Ideóloga, frontal e uma combatente desassombrada

Reagia à adversidade com ironia e coragem. Fazia política com um prazer que transbordava e uma convicção que impressionava. Argumentava politicamanente com uma segurança ideológica e cultura, que demonstravam uma solidez rara. Assumidamente de direita, nacionalista e estatista, cumpriu a sua missão pública até ao fim.

Introduziu Walt Disney na política portuguesa ao afirmar, em 1998, quando se candidatou à presidência do CDS, que ganhava a eleição até "ao Rato Mickey". Acabou por perder para Paulo Portas. Mas lutou até ao fim em congresso, com a mesma frontalidade, vigor e ironia com que viveu toda a vida, uma atitude de combate público, adoçada pelo seu diminutivo de criança, Zezinha. Maria José Nogueira Pinto morreu ontem à tarde vítima de cancro no pâncreas.

Era deputada à Assembleia da República, eleita como quinta candidata na lista pelo círculo de Lisboa do PSD nas eleições de 5 de Junho passado e, embora já gravemente debilitada pela doença, participou ainda na sessão parlamentar que elegeu a presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, a 21 de Junho.

O seu estado debilitado de saúde era visível já durante a campanha eleitoral, em cujas actividades fez questão de participar, mesmo quando estava já em tratamento oncológico. A determinação em manter os seus compromissos e a sua actividade pública até ao fim levou-a a comparecer, pela última vez, na SIC Notícias, há quinze dias, a 22 de Junho, para participar no seu espaço de opinião no programa de Mário Crespo.

Nascida em Lisboa, a 23 de Março de 1952, Maria José Pinto da Cunha de Avillez Nogueira Pinto, era filha de Luís Maria de Avillez de Almeida de Melo e Castro e de Maria José de Melo Breyner Pinto da Cunha e irmã da jornalista Maria João Avillez e da especialista em moda e imagem Maria Assunção Avillez. Era casada, desde 1972, com o jurista Jaime Nogueira Pinto, que conheceu na Faculdade de Direito de Lisboa, e mãe de três filhos, um rapaz e duas raparigas.

Jurista de formação, Maria José Nogueira Pinto destacou-se na vida política como figura de Estado e dirigente partidária. Entrou para a política pela mão de Cavaco Silva, de quem foi uma entusiasta apoiante até ao fim, tendo integrado a comissão de honra da sua recandidatura a Presidente da República, na campanha eleitoral do final do ano passado, altura em que já sabia estar doente. Mas a proximidade a Cavaco não significou nunca um apoio acrítico ao Presidente da República. Tanto que ainda em Abril discordou publicamente da decisão de Cavaco de convocar eleições em vez de procurar uma solução parlamentar.

Com Cavaco, sempre

O apoio e a ligação de Maria José Nogueira Pinto a Cavaco não significou também nunca uma adesão absoluta ao PSD. E embora em 1995, estivesse já no universo do CDS, divergiu de Manuel Monteiro e apoiou, desde logo, a primeira candidatura presidencial de Cavaco. Mas não deixou de, nas legislativas desse mesmo ano em que foi eleita deputada independente pelo CDS de declarar aos jornais que, face ao PSD de Fernando Nogueira, era melhor o PS de António Guterres.

A independência e autonomia de pensamento e acção foram, aliás, duas das suas características de marca. Isto aliado a uma determinação e uma disciplina férreas, traços dificilmente aceites numa mulher pela sociedade portuguesa e que eram, muitas vezes, olhados com facilitismo como traços de autoritarismo e de "personalidade forte" segundo alguns ou "mau feitio" segundo outros. O que é facto é que a sua irmã, Maria João Avillez disse um dia: "A Thatcher, ao lado dela, é de chocolate."

Profundamente católica, Maria José Nogueira Pinto dizia que conversava com Deus e teve como confessor o padre João Seabra. Aliava esse catolicismo - que vivia mesmo numa dimensão litúrgica e ritual -, a uma visão política assistencialista e profundamente estatista. O seu pensamento político - que deixou registado em intervenções políticas, mas em textos de opinião em jornais como o PÚBLICO, o Expresso e o Diário de Notícias - é determinado pela valorização de dois conceitos centrais: o nacionalismo, ou seja, o lugar, o caminho e o projecto de Portugal enquanto comunidade, enquanto nação; e o papel do Estado como garante da unidade e do bem-estar de todos. É por isso que Maria José Nogueira Pinto viu sempre de forma crítica as condições de integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia e de adesão ao euro. E nunca cedeu perante a defesa do neoliberalismo.

Fura greves

O gosto e o interesse de Maria José Nogueira Pinto pela política existiu desde sempre. Logo na Faculdade de Direito de Lisboa se destacou pelo facto de, em plena luta académica, não aderir aos protestos e reivindicações estudantis. Furou, aliás, a greve de 1969. Sempre se assumiu como uma pessoa de direita. É também pela política que se dá a identificação e o início da relação que manterá até ao fim com o seu marido.

Imediatamente após o 25 de Abril, Maria José e Jaime Nogueira Pinto vão para Angola. Ele é militar. Estão em Luanda e no Uíge. Acabam por fugir, ainda em 1974, para a África do Sul, vivendo num campo de refugiados. Fogem de novo do campo, usando o facto de serem brancos e ela parecer inglesa. Vivendo um ano em Pretória, é aí que vive a conhecida experiência - que não se cansava de relembrar - de entrar numa joalharia representante da Cartier para vender dois anéis da marca, sem ter como provar que eram seus. Com o produto da venda consegue ir a Madrid, buscar o filho que ficara em Lisboa com a avó. A criança sai de Portugal clandestina, com a identidade do seu primo, um dos filhos de Maria João Avillez.

Segue-se um período em que o casal vive no Brasil. Ela trabalha então como vendedora de enciclopédias e de materiais de construção civil. Regressam a Portugal no final dos anos setenta. Maria José está grávida da segunda filha. Jaime Nogueira Pinto é julgado como desertor e absolvido, em 1979. Ela termina então em Coimbra o curso de Direito que abandonara para acompanhar o marido para Luanda. Esta experiência fará de si uma entusiasta de Angola e uma eminente apoiante da UNITA e de Jonas Savimbi.

Curso terminado trabalha, a convite de António Barreto no Gabinete de Estudos Rurais da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. Depois é assessora jurídica da Presidência do Conselho de Ministros, no âmbito do processo de integração, tendo saído por não concordar com a condução do processo. Segue-se o lugar de vice-presidente do Instituto Português do Cinema, até que, no Governo do Bloco Central, é convidada por Leonor Beleza para sua adjunta na na Secretaria de Estado da Segurança Social. Maria José Nogueira Pinto nunca se cansaria de repetir o que achava dever no seu percurso ao apoio que lhe fora dado por António Barreto e por Leonor Beleza.

Ruptura com Santana

Foi em 1991 que Maria José Nogueira Pinto entrou na política activa e logo pela porta da governação, como subsecretária de Estado da Cultura. Acaba por demitir-se em 1993, em ruptura com Pedro Santana Lopes, então secretário de Estado e por causa do "Caso da Pala do Sporting", em que se sente desautorizada.

Isto porque, depois de ela ter interditado o Estádio de Alvalade para servir de palco a concertos musicais, por insegurança da estrutura, nomeadamente da "pala" de uma bancada, Santana entra em acordo com o clube. O Sporting compromete-se a fazer obras e os espectáculos são autorizados. Logo então se percebe que Maria José Nogueira Pinto não teme a ruptura política, preza a sua autonomia e não se submete a directivas partidárias com que não concorda. Regressa à vida civil, indo então para consultora da Fundação Gulbenkian (1993-95) e transitando depois para presidente da Fundação para a Saúde, no regresso a uma área de actuação que conhecera entre 1988 e 1991, ao presidir à administração da Maternidade Alfredo da Costa, onde conseguiu a modernização tecnológica e o saneamento financeiro da instituição.

Ideóloga no Parlamento Passados três anos, nas legislativas de Outubro de 1995, é eleita deputada independente por Lisboa nas listas do CDS, então já liderado por Manuel Monteiro. Faz parte de um grupo de personalidades que inovam e refundam o partido.

É neste mandato, que cumpre até 1999, que se distingue na vida parlamentar e política, sobretudo nos dois últimos anos, em que lidera a bancada do CDS. Introduziu então uma dimensão ideológica rara no desempenho do mandato de deputado no Parlamento português. O seu estilo culto e contundente, a sua agilidade política e inteligência intuitiva, assim como a forma educada e corajosa - até desassombrada - como dirigia o grupo parlamentar e se relacionava com os outros partidos, marcaram então os trabalhos parlamentares.

Destacou-se pelo protagonismo com que desempenhava o cargo e as relações que desenvolvia com todos, desde o presidente da Assembleia, António de Almeida Santos, ao líder parlamentar do PCP, Octávio Teixeira.

Foi nesse mandato que se jogou o seu maior protagonismo político. E aconteceu em torno das discussões sobre despenalização do aborto e nomeadamente no contexto da campanha do primeiro referendo, realizado em 1998. Foi Maria José Nogueira Pinto a primeira subscritora de um projecto lei que acabou por ser chumbado, mas que condicionou todo o debate posterior: o projecto de lei que propunha o reconhecimento pelo Estado da entidade jurídica do embrião.

A questão não era tanto a de saber se um feto podia tirar bilhete de identidade, como foi ironizado à época, mas a de lançar o debate sobre quando começa a vida humana. Ou seja, dar argumentos morais e culturais aos defensores do "não" à despenalização. Por isso, Maria José Nogueira Pinto foi vista então como uma das grandes vencedoras da vitória do "não" no referendo. Já em 2007, manteve-se menos activa na campanha do referendo, mas foi uma das autoras da tese - partilhada com Bagão Félix - de que a mulher que aborta não devia ser criminalizada nem levada a tribunal, mas o acto devia manter-se penalmente proibido.

"Você sabe que..."

Mas se o sucesso parlamentar foi marcante, o mesmo não aconteceu no CDS, a que aderiu em 1996. Quando Manuel Monteiro sai, em 1998, Maria José Nogueira Pinto disputa a liderança com Paulo Portas, num congresso em que começou por garantir que até ganhava "ao Rato Mickey" e que acabou por perder, depois de acesos debates e rupturas, como a que teve com Lobo Xavier, a quem disse do palco do Congresso a famosa e ainda hoje enigmática frase: "Você sabe que eu sei que você sabe aquilo que eu sei..."

A eleição de Paulo Portas como líder leva a que se afaste e recuse integrar de novo as listas eleitorais. E em 2000, por convite de Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros do segundo Governo do PS, chefiado por António Guterres, Maria José Nogueira Pinto passa a ser representante de Portugal na Secretaria de Cooperação Ibero-Americana, em Madrid.

Com novo Governo de maioria do PSD e do CDS, liderado por Durão Barroso, Maria José Nogueira Pinto volta aos cargos públicos na área social, em 2002, indo dirigir a Misericórdia de Lisboa. Um mandato que faz, também aqui de forma destacada, criando projectos inovadores no acompanhamento de idosos e no acolhimento de crianças.

Em 2005 aceita deixar a Misericórdia para se candidatar pelo CDS à Câmara de Lisboa. É eleita vereadora ficando responsável pela Habitação Social. Lançou então um ambicioso programa de tentativa de reabilitação da zona da Baixa-Chiado.

Mais uma vez a sua relação com Paulo Portas atravessou-se na sua relação com o CDS. O regresso de Portas à liderança do partido leva-a à ruptura. O clima de agressividade leva-a mesmo a acusar o deputado do CDS, Hélder Amaral de a ter agredido fisicamente. Depois, diria que provavelmente entendeu mal o gesto, que olhou como agressão um simples agarrar de braço que então a magoou.

A ruptura com o CDS, aproxima-a de novo do PSD. Em 2009, é convidada pela então líder, Manuela Ferreira Leite, para se candidatar em Lisboa. Regressa ao Parlamento e logo de início volta a marcar com o seu estilo assertivo e contundente, de quem não teme afrontar adversários. Num famoso debate na Comissão de Saúde vira-se para o deputado do PS, Ricardo Gonçalves, apelidando-o de "palhaço" e de "deputado inimputável". Reeleita pelo PSD no passado dia 5 de Junho, cumpriu, enquanto conseguiu, o seu mandato.

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