Magro" para os meios-gordos que sonham ser magros. Só há uma versão: a gorda, a boa, a vigorosa." Agora há Vigor para toda a gente: gordo, meio-gordo, magro, com cálcio, até de chocolate - cada um com o seu fundo. Afinal, como diz Dinamene, "o consumidor faz a necessidade".

Quando há escolhas a fazer, o (bom) design ajuda, mas também condiciona. Exemplo disso é o fundo do leite Vigor magro, parte do redesenho das embalagens aquando do 60.º aniversário da marca: de azul-claro passou a cor-de-rosa. A gestora da marca, Maria José Patrício, explica porquê: "Por um lado, o cor-de-rosa é uma cor diferenciada (não existe outro leite cor-de-rosa), o que lhe garante maior destaque; por outro, a maior parte dos consumidores deste produto são mulheres, estando a cor associada a este target."

A notável metamorfose de design pós-milenar do 1/4 Vigor reflecte a sociedade de consumo em que vivemos: menos e maiores empresas oferecem-nos mais produtos para responder às nossas necessidades e desejos. Porém, frequentemente, essa escolha é pouco mais do que uma bem projectada, ou bem vendida, ilusão. O mercado nacional do leite pasteurizado "do dia" prova-o: representa hoje menos de 4 por cento do total de leite consumido em Portugal e é dominado pela Lactogal, que através da marca Vigor detém 86 por cento das vendas. Ou seja, de uma limitada embalagem de âmbito regional, a garrafa de 1/4 Vigor passou a simbolizar a quase hegemonia de uma marca nacional num muito simbólico mercado.

O que dá um novo significado a outra antiga, mas ainda actual frase de M.E.C.: "É este o leite que suporta, quase sozinho, a responsabilidade simbólica do leite em Portugal. Assiste, sereno, à facilidade com que a nação renunciou ao seu direito de leite fresco."

frederico@05031979.net

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