A voracidade de um nome

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Na página anterior: FRANCOIS GUILLOT/AFP

Numa viagem com Robert Rauschenberg descobriu a Itália. Nunca mais deixou de pintar os mitos e os crimes de deuses e homens. Um dos poucos que ajudaram a que a pintura sobrevivesse às várias mortes anunciadas ao longo do século XX. Também se interessou por Fernando Pessoa, dedicando-lhe várias esculturas. Pintor, escultor e fotógrafo, Cy Twombly morreu terça-feira, em Roma.

Num excerto de A Mão do Oleiro (Relógio D"Água, 2011), Rui Nunes descreve a sua recente e ofuscante descoberta da obra de Cy Twombly: "Cy Twombly. Resta-lhe o nome. Que a manhã descobriu. O nome dessa manhã. Com as tílias no terraço, e uma criança a escrever na terra. Cy?: perguntei-lhe. E ela bateu-me nos dedos com a vara. Por todo o lado esse nome: Cercava-o. E uma mulher, junto à porta, a olhá-lo. Que quer da miúda? Não compreenda a voracidade de um nome. Daquele. Riscos, garatujas, borrões. Desvios. O ocre da falésia. E em baixo, o azul martelado do vento. O vidro: uma escultura./ Cy."

Rui Nunes vive parte do ano em Sankt Pölten, na Áustria. O artista norte-americano Cy Twombly, que morreu na terça-feira, aos 83 anos, também adoptou outro país, a Itália, como lugar de eleição. A escolha tem como origem uma viagem de oito meses realizada em 1952-53, na companhia de Robert Rauschenberg, que também passou por Espanha e Marrocos, onde se encontraram com Paul Bowles. Foi contudo em Roma que Twombly se sentiu em casa: quando chegou à cidade, foi directamente visitar o museu de pré-história e etnografia Luigi Pigorini, onde sabia existir uma importante colecção de artefactos africanos, tornando-se estes objectos numa referência determinante do seu trabalho escultórico.

Realizada depois da passagem por um das instituições de ensino artístico mais relevantes do século XX, o Black Mountain College (BMC), onde chegou em 1951, encorajado por Rauschenberg, essa viagem produziu em Twombly um efeito duradouro. Até à sua morte, o artista não mais deixaria de se relacionar com as culturas produzidas no âmbito da Antiguidade clássica (Roma e Grécia), das civilizações pré-clássicas (Mesopotâmia) e do continente africano. É no BMC que Twombly, influenciado por professores como o compositor John Cage, o poeta Charles Olson e os pintores Franz Kline e Robert Motherwell, consolidará a sua linguagem plástica, nomeadamente a importância dada não só ao gesto caligráfico, materializado em riscos, grafitos e manchas, mas também às relações entre a palavra e a imagem - o ambiente multidisciplinar do BMC potenciava esta via de trabalho, incentivando também à constante experimentação quer de formas, quer de materiais.

Edwin Parker Twombly nasceu em Lexinton, Virgínia, nos Estados Unidos, a 25 de Abril de 1928. Aos 14 anos, frequenta as aulas do pintor espanhol Pierre Duara, que chegara à cidade vindo de Paris, tornando-se na primeira referência do artista. Nos seus anos de formação, Cy Twombly será ainda influenciado pelo expressionismo alemão, pelo movimento dadá, por Kurt Schwitters, Chaïm Soutine e ainda Alberto Giacometti e Jean Dubuffet - nestes dois casos, o contacto com o trabalho aconteceu através de reproduções em revistas. Foi em 1950, em Nova Iorque, que conheceu Rauschenberg, nome com a qual partilhou as inquietudes inerentes aos anos de aprendizagem. Ambos frequentam o semestre do Verão e Inverno de 1951, no BMC, na Carolina do Norte, um período que teve como artistas residentes Motherwell e Ben Shahn. Nesse mesmo ano, Twombly realiza a sua primeira exposição individual, na The Seven Stairs Gallery, em Chicago, onde mostrou as pinturas produzidas no BMC. A esta mostra, sucede uma outra na nova-iorquina Kootz Gallery, a convite de Motherwell, que não tardaria a apontá-lo como "o mais talentoso jovem pintor e um dos mais "naturais" artistas da sua geração".

A viagem com Rauschenberg, com uma bolsa do Richmond Museum of Fine Arts, levou-o de Roma até Marrocos, onde passou o Inverno de 1952/53, voltando depois à capital italiana via Madrid e Barcelona. É no regresso a Itália que Twombly realiza, na Galleria d"Arte Contemporanea, em Florença, uma exposição de tapeçarias de parede feitas em Tânger e Tetuão, nas quais eram visíveis padrões geométricos inspirados em trabalhos de Joseph e Anni Albers, nomes fundamentais da Bauhaus e professores no BMC até 1949 - no catálogo da retrospectiva dedicada ao artista pelo Museum of Modern Art (MoMA, Nova Iorque, 1994), com curadoria de Kirk Varnedoe, encontram-se imagens de trabalhos perdidos, realizados por Rauschenberg e Twombly durante o seu périplo. Uma outra curiosidade é apontada no texto do comissário, que refere que, em 1954, já nos Estados Unidos, enquanto cumpria o serviço militar, Twombly produzia, de olhos fechados, em sucessivos fins-de-semana passados num quarto de hotel em Augusta, Geórgia, um conjunto de desenhos automáticos nos quais é possível ver a origem de um dos elementos essenciais do seu léxico visual: o grafito.

Metamorfoses

Cy Twombly regressa a Itália em 1957. Aluga primeiro, durante os meses de Julho e Agosto, uma casa na ilha de Procida, no golfo de Nápoles, mudando-se no Outono para Roma, onde arrenda, junto do Coliseu, um apartamento no qual pinta alguns trabalhos onde já é visível a que virá a ser a sua imagem de marca: sobre um fundo branco, possível de ser associado à representação de uma parede ou de um muro, inscrevem-se apressados rabiscos, linhas, manchas, grafitos, símbolos, números e palavras, estas muitas vezes relacionadas com a cultura clássica, evocada em muitos títulos das obras criadas pelo pintor, como Olympia (1957) ou Arcadia (1958). Nessa época, publica no jornal L"esperienza moderna, um texto onde descreve o seu processo de trabalho, um documento raro, pois, até ser entrevistado em 2000 pelo crítico de arte David Sylvester, foram escassas as declarações de Twombly: "Cada linha é agora a experiência actual com a sua história inata. Não ilustra - é a sensação da sua própria realização."

A primeira exposição romana do artista tem lugar em 1958, na Galleria La Tartaruga. Na Primavera desse ano, Twombly regressa a Nova Iorque, para aí se casar com a aristocrata Tatiana Franchetti, irmã do barão Giorgio Franchetti, galerista e coleccionador. Em Dezembro, em Roma, irá nascer o filho do casal, Cyrus Alessandro, que também se tornará pintor. Um outro marco de carreira é a primeira exposição, em Outubro de 1960, na galeria Leo Castelli, em Nova Iorque, revelando a introdução de uma inesperada diversidade cromática nas suas obras - as tintas aplicadas sobre a tela ganham também espessura. Na capital italiana, aluga um estúdio na Piazza del Biscione, onde trabalhará durante cinco anos: aí é concebido o escatológico ciclo de pinturas Ferragosto (1961) - título inspirado no dia em que se comemora a Assunção de Maria -, e as diferentes variações de Escola de Atenas (1961, 1964) e de Leda e o Cisne (1962, 1963).

A cultura clássica, uma fonte de inspiração recorrente, está também na base na série de pinturas Nine Discourses on Commodus, datada de 1963 e revelada, no ano seguinte, numa polémica nova exposição na galeria Leo Castelli. O ciclo foi realizado enquanto o artista lia Alain Robbe-Grillet, autor ligado ao "novo romance", e via obras de Francis Bacon. A figura que inspirou os trabalhos de Twombly é o imperador Lúcio Aurélio Cómodo Antonino (161-192), que tinha uma especial apetência por espectáculos violentos. Este tirano está igualmente ligado à instabilidade que virá ter como consequência o declínio e queda do Império romano - a sua morte foi perpetrada por um lutador chamado Narciso, que o estrangulou durante o banho. A crítica à mostra veio sobretudo de autores ligados à então nascente corrente minimalista; Donald Judd chegou mesmo a afirmar que a exposição da Leo Castello era "um fiasco" - o conjunto de telas foi adquirido, em 2007, pelo Museu Guggenheim de Bilbau; sendo a Cy Twombly Gallery, edifício desenhado Renzo Piano para a Menil Collection, em Houston, Texas, outro espaço essencial para descobrir a obra do artista.

Um dos textos mais significativos escritos acerca da obra de Twombly foi escrito por Roland Barthes - outro é do filósofo italiano Giorgio Agamben, publicado no catálogo de uma mostra de esculturas realizada na Antiga Pinacoteca de Munique, em 2006 - e publicado no catálogo de uma mostra antológica de pinturas e desenhos do artista, no Whitney Museum of American Art, em 1979. Logo na abertura do ensaio, lê-se: "Sejam quais forem as metamorfoses da pintura, sejam quais forem o suporte e o quadro, deparamo-nos sempre com a mesma questão: "o que está a acontecer ali?" Quer lidemos com tela, papel ou parede, lidamos com uma cena onde algo está a acontecer (e se, em algumas formas de arte, o artista deliberadamente pretende que nada aconteça, mesmo isso é um acontecimento, uma aventura)." Mais adiante, dizendo ser seu propósito relacionar a obra do pintor com aquilo que constitui um acontecimento, o semiólogo francês nota: "O que acontece na cena proposta por Twombly (tela ou papel) é algo que participa de vários tipos de acontecimento, que os gregos sabiam diferenciar muito bem no seu vocabulário: o que acontece é um facto (pragma), uma coincidência (tyché), uma saída (telos), uma surpresa (apodeston) e uma acção (drama)", numa versão adaptada do texto traduzido por ocasião da 23ª Bienal Internacional de S. Paulo.)

Na exposição de Munique, que era formada por esculturas criadas entre 1992 e 2005, era possível confirmar não só a qualidade excepcional do trabalho de Twombly nesta disciplina - e quase todas as peças, de um extremo informalismo, são cobertas pela brancura do gesso -, mas também a sua íntima relação com a escrita, podendo ver-se nas obras inscrições onde se citam poemas de Cavafy ou se evoca Fernando Pessoa, como em (To F.P.) The Keeper of Sheep, de 1992, ou em Untitled (In memory of Álvaro de Campos), de 2002, na qual se pode ler o primeiro verso de A Passagem das Horas. Texto que também pode servir de epitáfio a Cy Twombly, escultor, pintor, fotógrafo, que, iniciando o seu percurso no âmbito do expressionismo abstacto norte-americano e da arte informal europeia, soube ir em busca do passado para o mudar em trabalhos intemporais:

"Sentir tudo de todas as maneiras,

Ter todas as opiniões,

Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,

Desagradar-se a si próprio pela plena liberdade de espírito, e amar as coisas como Deus."

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