Um dia na vida de um químico: "Tudo o que vemos, tudo o que existe, é química"

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Ricardo Silva

Acompanhámos o investigador Nuno Xavier durante um dia, desde que saiu de casa de manhã até que deixou o laboratório, ao final da tarde. O objectivo foi perceber onde é que a química está presente no nosso quotidiano, e ela está em toda a parte. Só não conseguimos ver "açúcar" nas árvores nem novos mundos na Tabela Periódica.

Em casa

8h00

A química não está confinada a um laboratório, ela está presente em cada um dos mais pequenos gestos da nossa vida. Logo pela manhã, quando se usa gel de banho ou sabonete, ou quando se lava os dentes com uma qualquer pasta com floreto de sódio, que melhora o esmalte que reveste a parte interior dos dentes. "Está logo no banho. Os champôs e os sabonetes que usamos são produtos de síntese, ou seja, misturas de vários compostos com finalidades de higiene e com diferentes odores. A pasta de dentes também. Todos têm na sua composição surfactantes, que são detergentes", diz o investigador Nuno Xavier, 28 anos, que trabalha num dos laboratórios de Química da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). Até o acto de pôr perfume ou de limpar e eliminar a gordura da pele, hidratando-a de seguida, é química. Os cremes esfoliantes, exemplifica, têm ácido salicílico, que também é um analgésico precursor da aspirina.

8h15

Quando Nuno Xavier se veste, a química está presente. O algodão, a seda e a lã são tecidos de origem natural. Mas há outros de origem sintética. "Tudo o que tem moléculas é química, logo tudo o que existe é química, do ar que respiramos ao material mais complexo", diz.

8h30

Ao pequeno-almoço, o químico bebe leite, composto por diferentes moléculas - lactose, caseína, várias vitaminas e substâncias minerais, como o cálcio - e come pão, que tem hidratos de carbono como o amido. A química está também presente no uso do microondas, que aquece a água existente nos alimentos, provocando uma oscilação das moléculas polares e um aumento das colisões entre elas.

No autocarro

9h00

Nuno Xavier está sentado no autocarro que o vai levar de S. João da Talha, em Loures, até à FCUL, para outro dia de trabalho. Os materiais com que o veículo é feito são produto da investigação e da indústria química e a reacção de combustão que põe o motor a funcionar também - a combustão é uma reacção química entre o combustível e o oxigénio, um comburente, da qual resulta a libertação de energia.

9h30

Durante cerca de 40 minutos de viagem, Nuno Xavier vai explicando que o que faz, no dia-a-dia, é síntese: mistura diferentes compostos, sejam naturais ou sintéticos, para obter um composto novo, com base em hidratos de carbono. No fundo, e estabelecendo um paralelismo com a cozinha, fabrica não só novas receitas como novos ingredientes. Outra das analogias que faz para explicar o seu trabalho é com a arquitectura. No caso de Nuno Xavier, um processo de investigação inicia-se sempre com uma ideia - o químico imagina um composto com uma "estrutura interessante" - que transpõe para o papel: "Faço um desenho. Um químico de síntese é arquitecto porque faz o projecto, desenha a molécula no papel. Depois, é engenheiro, porque pensa no processo, nas etapas de síntese que poderão levar a esse composto, e ainda é o operário que vai pôr a ideia em prática, meter a mão na massa que faz o cimento."

No laboratório

10h00

Nuno Xavier chega a Lisboa. Caminha até ao departamento de Química da FCUL. Foram os hidratos de carbono que ingeriu ao pequeno-almoço que lhe permitem ter energia para o fazer. Dentro do edifício, dirige-se ao gabinete, veste a bata, põe uns óculos "para prevenir algum salpico de alguma substância" e ruma finalmente ao laboratório. Lá dentro sente-se no ar o cheiro de diferentes solventes.

10h30

Vários investigadores estão concentrados nas suas tarefas: folheiam cadernos, verificam a evolução das reacções químicas, através de placas cromatográficas, transportam caixas com plantas... Simão Abreu, 21 anos e aluno de licenciatura do último ano, está a desenvolver um projecto que consiste na síntese de novos derivados para chegar a um composto específico que poderá contribuir para combater a doença de Alzheimer. Catarina Dias, também de 21 anos e estudante do 1.º ano de mestrado, anda às voltas com a Salvia sclareoides, uma planta que pode ter potencialidades no combate a problemas de memória. Mais uma vez, o que quer é "descobrir", entre a "imensidão de compostos" da planta, aquele que será responsável por esse combate.

11h00

Nuno Xavier procura compostos antibacterianos. Apesar de sintetizar compostos com esse intuito, terá de ser ainda, depois, um biólogo a testar esse composto e a verificar a sua "actividade biológica". Será o biólogo quem vai juntar, num tubo de ensaio, o composto sintetizado por Nuno Xavier e a bactéria, para confirmar se esta é ou não inibida. O investigador já chegou - ao longo do trabalho produzido para o doutoramento que iniciou em Outubro de 2007 e terminou em Maio - a dois compostos que se provou combaterem duas bactérias: a Bacilus cereus, que provoca problemas gastrointestinais e intoxicações alimentares, e a Enterococus faecallis, responsável por infecções comuns nos hospitais. Já foram feitos os testes preliminares, mas falta o derradeiro teste nas pessoas: "São outras fases. Pode demorar cerca de 10 anos para um composto ser aprovado como fármaco", revela.

Na cantina

12h00

Aproxima-se a hora do almoço, Nuno Xavier dirige-se à cantina. Vai comer o que outros cozinharam, através de uma sucessão de experiências químicas: "Quando uma pessoa está a cozinhar, está a fazer química. Implica reacções e transformações químicas. Costuma-se dizer na brincadeira que um bom cozinheiro é um bom químico", conta, admitindo, porém, que a cozinha não é o seu forte. À noite, opta por sandes e fruta. Mas até nisso há química. Muitos frutos, como os morangos e a laranja, por exemplo, são antioxidantes que combatem a oxidação das células, provocada por moléculas que se formam no nosso organismo. Estas moléculas que provocam oxidação (radicais livres) produzem-se normalmente no nosso corpo, mas há factores, como o tabaco e a poluição, que podem acelerar esse processo.

No gabinete

14h00

Nuno Xavier regressa ao gabinete. Para o fazer, tem de passar pela Tabela Periódica que há à entrada do departamento. Esta, desenhada no chão, foi uma ideia do docente José Artur Martinho Simões (ver caixa) e deverá ser a maior do mundo. Quando passa por ela, o investigador vê "milhares de possibilidades de combinações que podem ser feitas para originar moléculas novas". Os químicos têm uma forma própria de ver o mundo: "Quando olho para uma árvore, vejo açúcar", diz Nuno Xavier. "Se calhar, as árvores são doces, como a glucose é doce", continua, explicando que a madeira pode conter até cerca de 50 por cento de celulose, uma molécula "grande" que contém glucose que, por sua vez, é um hidrato de carbono - os outros constituintes da madeira são essencialmente hemicelulose e lenhina, o que significa que o teor da madeira em hidratos de carbono, ou açúcares, pode ir até cerca de 70 por cento. "A glucose é um açúcar, mas não o do dia-a-dia, esse é sacarose e não vem da árvore", explica.

Na loja

17h00

Depois de ter passado uma tarde em frente ao computador a analisar o trabalho feito em laboratório, Nuno Xavier vai a uma loja imprimir um póster, para usar num congresso, com os principais tópicos da sua tese de doutoramento em Química Orgânica. Ali, o investigador continua a ver química: "O papel é química, é celulose. A tinta é química, tudo o que leva cor são componentes químicos." Nuno Xavier olha em volta, aponta para as mesas, para os tapetes, para os computadores, para os jornais, para os sinais de trânsito na rua e resume: "Toda esta cor, todas estas estruturas, tudo é química. São tantas as coisas simples do nosso quotidiano que uma pessoa nem se lembra dos processos e da investigação, do que foi preciso para chegar lá. Tudo, tudo o que vemos é química", repete. Até o que não vemos à primeira vista, como as emoções: "Por exemplo, a serotonina que nós produzimos é uma molécula. O que os antidepressivos fazem, quando alguém está deprimido, é controlar a produção de serotonina." Seja bom ou mau o que vemos, é tudo química.

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