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A estação de rádio que está a ouvir está a ser tomada de assalto por um grupo terrorista sul-americano? O locutor está há dois dias sem dormir para tentar bater o recorde da mais longa emissão radiofónica? A Rádio Universidade de Coimbra faz 25 anos

a O berro, quase em tom militar, ouvia-se nos corredores da Associação Académica de Coimbra (AAC): "Acabou o tempo!" Um após o outro, sentavam-se em frente à mesa de som, colocavam os auscultadores, subiam a via do microfone e a luz vermelha, à entrada do estúdio, acendia-se. "No Ar": "Boa noite, esta é a informação da Rádio Universidade de Coimbra". Com a pressão de improvisar, havia momentos em que as palavras se enrolavam na boca. Alguns desmanchavam-se num ataque de riso. Outros emudeciam. Havia quem soçobrasse num pranto. Da próxima vez, voltariam a falhar, mas falhariam melhor.

Nas longas e agitadas noites do curso de informação da Rádio Universidade de Coimbra (RUC) ensaiavam a edição de noticiários e nada era mais assustador do que a perspectiva de ficar sem palavras. "É o medo do microfone. No início, acompanha-nos, mas a RUC ajudou a desmistificá-lo", recorda Daniel Belo, hoje editor dos noticiários da tarde na Antena 1. As transmissões das reuniões magnas de estudantes, onde se discutia sempre a situação do ensino superior e a data da próxima manifestação, chegavam a durar cinco horas. As emissões para acompanhar a Queima das Fitas prolongavam-se das 22h00 às 6h00. "Eram noites inteiras ao microfone. Ganha-se calo. E aprendi a não me preocupar com aquilo que acho que não vou ser capaz de fazer", diz.

Há 25 anos que a RUC é um porto de abrigo para melómanos, apaixonados pela rádio, e também para quem quer aprender a fazer jornalismo. É uma rádio de amadores - quem lá entra fá-lo por gosto e não por profissão -, mas, das 8h00 às 2h00 ou 3h00, quem subir ao segundo piso da Associação Académica de Coimbra (ACC), na Rua do Padre António Vieira, muito provavelmente encontrará alguém em estúdio, a fazer rádio em directo. Não há playlists, os programas são de autor e as escolhas musicais são as mais livres e eclécticas. Um anacronismo? "Infelizmente, a forma como se faz rádio na RUC, hoje em dia, está quase ultrapassada quando olhamos para o panorama radiofónico. Mas, seguramente, é a única forma através da qual vale a pena fazer rádio", garante José Santiago, de 26 anos, hoje presidente da rádio para a qual entrou quando tinha 20.

Foi por altura do 10.º ano que começou a ouvir a RUC com os amigos. Entre o grupo, circulava um CD com uma gravação da RUC de um escandaloso concerto da banda conimbricense Tu Metes Nojo. O espectáculo acabou com a intervenção de seguranças, o som cortado abruptamente e os elementos da banda a sair do palco em pelota. "Mítico! Era algo impossível ouvir noutra rádio", recorda.

Lista de reivindicações

No início dos anos de 1990, como estratégia de divulgação da nova grelha de programas, alguns elementos simularam a tomada da rádio por um grupo de guerrilheiros da América do Sul: leram comunicados, apresentaram uma lista de reivindicações e só passaram música revolucionária.

E, em Março de 2002, durante quase três dias, quem sintonizasse a RUC ouviria sempre o mesmo locutor: José Braga esteve o tempo todo em estúdio para bater o recorde da mais longa emissão de rádio, de cem horas, três minutos e 22 segundos. Chegou quase às 70 horas e, no momento em que desistiu, estava no ar a música On Her Majesty"s Secret Service, da autoria de John Barry, banda sonora de um dos filmes de James Bond. "Vou ali e já volto" foram as últimas palavras que disse em antena.

"Toma lá uma rádio e faz o que quiseres dela" foi o que pensou Daniel Belo quando entrou para a RUC, em 1996, enquanto frequentava a universidade. Até quando começou a transmitir os relatos dos jogos da Académica, a RUC foi diferente: seriam assumidamente parciais. Os locutores, sentados na bancada de imprensa, continuam a não se coibir de puxar pela Académica. Os repórteres de pista são o mais tendenciosos possível e fazem troça dos penteados dos jogadores e dos treinadores adversários. O estilo causou problemas, claro. Em Espinho, onde a Académica enfrentava o clube local, Daniel Belo teve que ser escoltado para fora do estádio pela GNR, depois de ter gritado o golo da Académica a plenos pulmões: estava um silêncio gélido no estádio e quando reparou tinha toda a claque adversária a fitá-lo, como se fosse um alvo. "Levei com pastilhas, garrafas e uma chuva de insultos que atingiu três gerações da minha família", recorda.

"Na RUC nada é sério, mas é tudo a sério", tenta explicar. Nos cursos de informação que continua a dar aos novos formandos, esforça-se por passar a ideia. "Para quem quer vir para aqui fazer informação já muito direitinha e quase profissional tento fazer-lhes ver que é na RUC que têm que aproveitar para fazer diferente e experimentar, porque não vão encontrar nenhum outro sítio que lhes dê essa possibilidade". Não é por acaso que, ao lema da TSF - "tudo o que se passa, passa na TSF" -, a RUC respondeu: "Todos os que se passam, passam-se na RUC".

Os cursos de informação, locução e realização de programas e de técnica de radiodifusão são organizados praticamente desde a fundação. "Somos talvez das únicas rádios-escolas do país", arrisca José Santiago, que frequentava o último ano da licenciatura em Comunicação Social quando decidiu inscrever-se no curso de informação. Viria a ser na RUC que, pela primeira vez, se sentaria num estúdio de rádio. "Todas as noções que tinha de jornalismo radiofónico eram, sobretudo, teóricas. Durante o meu curso, nunca tive acesso a uma mesa de som e quando cheguei aqui foi um choque tremendo porque consegui ter oportunidade de me atrapalhar completamente diante do microfone".

Mas a RUC não é apenas feita de estudantes do ensino superior e de Comunicação Social, em particular. Fausto Silva tem 48 anos, é professor de Matemática no ensino secundário e há cerca de 20 anos que realiza, diariamente, o programa Santos da Casa, dedicado à música portuguesa.

As primeiras experiências radiofónicas na AAC começaram com o Centro Experimental de Rádio, uma secção da associação que desde as décadas de 1940 e 1950 começou a formar locutores. Porém, só na década de 1970 é que começariam as emissões em circuito interno, para as cantinas universitárias, à hora do almoço e do jantar. "Os estudantes não podiam controlar nem o volume, nem o tipo de música, por isso, em mais do que uma ocasião, cortaram os cabos da emissão. Diziam que estavam fartos do barulho", relembra Fausto Silva.

Ideia romântica

A rádio mudou muito em 25 anos. O espaço cresceu, há mais estúdios, muitas pessoas saíram e outras tantas entraram. Mas o espírito manteve-se: "Somos uma rádio de autor e isso marca a diferença em relação a 98 por cento das rádios que existem em Portugal. Podem tapar-me os olhos que, pela música, sei logo dizer se é a RUC que está a dar no rádio", garante Fausto Silva.

As profecias sobre a morte da rádio analógica vão-se sucedendo, mas, na RUC, garantem, resiste uma certa ideia romântica da rádio: um estúdio, um locutor e DJ, emissão em directo, as músicas anunciadas e faladas, a emissão FM. "Há um carinho enorme pelo FM porque foi aí que tudo começou. É através do FM que o senhor do quiosque ouve os relatos da Académica ou que os taxistas ouvem os noticiários e praguejam contra a "maldita música". Mas se o FM sucumbir às emissões e aos formatos digitais, a RUC continuará a ser a RUC", afirma José Santiago.

O emissor analógico, que se ergue no Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra, a 100 metros de altura, tem um raio de alcance de cerca de 25 quilómetros na região, mas a emissão online, que começou a funcionar a partir de 1999 - a RUC reclama ter sido a primeira rádio, na Península Ibérica, a ter a emissão online - é ouvida em qualquer ponto do país ou do mundo, sobretudo na Europa, Canadá e Japão, onde a RUC sabe que tem ouvintes.

As playlists, habituais nas rádios profissionais, não existem. "Quando alguma editora nos liga a propor que um tema musical, acabado de sair, passe Xvezes ao dia, ficam muitos espantados por dizermos que não temos playlists", diz Nuno Ávila, locutor dos programas Santos da Casa e Discos Perdidos, este último dedicado à música punk, new wave, pop, rock, electro-pop, neo-românticos dos anos 70 e 80.

Nesta rádio, cabem todos os géneros musicais: rock, pop, electrónica, blues, hip hop, world music, noise, ou rockabilly americano dos anos 1940 e 1950. Até improvisações experimentais. No ano passado, num dos muitos serões que são passados na rádio, aconteceu o Música Imperfeita: várias pessoas estavam espalhadas pelas divisões da rádio com os mais diferentes instrumentos (violino, baixo, guitarra, iPhone, computador, modulador de voz). Havia também uma pessoa numa mesa de mistura digital que controlava o que ia para o ar - quem tinha som ou simplesmente o volume de cada um desses componentes, recorda José Santiago.

É ali, também, que muitas das novas bandas portuguesas se fazem ouvir pela primeira vez. Muitas pela mão de Fausto Silva e de Nuno Ávila, que entrou para a RUC em 1986, quando tinha 16 anos e frequentava o ensino secundário. Era autor, na altura, de um fanzine dedicado à música portuguesa e começou por ter, em antena, um espaço só sobre bandas de Coimbra. Chamava-se Cunímbriga de Morcegos e adoptava o nome de uma música dos M"as Foice: "Era uma banda de punk-rock/folclore/fado, que tinha Tony Fortuna na voz (que viria depois a fazer parte dos Tédio Boys e a formar os D3o), Sérgio Cardoso (hoje baixista dos Wraygunn), entre outros", lembra. "Metade das bandas de Coimbra foram editadas pelo Rui Ferreira, um "ruquiano" há longos anos, que criou a Lux Records. Chegou a editar M"as Foice, D3o e Tédio Boys.

Estas bandas não foram caso único. Foi nos estúdios da RUC que Afonso Rodrigues, na altura um dos locutores do programa Ruc"n"Roll, começou a gravar os esboços do que viram a ser as canções do primeiro álbum dos Sean Riley & the Slowriders. Foi também lá que conheceu os outros dois elementos que estiveram na origem da banda, Bruno Simões e Filipe Costa: "A RUC também foi muito importante porque nessa altura gravava quase todas as minhas demos lá. À noite, quando o edifício estava mais vazio, ia para o antigo estúdio 3 e ficava lá a gravar live só com um microfone...", conta. A primeira actuação pública da banda aconteceria, em Março de 2006, na primeira parte de um concerto de aniversário da rádio.

Há 25 anos que a RUC está no ar. Sempre? Bem, quase sempre. Ou por causa do mau tempo ou por sobreaquecimento, por vezes, o emissor vai abaixo. Nem de propósito, recentemente, um raio atacou o emissor de ondas hertzianas. Durante algumas horas, a emissão em FM ficou entregue ao silêncio. Um ouvinte poderia ter pensado: estarão a interpretar a composição 4"33 de John Cage, será uma banda avant-garde alemã ou a rádio está mesmo "em branca"? Estava "em branca". E, por isso, nessa tarde, através do Facebook, os responsáveis da RUC apenas recomendaram aos ouvintes que aproveitassem a "estática" para "a prática de meditação transcendental".

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