Bosch há muitos, mas poucos são como As Tentações

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O Juízo Final

São três os clubes em que a obra de Jheronimus Bosch se inscreve. Na exposição que abre amanhã no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, estão três trípticos que pertencem ao mestre flamengo e ao seu círculo, num confronto que quer levar os visitantes a descobrir as diferenças. Boschs há muitos, mas nem todos são do "clube dos ricos".

A operação é complexa. Uma viagem de três dias e dois mil quilómetros, empresas especializadas no transporte de obras de arte, seguranças armados, um courrier ansioso, duas conservadoras meticulosas, um comissário atento e dois trípticos com centenas de anos protegidos por caixas à prova de choque e de fogo. Segunda-feira de manhã no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, dia marcado para a montagem de Confrontos: Bosch e o seu Círculo. A exposição, que é inaugurada amanhã ao fim da tarde, mostra em Lisboa duas obras ligadas ao universo do mestre flamengo que pertencem à colecção do Museu Groeninge, de Bruges, e quer levar os visitantes a pensar no seu processo criativo e no dos que nele se inspiraram.

O Tríptico do Juízo Final (primeira metade do século XVI) e o Tríptico das Tribulações de Job (segunda) vão entrar em diálogo com o Tríptico das Tentações de Santo Antão (c. 1500), peça fundamental da colecção do Museu de Arte Antiga, mas sem procurar comparações exaustivas.

"O Juízo Final tem figuras coincidentes com o nosso Bosch, ao passo que As Tribulações de Job têm, na aba do lado esquerdo, umas tentações de Santo Antão", explica José Alberto Seabra Carvalho, conservador de pintura do MNAA e comissário desta pequena exposição que termina a 25 de Setembro. "Mas, mais do que as semelhanças na iconografia, interessa-nos analisar os aspectos criativos das obras, as declinações que evidenciam, as diferenças na qualidade da pintura. Tudo isto nos ajuda a perceber que nem tudo é Bosch."

Steven Kersse, o courrier que acompanhou o transporte das obras do museu belga para o MNAA, com paragem em Paris e Bilbau, sabe bem que isso é verdade. Há já nove anos que viaja pelo mundo - Europa, EUA, China - zelando para que nada aconteça às pinturas dos mestres flamengos que o Groeninge empresta com frequência. Já fez milhares de quilómetros de avião e de camião, mas garante que a ansiedade no momento da abertura das caixas que transportam os quadros à chegada aos locais onde serão expostos nunca desaparece. "São obras com 500 anos e a responsabilidade é enorme. Durante o transporte podem acontecer muitas coisas e qualquer alteração brusca nas condições em que viajam pode provocar danos irreparáveis", diz ao P2. Os dois trípticos vêm em caixas especiais, desenhadas para manter um ambiente constante, e devem ser expostos numa sala com a temperatura entre os 18 e os 20 graus Celsius e a humidade do ar entre os 50 e os 55 por cento. É por isso que, tendo entrado no MNAA no sábado, só foram abertas na segunda-feira, para que as obras se aclimatizassem.

"Os maiores riscos acontecem quando pegamos nas obras para as tirar da caixa, pondo-as depois nas mesas em que são analisadas e nas paredes", acrescenta o courrier, já com as luvas brancas calçadas e preparado para pegar numa das "asas" (é assim que chama aos painéis laterais) d"O Juízo Final, tríptico que viaja aberto devido a problemas na moldura.

Na mesa, à espera da obra, estão Susana Campos e Teresa Serra e Moura, especialistas em conservação e restauro do MNAA. Com Kersse inspeccionam as pinturas com uma lanterna, procurando eventuais danos que não venham identificados nos documentos que acompanham as obras, mistura de bilhete de identidade e relatório forense. As técnicas do MNAA vão apontando pequenas mossas, repintes e lacunas na camada cromática, uma delas no painel central d"O Juízo Final, composto por duas tábuas. É precisamente nessa junção que a pintura apresenta alguns problemas. "Esta zona era a que mais me preocupava", admite Kersse. "A linha que as divide é uma zona de risco. A tinta pode saltar porque a madeira é um material vivo, mexe-se."

Tudo em ordem. O courrier suspira de alívio, depois de repetido todo o processo com o Tríptico das Tribulações de Job, restaurado há três anos em Bruxelas. "Estas pinturas estão, no geral, muito estáveis, as molduras é que têm problemas."

Debate clássico

Ter estas pinturas ao lado d"As Tentações no MNAA foi a contrapartida do empréstimo de um quadro do alemão Albrecht Dürer (1471-1528) para a exposição De Van Eyck a Dürer (Outubro 2010-Janeiro 2011), no Groeninge, revela Seabra Carvalho, defendendo que reuni-las alimenta um debate clássico da história de arte que parte da pergunta "Afinal, o que é que Bosch pintou?".

"Boschs há muitos", já dizia o espanhol Felipe de Guevara [autor do tratado Comentarios de la Pintura] na segunda metade do século XVI. É preciso estudá-los e aprender a distingui-los usando a ciência, a tecnologia, mas também as fontes históricas relacionadas com o pintor e o seu tempo. Sabemos, por exemplo, que o rei Filipe II era um grande amante de Bosch e isso explica por que razão o [Museu do] Prado tem uma colecção tão boa, com mais de metade dos Boschs autógrafos do mundo [O Jardim das Delícias e O Carro do Feno, por exemplo]", explica o conservador.

Os "autógrafos" a que Seabra Carvalho se refere pertencem ao primeiro de três "clubes" em que se podem categorizar as obras que de Jheronimus Bosch (1453?-1516) e do seu círculo.

"Neste clube restritíssimo, o clube dos ricos, estão as obras pintadas por Bosch, de que apenas um tríptico, que desapareceu, está devidamente documentado. As Tentações de Santo Antão fazem parte destas obras de excelência que demonstram uma imensa qualidade de execução e um imaginário muito singular."

Depois vêm as que, à semelhança d"O JuízoFinal de Bruges, são atribuídas à sua oficina, eventualmente com uma intervenção sua, mas em que Bosch não foi o pintor-protagonista. "São obras que usam os seus modelos ainda em vida do pintor. Podemos até supor que alguns destes funcionariam como moldes, mas não há certezas. São executadas por pintores que o conheceram, que foram seus colaboradores."

No terceiro grupo, em que se inscrevem As Tribulações de Job, encontramos pinturas de continuadores e imitadores que tiveram acesso às suas obras, não aos seus modelos, e que vão desde o século XVI ao século XX, levantando mais tardiamente questões relevantes em relação à cópia.

"Temos um dos seis melhores Boschs do mundo. Bosch é um pintor de grandes trípticos e não há muitos grandes trípticos", garante: "É notável a sua capacidade para combinar num microcosmo - As Tentações são uma representação alegórica do mundo -a subtileza de formas com a modelação da luz. Neste tríptico evoca de forma fortíssima os quatro elementos, num exercício em vórtice que nos deixa sempre algo para mais tarde."

Herança do pintor

Aproveitando a exposição do MNAA, uma equipa do Bosch Research & Conservation Project (BRCP), estrutura criada para estudar a obra do mestre flamengo e fazer o seu catalogue raisonée, estará em Lisboa entre 5 e 12 de Setembro para fotografar e analisar As Tentações e O Juízo Final, trabalhando à vista dos visitantes do museu. Segundo o BRCP, a herança do pintor é hoje composta por 45 pinturas e desenhos, espalhadas por dois continentes, dez países (nove europeus e os EUA), 16 cidades e 18 colecções.

Este corpo de obras pode agora surpreender graças a uma investigação científica que vai incluir reflectografia de infravermelhos e cujas conclusões deverão ser apresentadas em 2016, no 5.º centenário da morte do pintor. Seabra Carvalho espera que esta técnica usada para aceder ao desenho subjacente, aplicada no tríptico de Lisboa há dez anos sem que, segundo os especialistas, as conclusões fossem substancialmente diferentes das apresentadas por um estudo publicado em 1972, dê mais nitidez à informação que já existe sobre o processo criativo em Bosch.

"Sabemos que há coisas de que desistiu, que começou por desenhar mas não chegou a pintar ou que, pintando, depois fez desaparecer ou transformou noutras. Mas era óptimo que o novo estudo tornasse todos estes dados mais claros e interpretáveis, permitindo definir com mais exactidão o paradigma da mão de Bosch: a forma como se sobrepõem ou justapõem as figuras, como se relacionam entre si todos os monstros e diabos."

Nascido numa família de pintores - o avô, o pai, os tios -, Bosch é autor de uma obra altamente edificatória, cheia de referências aos "atletas da fé" que tudo suportam apesar de estarem sempre rodeados do Mal, visível em figuras grotescas e situações cruéis ou escatológicas. Job é um deles, tal como Santo Antão e S. Jerónimo, presentes em Confrontos: Bosch e o seu Círculo.

Steven Kersse gosta do mestre e do seu imaginário. Mas, ao contrário dos que Bosch pintou, os seus demónios não são alados, existem sob a forma de eventuais roubos ou acidentes de viação. Em Setembro ele regressa a Lisboa para levar os trípticos para casa.

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