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R"n"b narcótico, r"n"b espacial, smooth electro, pouco importam as categorias: The Weeknd é o futuro, ou para lá caminha

Pop

Nuvem de ópio

O futuro é uma "mixtape" de The Weeknd, "House of Balloons". João Bonifácio

The Weeknd

House of Balloons

www.the-weeknd.com

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Podemos inventar categorias para isto, chamar-lhe r"n"b narcótico ou espacial, pouso importa. Certo é que The Weeknd, mesmo movendo-se em terrenos r"n"b clássicos (e raiando por vezes as baladas), é um criador de atmosferas granuladas, cuja marca reside no contraste entre as bases a que recorre e a produção que cria. Quase todas as faixas usam um mínimo de elementos; esse "vazio" é tomado pela "espessura" de cada instrumento, que evita que as canções fiquem em esqueleto; e o recurso a linhas de guitarras, coros e duplos beats que surgem apenas nos momentos necessários afastam "House of Balloons" do típico r"n"b e aproximam-no das aventuras mais futuristas surgidas este ano (Shabazz Palaces ou How To Dress Well, como realçava na semana passada Vítor Belanciano).

No primeiro tomo do díptico "House of Balloons/ Glass Table Girls", The Weeknd usa e distorce um sample de "Happy House" de Siouxsie. Retira as harmonias dissonantes do original e reposiciona melodias em sítios diferentes, adicionando voz em falsete filtrada por auto-tune e um órgão obsessivo. Há novos coros em ascensão. E uma faixa new-wave engraçada torna-se num épico que dá vontade de rasgar cada peça de roupa e fazer amizade com desconhecidas(os). O segundo tomo, "Glass table girls" é explicitamente sobre coca e miúdas, mas não no sentido "a minha pila é maior do que a tua". Há algo de ressaca sem redenção na atmosfera rarefeita da faixa, algo de perigoso, de predador a atravessar névoas de ópio, a redrogar-se para vencer o "come-down"; o beat repenica nos pratos (produção seca, nada metálica), a tarola digital esconde-se e volta como uma taquicardia antipática e há um "uh-uh" que lembra um Michael Jackson que tivesse trocado a Terra do Nunca pela Terra do Sempre no Truca-Truca. Tudo aqui é sujo, minimal, repetitivo, quase doentio. Por duas vezes ele repesca e fragmenta músicas dos Beach House ("The party & the after party" e "Loft music"). Mesmo quando não recorre a bases indie, essa influência parece lá estar. Em "Coming down" há um órgão de chumbo atravessado por um linha de guitarra afiada. Em "Wicked games" a linha de guitarra executa uma subida clássica em confronto com um beat venenoso, a arrastar-se lentamente enquanto as várias melodias se combatem (grande, grande canção). Na estupenda "The morning", é de novo uma figura de guitarra que lança a rede - quando entra o beat de tarola, o tema devém numa tremenda canção r"n"b dormente. Uma nuvem de ópio atravessada pelo sabre de uma guitarra, por falsetes e batidas serpentantes, é assim "House of Balloons". Se isto não é o futuro, está quase a chegar lá.

Brilhantes sem pensar

Dodos

No Color

Wichita; distri. CoOp

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A história do "difícil segundo álbum" já enjoa e mais parece uma desculpa para músicos piegas sem coragem para tomar decisões artísticas consequentes. Faz pensar que, no fundo, o álbum de estreia, momento de sucesso e encómios lançados de todos os lados, é um acidente. No caso dos norte-americanos Dodos, o grande erro foi evidente: "Time to Die" quis tanto ser diferente de "Visiter", quis tanto encher-se de ares de passo em frente e exibir a sua maioridade que, pelo caminho, descarrilou momentaneamente o grupo. Muito por culpa da produção. O viço instrumental - a guitarra acústica que antes soava prestes a saltar das colunas, mais a bateria obsessiva que elevava cada música a um tiquetaque em perigosa contagem decrescente rumo à explosão - foi anestesiado e aquilo que restou foi apenas uma versão bonitinha e polidinha de um grupo que deixara de ser excitante e concorria agora para a normalidade. Em vez de Animal Collective em estado sobreexcitado durante uma falha de electricidade, pareciam um festival para gente cansada.

Graças a uma impecável manifestação de lucidez, os Dodos voltaram ao formato inicial, dispensaram o vibrafonista e a imagem voltou a ficar focada na perfeição, eliminando o borrão em que se tornara. Felizmente, "No Color" não só corrige o desvio de "Time to Die" como pega na herança de "Visiter" e leva-a mais além, num disco que se roça na perfeição como uma gata com cio nas pernas mais próximas. As canções, exultantes, luminosas, rogando para ser ouvidas uma e outra vez, são repetidamente brilhantes, sem que isso acarrete um peso de decisão matemática de regresso ao passado. Tudo soa fácil, simples e absolutamente irresistível. Neko Case, mulher de fogo na voz e no cabelo, dá uma ajuda. Mas nem era preciso. Bastava Meric Long e Logan Kroeber fazerem sem pensar. Gonçalo Frota

Rockabilly em electrocussão

Dirty Beaches

Badlands

Zoo TV Music

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Isto é rockabilly de solos fritados, não cristalinos. Isto é Elvis-zombie atravessando a Route 66 não por sede de sangue e fome de carne, mas porque o cegaram de morte as luzes dos Sun Studios - e ele parte e refugia-se na noite, alma penada mas "cool" como sempre, enquanto o corpo for jovem.

"Badlands", dos Dirty Beaches, é a música de um homem, Alex Zhang Hungtai, inventando um não-lugar na paisagem americana. As suas canções são feitas de uma base minimal de bateria, guitarra, baixo e um piano ocasional avançando em "loop", sobre o qual cai uma voz feita de eco e camadas de ruído, apagando quaisquer vestígios de pureza. Como que clássicos rockabilly em electrocussão: arrancamos com a sofreguidão de "Speedway king", passamos pela luxúria ameaçadora de "Sweet 17" e pela sedução crooner de "Lord knows best", e aterramos, por fim, na desolação do instrumental "Hotel" - chamemos-lhe "gloomywave".

Dirty Beaches transporta o lado negro do rock"n"roll (o minimalismo dos Suicide é referência obrigatória) na mui moderna exiguidade de uma produção "lo-fi" caseira. Procura a incerteza e abre-nos a porta ao mistério.

Estes oito "temas" de "Badlands" não são bem canções - são espectros que se atravessam no nosso caminho e que nos fascinam à sua passagem. Surpreende-nos: e uma guitarra surgirá a meio de "Speedway" ameaçando a segurança da viagem, qual cabo eléctrico descontrolado, serpenteando pelo chão depois de tempestade. Impressiona-nos: a neblina sonora, qual sonoplastia de "sci-fi" de terror, que rodeia a linha de baixo de "A hundred highways" e que transforma a dança em caminhada no fio da navalha. Comove-nos, ainda assim: a voz que se ergue em "True blue", e Elvis ainda é zombie mas ganhou coração de pinga-amor batendo para ninguém. Nunca há ninguém onde a vista alcança em "Badlands". Ouvi-lo é o mais próximo que temos de chegar a esse não-lugar inventado por Alex Zhang Hungtai.

Ouvimo-lo. Estamos encadeados pelos "flashes", sentimos-lhe a respiração. Estamos perto o suficiente. Mário Lopes

A canção-Gulliver

Scott Matthew

Gallantry"s Favorite Son

Glitterhouse; distri. Popstock

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A lógica por detrás de "Gallantry"s Favorite Son" - por muito que o seu autor possa desconhecê-la - é verdadeiramente admirável: porque havemos de ter um Elvis Costello se podemos ter dois? Bravo, Scott, é muito provável que não te tenha passado pela cabeça, mas nós mandámos fazer esta placa de agradecimento na mesma. E o melhor é que Matthew, que vai já no seu terceiro disco a solo, substitui selectivamente Costello. Ou seja, evoca-o com uma evidência estrondosa, mas não traz à memória o casamento do outro com a outra (Diana Krall), nem os resíduos de pub rock que o original às vezes ainda transporta, nem sonha gravar para a Deutsche Grammophon. Não, este segundo Costello que aqui descobrimos é feito de uma massa diferente, é um ser que acredita piamente que uma canção é tão mais bela quanto mais demoradamente for esfregada em alcatrão na altura em que o amor estiver indefeso no chão, a bolçar sangue em pequenos jactos.

Scott Matthew acompanha Cass McCombs ou Perry Blake nessa raça de homens que só imaginamos verdadeiramente felizes a: deprimir a um canto e os lenços de papel já se acabaram ou gabar-se a cada cinco minutos de estar no período mais ruinoso da sua vida (cortar a hipótese que soar menos desesperançada). Oiça-se "Buried alive", perceba-se o desespero que ali vai e interroguem-se os ouvidos se há coisa mais devastadoramente bonita a encandear-nos os sentidos nos dias que correm. Dói só de ouvir, o que fará de cantar.

O único problema de "Gallantry"s Favorite Son" é que não se faz uma canção como "Buried alive" sem consequências. E a consequência, no caso, é apenas esta: a fasquia fica de tal forma exageradamente alta que tudo o que vem em seguida, por mais convincente que possa ser, parecerá sempre condenado ao nanismo musical. Até nem é isso que acontece, mas ao pé uma canção-Gulliver todas são pequenas. G.F.

Clássica

Descobertas da música portuguesa seiscentista

No seu primeiro CD, João Vaz e o grupo Capella Patriarchal revelam a música polifónica de Fernando de Almeida. Cristina Fernandes

Fernando de Almeida

Responsórios de Quinta-feira Santa

Missa Ferial

Capella Patriarchal

João Vaz (direcção)

Althum A004

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O património musical português continua a ter numerosas obras por revelar, merecedoras de estudo e edição em partitura e em disco, e de uma divulgação mais ampla no plano nacional e internacional. O presente CD reúne um conjunto de peças de Fernando de Almeida (ca. 1600-1660), compositor até há pouco tempo quase desconhecido cuja sólida escrita contrapontística e apreciável expressividade retórica lhe garante um lugar de relevo na história da música portuguesa. Natural de Lisboa, Almeida foi aluno do grande polifonista Duarte Lobo. Era frade professo da Ordem de Cristo e foi mestre de capela no Convento de Tomar. Conta-se que D. João V ficou tão impressionado com a sua música que solicitou cópias para a sua Capela Real. Efectivamente, as peças sobreviventes subsistem em três grandes livros de coro com música para a Semana Santa, preparados entre 1735 e 1736 por Vicente Perez Valentino (copista da Igreja Patriarcal) para uso da Capela Real de Vila Viçosa.

O organista João Vaz e a Capella Patriarchal tinham apresentado algumas destas composições em estreia moderna no concerto de Ano Novo de 2010, organizado pela editora Althum e pelo Patriarcado de Lisboa, projecto que resultou na presente gravação. Com a excepção do Responsório "In Monte Oliveti" (registado em 1996, juntamente com uma "Lamentação" e o "Miserere" pelo grupo Capella Portuguesa, dirigido por Owen Rees), as páginas gravadas eram inéditas em disco. O alinhamento inclui os nove Responsórios de Quinta-feira Santa (a oito vozes) e uma Missa Ferial (a quatro vozes), sendo a textura vocal dobrada pelo órgão, de acordo com o uso no século XVII. A gravação (realizada na Igreja de São Nicolau, aproveitando o órgão setecentista) recria a sensação do espaço e a respectiva reverberação, o que confere um especial brilho à sonoridade. A Capella Patriarchal mostra um trabalho de conjunto equilibrado e oferece-nos uma interpretação plena de convicção expressiva, veiculando de forma eficaz os ricos contrastes texturais da música, mas sem os enfatizar em demasia e sem cair em exageros na exploração da retórica madrigalística inerente ao discurso. O CD é objecto de uma imagem gráfica cuidada e de esclarecedoras notas musicológicas da autoria de João Pedro d"Alvarenga.

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