O corpo feito palavra

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ENRIC VIVES-RUBIO

Regressou a Avignon após 23 anos para mostrar um autor que acabou de descobrir, Jon Fosse. I am the wind/Eu Sou o Vento é uma surpresa nas mãos deste experimentado encenador francês que se diverte, como uma criança com um brinquedo novo, a descobrir significados onde parecia já estar tudo dito. De amanhã a segunda, em Almada.

Há 23 anos que Patrice Chéreau, 66 anos, não vinha a Avignon. Não admira, por isso, que haja quem tenha corrido atrás de um homem de bicicleta a chamar por "Monsieur Chéreau, monsieur Chéreau". Até que o ciclista, todo de branco, parou e explicou, com o ar mais divertido do mundo, não ser o encenador: "Désolé!" Ouve-se, em surdina, quando se entra no pátio do Lycée Saint-Joseph: "Patrice veut te voir." São amigos que o vieram ver. As cabeças voltam-se, o homem está na sala, escondido atrás de uma porta, a ver os que vieram para o ver a ele. Chéreau está onde sempre está: no palco. "Passo nove de 12 meses num cenário. Fiz óperas, peças, leituras, cinema. Não se pode dizer que tenha regressado, porque nunca me fui embora." Chéreau dirá que não pensa nisso e, quando insistem, diz: "Cheguei, mas parto imediatamente."

Chéreau passa e as pessoas param. Achavam que estava zangado com Avignon. Compreendiam-no. Avignon é um lugar difícil e Chéreau gostou sempre de se mostrar frágil, inseguro, dizer que não sabe, criar uma misteriosa distância, ele que é um dos nomes centrais da encenação europeia.

"Tenho memórias maravilhosas de Avignon", e fala de uma encenação de Hamlet, em 1998, na Cour d"Honneur, o lugar central do festival, numa noite de vento forte a cortar as palavras. E de uma encenação que fez, no ano seguinte, na Chartreuse de Villeneuve les Avignon, do outro lado do rio, isolado, com alunos e jovens actores que com ele trabalhavam no Théâtre Nanterre-Amandiers, nos arredores de Paris. "Acho que nunca deixei de estar em Avignon", diz.

E é verdade, esteve até quando não houve festival, em 2003, efeitos da greve dos profissionais do espectáculo que parara a criação nacional nesse Verão como forma de protesto contra o regime de intermitência. Chéreau, elefante poderoso, artista-artesão do sistema, contra os artistas fora do sistema. "Vim porque a Arianne [Mnouschkine] me telefonou a pedir. Partilhava as mesmas opiniões que ela."

"Em França gasta-se muito dinheiro na cultura e nem sempre se sabe o que estão as pessoas a fazer com isso", disse ao jornal Telegraph, em Inglaterra. Ela, Arianne, é a trave mestra do teatro independente, a figura de proa de um movimento político e social que começou nos anos 60 e ainda hoje ecoa. Como Chéreau diz ainda ser. Mesmo quando é abraçado pelas instituições que dele fazem porta-estandarte da excelência. Chéreau pode ser o que Chéreau quiser que seja.

Para este regresso de Avignon a Chéreau, o encenador tem uma resposta menos ambiciosa: "É preciso ter muito cuidado com a poética do ar livre." Mesmo que no dia do ensaio geral tenha começado a chover no momento em que uma personagem dizia "Está a chover". "Incomoda-me o ar livre. Recuo perante o vento", explica.

O vento. Precisamente o que trouxe de volta a um festival que o esperava. Veio com I am the wind (Eu Sou o Vento), encenação a partir do texto do norueguês Jon Fosse, com tradução do dramaturgo Simon Stephens. É a segunda vez que encena Fosse. A primeira foi há uns meses, Rêve d"automne (Sonho de Outono), encenada primeiro no Museu do Louvre e depois no Théâtre de la Ville, em Paris, que co-produziu esta segunda peça com o Old Vic, em Londres, onde estreou em Maio. Em inglês.

Construir a intimidade

Desde há muito tempo que não se via Chéreau a ter tanto prazer a descobrir um texto. Só comparável ao que fez com Bernard-Marie Koltès, o autor que descobriu estava ele ainda a descobrir-se.

"O meu encontro com a escrita de Koltès transformou todo o meu percurso como encenador. Chegou tarde. E passei a fazer textos que, como dizia o meu pai, não estavam ainda "secos". Com Jon Fosse é uma descoberta semelhante", acredita o encenador, mesmo que este autor seja um dos mais representados na Europa (incluindo Portugal - ao longo da última década, desde 2000, os Artistas Unidos encenaram, editaram e fizeram leituras de sete peças deste autor). "Demorei a descobrir Jon Fosse, outros fizeram-no antes de mim, como Claude Régy. Ao fim de 30 páginas de Sonho de Outono decidi fazê-lo. Quando li Eu Sou o Vento, percebi que era magnífica, não sei se ainda mais do que a outra. Mais do que escolher, decidi fazer as duas", explicou. O próprio festival queria trazer as duas peças, mas tal não foi possível por questões logísticas. "Sonho de Outono nunca se poderia fazer ao ar livre", diz Chéreau. É um facto. O cenário, de Richard Peduzzi, recria as salas do Museu do Louvre. E mesmo que a intimidade que se cria em Eu Sou o Vento, num cenário de naufrágio, ou apenas uma poça de água suja onde dois anónimos se encontram, possa ser viável em pleno ar livre, "é preciso construir a intimidade a partir de paredes que não existem".

É, por isso, muito possível que o fascínio - e a surpresa - causado por Eu Sou o Vento esteja relacionado com memórias e ecos de quem viu Solidão nos campos de algodão ou A noite antes da floresta, peças de Koltès que Chéreau encenou e interpretou. Pelo menos em França, onde a peça estreou em Junho, no Théâtre de la Ville. Não foi esse o caso em Inglaterra, onde Fosse é praticamente um desconhecido e onde Chéreau nunca encenara teatro.

Tudo pode acontecer

Há na errância das personagens de Fosse o mesmo tipo de desejo que em Koltès: o desenho de um espaço no interior do espaço teatral, um espaço mais íntimo, para o qual somos convidados através da ligação que existe entre as personagens. Chéreau perguntou a Fosse o que ligava as duas figuras de Eu Sou o Vento e Fosse disse que não sabia, mas que, "ao longo da peça, estavam muito próximas". Neste texto para dois actores, personagens por nomear, figuras à deriva num cenário que os afoga, literalmente.

"Um" e "o outro", assim se chamam as personagens interpretadas por Tom Brooke e Jack Laskey que o texto não indica se são homens ou mulheres, porque aquilo de que falam - um desejo de evasão, de constante procura, de insatisfação pueril e instintiva - não pertence a nenhum género. Tal como Chéreau gosta que seja no teatro: "Dois actores entram em palco e tudo pode acontecer."

"Se me perguntar o que significa tudo isto, não lhe sei dizer. Mas o teatro parece ser importante para as pessoas porque funciona como um lugar onde podem ser ditas coisas que não o podem ser em mais nenhum outro lugar, nem de outra forma. Foi isso que me atraiu em Eu Sou o Vento", explicou quando a peça estreou em Londres. "Um" e "o outro", num barco, a caminho de uma pequena ilha, já molhados, a morte à espera, a vida a seguir, e Chéreau a deixar que as palavras tomem o lugar das acções. Palavras breves que ele diz "ter aprendido a escutar melhor através da musicalidade do próprio texto": "Há uma musicalidade na língua inglesa que não temos [na língua francesa] e é isso que me interessa", disse em Avignon, onde peças francesas feitas numa outra língua são olhadas de soslaio. Mas é Chéreau que se justifica assim: "Tenho um grande prazer em trabalhar numa língua que não é a minha, como o alemão ou o italiano. Às vezes sinto que tenho uma liberdade maior ao trabalhar numa língua estrangeira, mas não sei explicar porquê."

E explica Fosse, e o que lhe interessou na sua escrita, da mesma forma e da mesma maneira, entrevista após entrevista: "É de uma inacreditável vitalidade teatral. O sentido do que é dito muda completamente à medida que vamos lendo e trabalhando. E isso exige uma grande precisão, ao mesmo tempo que permite uma imensa liberdade."

Algo semelhante ao que Chéreau encontra nas leituras que faz. Em Lisboa já vimos, por exemplo, Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky, no Teatro Nacional São Carlos, em 2007, e mesmo A Dor, de Marguerite Duras, que no ano passado esteve no Teatro Nacional D. Maria II, foi, ao início, uma leitura. "Nas minhas leituras fixo-me na língua e no texto. É um exercício sobre a frase, sobre a construção de um sentido, e não apenas a musicalidade de um texto. O que quero dizer é que não trabalho sobre um "estado" ou um "transe". É a articulação do pensamento que me interessa. E, muitas vezes, o que me interessa é uma palavra em específico, não necessariamente a palavra mais importante, mas aquela que dá sentido à frase."

E Chéreau ainda não sabe tudo: "A primeira vez que abordamos um autor produz-se um choque, uma dificuldade de compreensão, é preciso imaginar o que se esconde atrás das palavras." O seu trabalho é, portanto, o de "desembaraçar essas construções precisamente para poder esperar pelo que se esconde atrás das palavras, pelo que não é dito pelas palavras".

Não é que as palavras sejam, por si só, raras nos textos de Fosse. São-no, é verdade, mas apenas porque também elas procuram o seu próprio lugar. É tão importante o que é dito como o modo como está a ser dito. "São palavras essenciais que nos falam da economia da vida e da morte, transportadas por personagens praticamente despidas de psicologia."

O que interessa a Fosse, explica o encenador, "são as relações entre as personagens e não as personagens em si, pois "não é a nossa identidade, mas as nossas relações que preenchem a nossa vida"", diz citando o autor. Chéreau saiu de Avignon de pazes feitas com o seu público. Como se, efectivamente, nunca tivesse partido.

A apresentação de I am the wind/Eu Sou o Vento de domingo no Festival de Almada, prevista para as 16h00, foi alterada para as 19h30. As restantes sessões, em inglês com legendagem em português, mantêm o horário previsto (19h30).

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