Continuam a querer matar o mensageiro

Foto
Jornalistas de várias nacionalidades fogem durante um bombardeamento na Líbia em Março, perto de Ras Lanuf REUTERS

Anton Hammerl, morto em serviço na Líbia. Tim Hetherington e Chris Hondros, mortos em serviço na Líbia. Syed Salim Shahzad, torturado e morto no Paquistão. A lista podia continuar. E não é um memorial a militares. Estes combatentes lutam apenas pela causa da informação. São jornalistas. E estão cada vez mais ameaçados.

Syed Salim Shazad estava desaparecido há dois dias. O jornalista paquistanês, correspondente da agência Asia Times no Paquistão e autor de um livro sobre a Al-Qaeda, era conhecido por não ter muitos amigos entre os rebeldes taliban do seu país. Desapareceu, quando se dirigia para uma tertúlia na televisão onde ia revelar dados que descobrira numa investigação sobre um assalto dos rebeldes a uma base militar da Marinha paquistanesa. O seu corpo acabou por ser encontrado na província de Punjab.

É apenas um entre muitos casos, com os ataques a jornalistas a continuar a marcar a actualidade, como se se acreditasse ainda que matando o mensageiro se impede a revelação da má notícia. Acontece que, em muitos casos, morto o mensageiro, a notícia segue o seu caminho.

Foi em homenagem tanto aos mensageiros mortos, como às notícias que acabam por seguir o seu curso que o canal de partilha de vídeos YouTube, propriedade da Google, lançou em Maio um espaço dedicado à memória daqueles que pereceram em busca da notícia. Em http://www.youtube.com/user/journalistsmemorial podem ser vistos em vídeo os trabalhos de vários jornalistas mortos durante o desempenho da sua profissão - é a versão digital da secção Journalists Memorial, do Newseum, o museu dedicado às notícias, em Washington.

O número de mensageiros mortos não são mais hoje do que há dez anos, garantiu ao P2 o presidente da associação internacional Repórteres Sem Fronteiras, Jean-François Julliard. Mas continuam assustadoramente altos - ou seja, não baixam. "Os números são os mesmos há cerca de dez anos. Todos os anos entre 30 e 100 jornalistas são mortos por causa do seu trabalho. E há cerca de 150 jornalistas presos, número que tem variado entre os 110 e 190 durante os últimos dez anos."

Para Julliard, numa realidade geopolítica em ebulição e numa era de informação instantânea, a notícia ganha cada vez mais poder, e os ataques agravam-se: "A imagem, por exemplo, tem cada vez mais poder. Vimos isso na Tunísia, no Egipto, na Síria, na Líbia. Os governos têm a noção de que é preciso controlar a informação, com censura, com ataques pessoais..."

Os norte-americanos Tim Hetherington e Chris Hondros juntaram-se em Abril às negras estatísticas de jornalistas mortos em combate. Hetherington, fotojornalista britânico, foi co-autor, com o jornalista norte-americano Sebastian Junger, do documentário Restrepo. Para o filmar, Hetherington, ao serviço da Vanity Fair, passou um ano num dos mais mortais locais do Afeganistão: o vale de Korengal. Restrepo foi premiado como melhor documentário no festival de Sundance em 2010 e nomeado para um Óscar - o seu título era o nome de um médico colombiano que foi morto enquanto acompanhava o pelotão protagonista do documentário.

Nesse caso, Hetherington sobreviveu para contar a história. Mas acabaria por ser apanhado por um morteiro em Trípoli. Mais uma vez ao serviço da Vanity Fair, e acompanhado por Hondros, ao serviço da agência de imagem Getty Images, estavam a filmar e fotografar os combates entre os rebeldes e as tropas leais a Khadafi numa rua da capital líbia num dos momentos mais violentos do conflito que perdura no país. Quando estavam a tentar fugir de um edifício em ruínas, foram apanhados por um morteiro.

"Estávamos a tentar sair dali, quando um morteiro caiu à nossa frente", contou à Reuters o fotojornalista free lancer Guillermo Cervera, que também estava no local na altura.

Histórias interrompidas

Hetherington ainda chegou a ser levado para o hospital, mas acabou por morrer pouco depois. O mesmo aconteceu a Chris Hondros, que foi transferido para uma unidade de cuidados intensivos, mas sofreu lesões cerebrais e não resistiu.

Na última mensagem que colocou no Twitter, Hetherington escreveu a partir de Misurata, no Oeste da Líbia: "As forças de Khadafi bombardeiam indiscriminadamente. Não há sinais da NATO."

A história do conflito que se prolonga na Líbia já não será contada até ao fim pela lente de Hetherington. João Silva, o fotojornalista luso-descendente ao serviço do New York Times, um dos repórteres de guerra mais experimentados do mundo, também dificilmente voltará ao Afeganistão. A parte da história que nos contava foi interrompida quando uma mina antipessoal lhe decepou as duas pernas em Outubro passado. Mesmo assim, recusou-se a deixar de fotografar, quando já estava ferido.

Ainda em recuperação no Walter Reed Army Medical Center, em Washington, um dos mais prestigiados centros médicos norte-americanos para a recuperação de militares feridos, João Silva continua a ser submetido a cirurgias e a tentar adaptar-se às duas próteses artificiais que já o sustentam de pé. No Memorial Day, em que a América presta homenagem aos combatentes feridos ou mortos em combate, foi João Silva que Michelle Obama decidiu visitar.

Numa fotografia divulgada no blogue Lens, do New York Times, um blogue especializado em fotografia que conduziu a campanha de apoio à família de Silva e que tem servido de fio condutor à história da sua recuperação, vê-se Michelle, de bata branca, em conversa com o fotojornalista, que fez questão de a receber de pé, apoiado nas duas próteses a que se está a adaptar. João Silva, que tem uma recuperação de dois anos pela frente, não voltará a palcos de guerra, depois de ter coberto tantos conflitos pelo mundo. Mas viveu para contar a sua história. E o que é que ela nos diz? No momento da reportagem num palco de guerra, que desejo se impõe como mais forte ao repórter? O da busca da notícia ou da salvaguarda da própria vida?

Cândida Pinto, subdirectora do Expresso, com largo currículo de televisão e uma das repórteres de guerra portuguesas mais experientes, com trabalho no Afeganistão, Kosovo, Iraque, Angola, Guiné-Bissau e Líbia, conta o que passa pela cabeça do jornalista numa situação de risco: "É difícil, sempre, avaliar as situações no momento, quando a confusão é grande, quando queremos chegar mais perto. Nunca se sabe se estamos a perder a melhor história, a melhor reportagem um pouco mais à frente, ou se o risco é demasiado elevado."

Cândida Pinto conta um episódio que ilustra a dificuldade do jornalista em optar entre a segurança e a busca da notícia: "A 5 de Abril, na Líbia, pela manhã, estávamos a chegar a Brega - zona de petróleo -, quando um líbio rebelde nos avisa: "Não avancem mais! Quatro jornalistas acabam de ser capturados pelas forças de Khadafi!" No momento ficámos sem saber se seria verdade ou apenas um sinal para nos mantermos por ali."

A linha entre o dever profissional e a salvaguarda da vida acaba por ser ténue, confessa a jornalista: "O ideal é conseguir a melhor reportagem ou fazer o melhor possível salvaguardando a segurança. Caso não se salvaguarde a segurança, não conseguimos fazer reportagem ou mais reportagens. E, apesar da experiência nos permitir ler sinais de risco, nunca se está livre de se ser surpreendido por novas situações. Os locais são irrepetíveis, as circunstâncias mudam sempre."

Também José Rodrigues dos Santos, da RTP, outro dos mais experientes repórteres de guerra portugueses, confessa que o sentimento do repórter oscila entre a salvaguarda da segurança pessoal e a vontade de cumprir o dever profissional: "Sempre que vou para uma guerra penso que é uma loucura o que estou a fazer e que não voltarei a repetir. Depois, claro, esqueço-me dessa promessa e volto na guerra seguinte, onde faço a mesma jura, que esqueço logo a seguir."

José Rodrigues dos Santos afirma que há um certo "estado de espírito" do repórter que o impele ou não a arriscar: "Tudo depende do nosso estado de espírito. Há momentos em que damos mais importância à segurança e outros em que corremos riscos que, à posteriori, concluímos terem sido excessivos."

Segundo o Comité para a Protecção dos Jornalistas, é no Iraque que a morte de jornalistas em situação de guerra mais impunidade tem. A escala que a organização classifica como "índice de impunidade" aponta como segundo pior país da lista, nesta matéria, a Somália e em terceiro lugar as Filipinas. São 92 as mortes de jornalistas que ficaram impunes no Iraque, a maioria jornalistas locais.

Mas, se o número de jornalistas mortos se tem mantido igual, embora elevado, há estatísticas que têm aumentado ultimamente, conta Jean-François Julliard. "Os únicos números que têm aumentado são os dos jornalistas raptados e os jornalistas obrigados a abandonar os seus países, obrigados a procurar exílio para salvarem as vidas. Esta é uma nova fonte de preocupação para todos os que defendem a liberdade de imprensa."

Raptos e lágrimas

As histórias de raptos de jornalistas têm-se multiplicado ao mesmo ritmo que se multiplicam os conflitos recentes nos vários pontos do planeta. E muitas acabam mal. Manu Brabo, fotojornalista espanhol, contou em Maio, rodeado pela família e os amigos da plataforma Libertem Manu, aquilo que viveu em Abril, não conseguindo conter as lágrimas, que lhe rolavam pela cara. Recorda tudo o que aconteceu às mãos das tropas fiéis a Khadafi, na Líbia, onde estava desde Março. Foi como num filme. Passou-se em Brega.

"Estragámos tudo porque andámos para lá do que devíamos. Seguíamos com os rebeldes e houve um contra-ataque das tropas líbias. Estávamos na primeira linha, quando os rebeldes desataram a fugir. Desataram a disparar sobre nós, tentei sair da estrada, levaram-nos tudo, encheram-nos de pontapés e enfiaram-nos numa pick up."

Depois disso Manu foi encarcerado 12 dias e submetido diariamente a interrogatórios durante quatro horas. "Começaram a falar do Mundial de Futebol e de como a Líbia e Espanha eram nações amigas. Mas acabavam sempre a acusar-nos de espionagem."

Quando a história começou a ser comentada internacionalmente, Manu diz que lhe deram um quarto numa mansão, com direito a pratos de marisco, para que recuperasse até ser libertado.

Com ele foram raptados os free-lancers norte-americanos Clare Morgana Gillis e Jim Folley e o sul-africano Anton Hammerl, para quem a história acabou mal: "Já sabem o que aconteceu a Anton." Hammerl terá tentado fugir num dos carros, mas relatos contam que acabou por ser atingido.

"No dia em que me raptaram estava a cumprir o sonho da minha vida, a fazer o que queria. Sabemos sempre que pode acontecer alguma coisa, mas só pensamos que acontece aos outros. Mas não me arrependo." Por agora, contudo, como confessou, Manu só quer estar com a família.

Há, claro, o lado solar das passagens por cenários de guerra - imagens de harmonia que ficam. Cândida Pinto lembra ao P2 um momento recente, na Líbia: "Ao sairmos de Bengasi, em direcção à zona de conflito que se encontrava a cerca de 450 quilómetros, na zona de Ben Jawad, os líbios com quem íamos decidiram fazer um piquenique no caminho antes de chegar a Brega, zona petrolífera. Saímos da estrada e, debaixo de uma árvore, prepararam uma salada com tomate, pimento e outras verduras. Depois da salada feita prepararam sanduíches, rezaram, descansaram e só depois seguimos."

Só que nunca se sabe o que vai acontecer no segundo seguinte.

Sugerir correcção