Genet no jardim de Jeanne

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Jeanne Moreau e Étienne Daho em Avignon Pierre RENE-WORMS/cortesia festival de avignon
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Jeanne Moreau e Étienne Daho em Avignon Pierre RENE-WORMS/cortesia festival de avignon

Foi uma única sessão, como se as emoções não aguentassem mais do que isso. Uma Cour d"Honneur despida para receber as palavras de alguém "que nunca imaginou chegar até ali", pelas vozes de Étienne Daho e, sobretudo, Jeanne Moreau, corpo e história do Festival de Avignon. A partir do disco, o concerto que é uma homenagem ao homem a quem deveríamos chamar irmão: Jean Genet

Foram 15 minutos de aplausos, de pé, e mais houvesse para aplaudir, se o que ali se passou não tivesse já sido tudo. As tímidas mas impulsivas palmas que alguns, emocionados, não conseguiam deixar escapar ao fim de cada canção explodiram, impuseram-se no silêncio que a noite criara para ouvir Jeanne Moreau e Étienne Daho a cantar, a dizer, a fazer passar as palavras de Jean Genet deixadas como elogio fúnebre a todos os criminosos por quem ele se quis apaixonar. Até o vento, por uma vez, se calou para deixar ouvir este lamento por um condenado à morte.

Apresentação única em Avignon de um concerto a partir de Le condamné à mort, poema escrito em 1942, que se estreou a 23 de Novembro de 2010 no Teatro Ódeon, em Paris, e que desde então já passou por várias salas, "algumas parecidas com lugares para o rock", como uma em Montréal, "outros mais íntimos", todos eles "lugares para se sentir a respiração de Genet", disseram os dois autores.

Espectáculo "que não é uma leitura", disse Moreau, a partir de arranjos de Hélène Martin, amiga de Genet, presente na Cour d"Honneur [sala principal do festival, com 2000 lugares].

Espectáculo de uma simplicidade desarmante, imbuído de uma carga mística, especial, reverencial, dir-se-ia, marcado pela presença de Santa Jeanne, princesa de Avignon.

É sempre por ela que se começa, porque é ela que faz questão que assim seja, "orgulhosa de poder continuar a merecer a atenção de todos". Jeanne Moreau, actriz-mito, corpo e história do festival desde o início, de 1947, na companhia de Jean Vilar, o seu criador, ainda o festival era "só" uma "semana de arte em Avignon", em Setembro.

"As ruas vazias, as pessoas sem saberem o que vínhamos fazer aqui, e a adesão logo imediata", recordou Jeanne Moreau na conferência de imprensa, sobrelotada como nunca se viu, e se vê sempre só para ela, ela que foi regressando a Avignon, "lugar mágico, místico", pelo qual "tem um enorme respeito".

"Quando ouço as trompetas de Maurice Jarre, fico arrepiada, galvanizada" diz, referindo-se ao toque de chamada que desde 1947 ecoa em todas as salas de todos os espectáculos da programação oficial. São duas chamadas, inconfundíveis, que "anunciam que o sonho vai começar".

E Jeanne entrou na Cour d"Honneur - "E, quando entro, fecho os olhos, respiro fundo e lembro-me de todas as vezes que tive a sorte de poder ali entrar" -, vestida de branco, cabelo louro levado pelo vento, as palmas a acompanharem-na, ela que se apoiava no braço de Étienne Daho. É a história a entrar-nos pelos olhos dentro. E, no final, os olhos de espectadores que lhe agradeciam ter feito parte da sua história lavados em lágrimas. "A minha história é a honra que me dão por nos virem ver", disse. "Este palco é o meu cinema, esta a minha história, esta é a minha vida."

Mas que lhe ensinou, afinal, a representação, Madame Moreau? "A disciplina. Preciso da ordem e da disciplina. Hoje de manhã, por exemplo, estava angustiada. Fui à procura de tudo o que precisava: os meus vestidos, a maquilhagem, as jóias, o pregador para o cabelo e fiquei mais calma." "Não se aprende nunca a controlar isso?", perguntam. E Madame Moreau responde: "Não pode imaginar como estava quando o Étienne se atrasou para o ensaio. Estava em todos os meus estados." E depois a voz, rouca, picada nas notas mais graves, enche aquela sala ao ar livre: "Jean Genet était un enfant", lê, do longo e poético prefácio que Jean-Paul Sartre escreveu na biografia que dedicou em 1952, Saint Genet: comédien et martyr.

Uma vida com Genet

Foi o próprio Genet quem disse que Le condamné à mort era "um livro terrível, obsceno, impublicável, inevitável" e, ao mesmo tempo "o grande acontecimento da época".

Dedicado "a quem o corpo e o rosto radiosos assaltam as minhas noites de insónia", Maurice Pilorge, 20 anos, por quem Genet se apaixonou e dele fez musa inspiradora para toda uma insurreição contra o poder que roubava à sociedade aquilo que Jeanne Moreau diz não se querer ver que existe: "O pai que pode ainda nascer do corpo daquele deliquente." "Não é ser pessimista, é saber que nem tudo é a merda que dizemos que é." Quantos há, assim, ainda, pergunta a actriz, usando as palavras de Genet sobre aquele que foi atirado para a guilhotina em 1939 por assassinar o seu amante, esclerosado. E como Genet o compreendia bem, e por ele criou um poema sexualmente marcante, sujo de tanta revolta, evidente, "porque é preciso usar as palavras mais cruas para que a verdade se ouça", disse Jeanne. "Ele é a voz de todas as juventudes com algo para dizer", ele que foi preso "não por roubar uma pistola, mas uns papéis", recorda Moreau, sobre as razões que atiraram Jean Genet para a prisão de Fresnes.

Mais uma de tantas prisões onde "aquele que nunca percebemos" esteve. "É nosso irmão", diz Sartre no fim do texto. "É meu irmão", diz Jeanne, emocionada. "Trazê-lo, a ele que nunca imaginou chegar aqui, é a minha maior fortuna."

Jeanne Moreau conheceu Jean Genet sem saber quem ele era: "Não sei se alguma vez o compreendi. Sei que o sentia muito próximo." Na conferência de imprensa falou, abreviadamente, do que foi a sua vida partilhada com Genet, e que no programa do espectáculo aprofundou: "Era muito tímido, apesar de ser impulsivo." "Lembro-me de um período em que Genet me vinha esperar todos os dias à saída do Théâtre Antoine. Levava-me aos bares, frequentemente à Coupole, onde me utilizava como isco para seduzir os mais belos rapazes. Divertíamo-nos imenso, ele era muito vivo." "Mas de onde veio essa cumplicidade?", pergunta a actriz a si mesma. "Eu era muito jovem e vivia em permanente rebelião contra o meu meio familiar. Desde os sete anos que vivia em Montmartre e conhecia esse mundo de delinquentes, de pedintes, de pequenos ladrões. As putas eram nossas amigas, traduzia as cartas que elas recebiam dos soldados americanos, depois da libertação [de Paris do regime nazi]. Nunca falámos disto, eu e Genet, mas o que havia entre nós era intuitivo." "Éramos uma espécie de Yin e Yang", acrescentou na conferência de imprensa. E um dia, contou, ele deu-lhe o argumento de um filme, Mademoiselle, que seria escrito a quatro mãos, com Marguerite Duras, amiga próxima de Moreau. "Ele dava tudo às pessoas, deve ter vendido as mesmas coisas várias vezes para poder ter dinheiro."

O filme, realizado em 1966 por Tony Richardson, causou escândalo no Festival de Cannes, onde se apresentou, por usar o rosto angélico de Jeanne para a mostrar perversa, mulher louca, entre a possessão e a esquizofrenia, que se infligia e provocava o pânico, irracionalmente, na sua aldeia. Genet viria a recusar o filme: "De cada vez que se apaixonava por alguma coisa tinha que a rejeitar, percebi-o depois." Cada homem mata a coisa que ama, como no poema que cantou em Querelle, o filme que Fassbinder fez em 1982 a partir do romance de Genet. Foi a segunda vez que Jeanne o encontrou, mas nunca como quando aceitou o desafio de Étienne Daho para "mergulhar a fundo num mundo que não conhecia". "Num mundo onde não sabia que tinha vivido", disse.

"Tive sempre a impressão de que, com ele, vivi no precipício do medo. Não era um medo paralisante, era mesmo até excitante, mas ele era como o fogo, podia devorar-nos", confessou. "Mas era essa a sua genialidade, essa capacidade de penetrar no interior das almas, de ver a vilania e de a transformar em beleza."

"A reforma é a morte"

Étienne Daho fala inclusivamente de como tudo o que procurou na música rock encontrou nas palavras de Genet: "Está lá tudo, a luta inconformista, a ambiguidade sexual, a violência, a angústia, o que não se sabe." Genet disse as coisas "quando não havia palavras para elas", contou o músico que em 1997 descobriu os arranjos de Hélène Martin dos quais partiu e que desde então cantava Sur mon cou, uma das canções a partir do poema (encontram-se todas no YouTube). "Descobri que a singularidade se pode fazer misturando as palavras do quotidiano com a revolta que nos é interior", contou. Foi isso que Jeanne redescobriu: "Jean Genet leva-nos ao inferno, ao oculto, à total exposição e à mais completa das liberdades num mundo onde achamos que todas as liberdades já existem." "Mas é ele o nosso líder", acredita, "com todos os seus desvios". Diz ainda: "Não há vidas a direito, há desvios que são conquistas fundamentais e estradas perigosas mas essenciais. Que se transformam em acasos formidáveis", como este, onde, pela música, descobriu "um mundo que não conhecia".

"Não acredito na ideia de que a vida é como uma montanha que às vezes se tem que descer para voltar a subir", deixou como recado. "É preciso subir constantemente. E viver cada ano que nos é dado como uma oportunidade para aprender algo novo." A cada frase, a cada tirada justificada com a idade e o mito, mais aplausos. E depois um acto de humildade, como se recusasse tudo o que lhe está a ser dado: "Tive imensa sorte ao longo da vida. Foram-me dadas oportunidades que nunca imaginei. Foram-me colocadas hipóteses que me tornaram melhor." E quando lhe falam sobre a reforma diz: "A reforma é a morte." Ainda lhe falta "aprender a dar apenas o que é bom ao público". "Nunca se sabe. Aprende-se sempre."

A vida "é como um jardim", diz. "É preciso cuidar dele, tratá-lo, escolher bem as flores que lá cultivamos e limpá-lo de ervas daninhas. E, no fim, ter a certeza de que, quando partimos, deixamos um jardim bem arranjado."

Genet vive agora no jardim de Jeanne. Chama-se Jean, seu irmão. Nosso irmão.

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