Eu, por mim, não!

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Um país, uma nação, uma comunidade unida por factores comuns como a língua, a história, a cultura, é lixo?

1. Será que podemos pedir ao Governo que afinal não cobre um imposto extraordinário sobre o rendimento do nosso trabalho em 2011, como pensam fazer no final do ano? É que, ao que parece, as intenções que levam a tal sacrifício, em Portugal, não são entendidas pelos seus destinatários, as agências de rating.

O novo Governo do PSD e do CDS, chefiado por Pedro Passos Coelho, até fez uma profissão de fé neoliberal, prometeu e já começou a ir mais longe do que a receita neoliberal determinada no memorando assinado por Portugal com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. Foi, assim, mais papista do que o Papa.

Registando, sem comentar, a facilidade e a rapidez com que as opiniões sobre este assunto mudaram em Portugal - apenas pergunto: então agora já não é preciso "acalmar os mercados"? -, aparentemente porque mudaram os partidos no Governo, confesso que a decisão da Moody"s de baixar o rating de Portugal era, para mim, expectável. O capitalismo financeiro não vive de boas intenções e, na guerra entre o dólar e o euro, não se deixa impressionar por profissões de fé ideológicas, por muito que elas estejam de acordo com cânones por que se rege o próprio sistema, desde que elas não sejam suficientemente úteis e não dêem o lucro pretendido. E a Moody"s segue as regras e quer mais e mais. E é preciso que a venda do património empresarial público que vai começar seja feita a verdadeiro preço de leilão.

Isto porque há coisas que não mudam e a história mostra-o. A essência do capitalismo, o que o move nas suas várias etapas, desde o seu início no século XIV, é o lucro. E a sua evolução na obtenção de formas de o engrandecer foi feita em combate com as forças que o tentaram regular: os Estados. É por isso que é permanente a guerra entre a "liberdade do mercado" e a sua regulação pelos Estados, a disputa pelo predomínio entre o poder político e o poder económico, a luta entre os vários momentos do liberalismo económico (renascido há trinta anos e rebaptizado de neoliberalismo) e as várias formas de estatismo, de esquerda ou de direita, democratas ou ditatoriais. É por isso que historicamente cabe ao capitalismo, e não só ao actual capitalismo financeiro, defender e aumentar as formas de obter lucro, bem como cabe aos Estados defender o interesse das populações - de formas mais ou menos democráticas, com soluções mais à esquerda ou mais à direita -, de modo a que haja equilíbrio na sua exploração pelo capitalismo e na defesa de algum bem-estar. E evitando-se assim o que se convencionou chamar de capitalismo selvagem.

Há uma coisa que a história também ensina e é que, para que haja lucro, é preciso que haja consumo, para que haja consumo, é preciso que haja produção e poder de compra e, para que isto exista, é necessário trabalho, que é a base do sistema, tal como o fim é o lucro. E, para que o sistema funcione, é preciso que quem trabalha seja pago para poder consumir aquilo que é produzido pelo seu trabalho. Ou então regressamos à escravatura. Ou seja, é pelo salário que recebe pela venda da sua força do trabalho que a população mundial tem assegurado o lucro do capitalismo. Quer pelo que recebe e gasta a consumir os produtos produzidos, quer, claro, através do que não recebe por ser pago abaixo do nível do que produz. Acresce a esta forma clássica, uma outra fonte de lucro, o do investimento não produtivo, o dos rendimentos no que se chama o mercado financeiro, e que é ele mesmo essencial à actual fase de capitalismo financeiro.

O lembrar destas evidências sobre o sistema serve aqui para situar a pergunta: como é possível alguém acreditar que é baixando drasticamente o poder de compra das populações e impossibilitando o estímulo do funcionamento da economia grega ou portuguesa ou irlandesa que se ultrapassa o bloqueio a que chegou o crescimento económico?

Até quando teremos que esperar que a União Europeia, como um todo, perceba que tem de encontrar novas regras de funcionamento e reinventar a forma de cumprir o seu papel histórico enquanto poder político e regulador do sistema, para conseguir equilibrar a sua relação de forças com o poder económico e financeiro? Quando vai a União Europeia retomar o seu papel de representante política das suas populações? Vai esperar que o euro rebente? Ou mesmo que a própria União colapse? Será assim tão grande a sua falta de autonomia em relação ao capital financeiro?

2. Há um aspecto desta situação - meramente simbólico, admito - que me faz uma impressão danada. Será que nenhum representante político português estranha - já não digo indigna-se, apenas estranha - a expressão "Portugal é lixo"? Que valores regulam hoje a sociedade portuguesa que permitem que ninguém reaja a esta expressão? Provavelmente vou ser acusada de nacionalista - o que até me faz sorrir -, mas, caramba, ninguém reage à ideia de Portugal ser lixo?! Um país é lixo por decisão de uma empresa privada?! Um país, uma nação, uma comunidade unida por factores comuns como a língua, a história, a cultura, por aquilo que se convencionou chamar a unidade nacional de uma população, é lixo? Será que aceitamos todos ser atirados para o caixote do lixo? Eu, por mim, não!

3. Maria José Nogueira Pinto é, para mim, uma pessoa especial. Por múltiplas razões, públicas e privadas, que não importa aqui referir. Destaco duas características: a sua noção de serviço público e a sua capacidade de a ele se dedicar. Ao longo de quase duas décadas, tive o privilégio e o prazer de com ela conversar e de frontalmente discordarmos sobre imensíssimas coisas. É bom saber que se pode discordar de alguém e encontrar nessa pessoa sempre uma inteligência fina, uma honestidade intelectual e uma ironia rara - sempre adorei a forma como sabia rir. A Maria José, para mim, era assim: uma pessoa com quem dava imenso gozo conversar. Por isso, a Maria José vai fazer-me falta. Jornalista (sao.jose.almeida@publico.pt)

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