Casa em Trastevere com vista sobre a solidão

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Há 30 anos que os vê ali, homens de 60 anos, sentados, que penduraram a vida no guarda-fatos e passaram a vestir fato de treino, a usar óculos escuros e a calçar ténis. Filmou-os. Mas não conseguiu que abandonas-sem as cadeiras de plástico para se deslocaram à sala e verem o filme

Fez a catarse como filho que deixou de viver por causa da mãe, e isso deu sucesso - e prémio em Veneza - a "Almoço de 15 de Agosto". Agora Gianni Di Gregorio solta Gianni em Trastevere, "Gianni e as Mulheres", a ver se ele consegue viver. A comédia, generosa e instintiva, continua contra a corrente. Vasco Câmara, em Roma

Há 30 anos que os vê ali, homens de 60 anos, sentados, que penduraram a vida no guarda-fatos e passaram a vestir fato de treino, a usar óculos escuros e a calçar ténis - para ficarem, no tempo que lhes sobra, invisíveis, que é como se sentem. Gianni Di Gregorio disse sempre: "Um dia tenho de fazer um filme sobre eles". Agora que fez "Gianni e as mulheres", onde os filmou exactamente nessa posição - sentados, de óculos escuros... -, não conseguiu que eles abandonassem as cadeiras de plástico do passeio do Vialle Glorioso, em Roma, para se deslocaram à sala de cinema. "E eu até lhes disse: "Pago-vos o bilhete". Mas não consegui."

Gianni Di Gregorio via-os sempre, ainda os vê, do andar do seu apartamento no Trastevere romano. (Ainda esta semana os vimos, hoje ainda devem lá estar.) Vê-los foi uma forma de olhar para si próprio, que também é sexagenário. "Sinto verdadeiramente esse problema, essa coisa que é o envelhecimento e as mulheres não olharem mais para nós. Trabalhei esta ideia na minha cabeça durante um ano", logo à seguir à estreia, à promoção e ao sucesso da sua primeira realização, "Almoço de 15 de Agosto" (2008), conta. Foi, aliás, nesse movimento, a que a promoção de "Almoço de 15 de Agosto" o obrigou, de sair da rotina e do quotidiano - da sua "ilha", o Trastevere - para conhecer o mundo, que este homem que sempre esteve dentro do cinema para todo o serviço (foi assistente, serviu café às equipas no "plateau", foi um dos argumentistas de "Gomorra", de Matteo Garrone...), mas que só se estreou como cineasta aos 60 anos, se deu conta de uma coisa traumática: "Já não sou jovem. Não há mais o jogo de olhares, na rua, com as mulheres. Elas já não olham para mim".

Uma ilha

E foi assim que enfrentou o medo do segundo filme - o que fazer a seguir ao sucesso de "Almoço de 15 de Agosto"? Depois da catarse dos anos em que, no passado, suspendeu a sua vida para tratar da mãe (era sobre isto, o filme: um homem fica sem vida por causa de uma "mamma Roma"), eis uma catarse do presente. Continuando a biografar a personagem de Gianni, que é ele próprio, Gianni - sem a vertigem de uma "persona", por exemplo, como faz Nanni Moretti.

Veja-se quem aparece, no dia em que Di Gregorio recebeu o Ípsilon, no apartamento de Vialle Glorioso (que pertenceu à mãe, e onde filmou a comédia em "huis-clos", "Almoço de 15 de Agosto", rodeado de velhinhas por todos os lados): a cadela Nica ("pequena", em dialecto siciliano), a mesma com que Gianni se passeia em "Gianni e as Mulheres"; a filha Teresa, que faz de filha de Gianni em "Gianni e as Mulheres", e que se assume orgulhosa do sucesso (tardio, mas sucesso) do pai, perdoando-o por ter sido obrigada a deixar o conforto do apartamento para ali entrar uma equipa de cinema... Já a mãe, com quem Gianni viveu nesta casa, morreu em 2000, mas continua presente na vida do filho, "agigantando-se" de cada vez que Gianni escreve uma linha de argumento. Ele levanta os braços: ela ainda está "aqui". E volta a estar "presente" em "Gianni e as Mulheres", interpretada de novo pela amiga da família Valeria De Franciscis. "Eu queria só escrever um pequeno papel, mas, de cada vez que escrevo sobre ela, a coisa começa a crescer... Tenho uma amiga, psicanalista, que me diz: "A tua mãe não morreu, a tua mãe está viva"".

Há um movimento, entre "Almoço de 15 de Agosto" e "Gianni e as Mulheres", e isso é sinal de que Gianni quer fazer purga e não se submeter ao trauma. O primeiro era o filme de um filho, um homem de 60 anos que foi dominado, durante 15 anos, pela mãe, e que é um ser emasculado - nunca se falava da vida emocional e sexual de Gianni, alguém lhe perguntava se ele gostava mesmo de mulheres, mas não se ia além disso. No novo - o dobro do orçamento, mas a mesma estrutura familiar e um filme, para todos os efeitos, "pequeno", para se "manter a liberdade" -, Gianni quer dar a Gianni uma vida normal, fazê-lo sair do apartamento para o exterior. "É isso, e esse movimento é em direcção aos sentimentos. A pensar em todos os homens da minha idade."

Do apartamento para o Trastevere, bairro romano que já foi popular, mas que agora é "chic". Di Gregorio tem visto a mudança, cresceu, viveu sempre ali. "Agora está cheio de estrangeiros e turistas. Mas, apesar disso, ficou aqui alguma coisa de uma aldeia. Um estrangeiro que venha viver para aqui, dois ou três dias depois já é conhecido nos cafés. De repente sente-se integrado. A atmosfera ainda é humana. Não se sente a vida frenética da cidade."

É claro que os cinemas de bairro aqui já foram à vida, como aquele Cine America que em tempos deve ter arregalado os olhos para o grande ecrã. Dos EUA ouve-se agora um bruá menos paradisíaco, as vogais abertas a exibirem-se nas esplanadas onde desfrutam a vida os residentes estrangeiros. Mas a melancolia é fantasmagórica, os tempos que não voltam mais ainda pairam, como o cinema de que Gianni Di Gregorio é cultor instintivo: está-lhe "no ADN", como ele diz, a "comédia à italiana", e Mario Monicelli é a referência mais querida, "é um padrinho". Naqueles homens que passeiam cães ou se sentam em cadeiras de plástico, esquecidos pelo tempo e sem fazerem nada contra o tempo - "é a solidão, é a imagem do tempo que passa" - está uma "ilha" que é o cinema de Gianni Di Gregorio e está uma cinematografia que se esqueceu, tragicamente, de si própria; está uma comédia humana instintiva, de outro tempo, rodeada do fetichismo do "entertainment" televisivo de hoje por todos os lados.

Rir é a terapia

"A mim agradam-me as pequenas histórias, narrar. E dar-lhes universalidade. Acredito que a velha "comédia à italiana" era isso. Falava do mundo, das pessoas, com auto-ironia, com a capacidade de olhar para dentro. Nos últimos anos o cinema em Itália tornou-se superficial, demasiado entretenimento sem reflexão. Vinte anos de televisão em Itália mataram a cultura cinematográfica." A filha, Teresa, que prepara o pequeno-almoço, encolhe os ombros, concordando com o panorama de terra-queimada: há um património que os que têm a idade dela apenas arrumam na gaveta dos "filmes a preto e branco."

"Quando eu era jovem", continua Gianni, "havia todo o género de filmes nos cinemas, havia "westerns" e também os filmes dos "mestres". Hoje, em Itália, isso não é possível. Mas ainda o é em Paris. Gosto disto: cinema muito simples que procura algo de mais universal e profundo. É preciso alguma coragem para termos ironia em relação a nós próprios. Talvez seja esse o segredo do meu cinema." A palavra que ele emprega mais, nesta altura: "terapia".

"Depois de ter feito um filme como terapia do passado, eu, a minha mãe e as amigas dela ["Almoço de 15 de Agosto"], "Gianni e as mulheres" é uma tentativa de auto-terapia do presente. Quando filmo tento libertar-me do meu património. E é porque trabalho com coisas que são fortes para mim e que tenho necessidade de dizer que o filme pode ser interessante."

Percurso atípico, o deste homem. Dos cafés para as equipas de cinema, daí para argumentista (embora ele diga, rindo-se, que, tendo preferência pela "comédia humana", tudo o que tentava por aí foi sendo apagado de "Gomorra", o filme de Garrone). Por causa de "Mean Streets", de Martin Scorsese, quis ser cineasta. Não há nada de "Mean Streets", já agora, no projecto sobre velhos, em que ninguém quis pegar a não ser Garrone, que o produziu, e foi um sucesso e teve um prémio no Festival de Veneza que é atribuído aos estreantes. Gianni, ajude-nos a completar o "puzzle"...

"Amo todo o tipo de cinema, o cinema de autor e o cinema de género. Tenho uma natureza dúplice, sou um intelectual e um operário. E sou, intimamente, um cómico. Quando escrevíamos "Gomorra", éramos seis. É muito bom escrever em conjunto. Sempre que as coisas ficavam muito dramáticas, eu escrevia algo para fazer rir. Era sempre riscado. Tive uma educação muito formal. Era filho único. Numa casa antiga, esta" - e aponta. "A minha defesa perante a solidão e o sofrimento era a ironia. Era rir. Acredito que nunca farei um filme inteiramente dramático. Farei sempre filmes cómicos, mas onde se veja o sofrimento" - a máscara no rosto de Gianni Di Gregorio é a de um "clown" triste.

Sobre o que fará a seguir, não sabe ou não quer ainda dizer, mas põe a hipótese de Gianni acabar o trabalho com Gianni. Reconhece que o medo que se instalou nele é maior agora do que aquele que apareceu entre o primeiro e o segundo filme. "Agora é mais difícil, tenho mais medo, depois das reacções da crítica e do público, do que antes. Não sei, por exemplo, se devo continuar a explorar mais a personagem. Porque queria libertar-me da minha biografia. Gostaria que, no próximo filme, eu fosse apenas o realizador, sem ser actor. Queria encontrar um alter-ego. Seria uma forma de mudar: com outro rosto."

Gianni ou Gianni? "São a mesma pessoa. Espero que Gianni, ou seja, eu, melhore a sua vida. A minha vida é mais bela, hoje, porque tenho a alegria de saber que os meus filmes vivem e agradam. Se não tivesse feito esses filmes, estaria do lado da realidade triste. A possibilidade de rir das minhas fraquezas e com isso fazer rir os outros é uma hipótese de salvação."

No passeio de Vialle Glorioso, os homens de óculos escuros não se mexeram.

Ver crítica de filme págs. 44 e segs.

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