Esculturas, telas e cigarros

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Em "One Hundred and Six Columns, Four Heads and One Table", mais do que os cigarros, são os resíduos dessa relação (amorosa, íntima, efémera) entre o fumador e seu objecto que dominam. Papel, nicotina, tabaco JOANA FREITAS

Pode uma coisa baixa, dispensável e suja, ser merecedora do nosso olhar? Na Galeria 111, a nova exposição de João Leonardo diz-nos que sim. Com telas e escultura produzidas a partir dos resíduos do tabaco, que convocam o tempo e o corpo. José Marmeleira

Assim que acaba o cigarro, João Leonardo (Odemira, 1974) apaga-o cuidadosamente. De seguida, sem interromper a conversa com o Ípsilon, deposita a beata numa pequena caixa. Irá repetir o gesto outra vez, com a mesma descontracção. Mas não se trata de um ritual ou de um sintoma patológico. É parte do processo da sua arte. E quem duvidar desta revelação pode visitar na Galeria 111, em Lisboa, "One Hundred and Six Columns, Four Heads and One Table", a mais recente individual do artista.

Não é a primeira vez que trabalha com o tabaco. Na sua primeira exposição na galeria lisboeta, em 2006, apresentara "Calendar I", que consistia no emolduramento de mais 3600 maços, coleccionados desde que começara a fumar aos 16 anos. O tempo, o corpo, a dependência eram alguns dos assuntos que a peça evocava e regressam agora à 111, no âmbito de uma pesquisa de vários anos (outras obras têm, desde 2006, abordado o mesmo motivo): "É um material que me interessa, uma droga legal, tal como o álcool, mas tem uma carga simbólica muito particular. Implica ao mesmo tempo o prazer e a auto-destruição. E dessa contradição, tenho explorado um conjunto de metáforas e conceitos que proponho ao espectador".

Em "One Hundred and Six Columns, Four Heads and One Table", mais do que os cigarros, são os resíduos dessa relação (amorosa, íntima, efémera) entre o fumador e seu objecto que dominam. Papel, nicotina, tabaco. Tudo numa palavra: beatas. "Eu fumo. Fazem parte do meu quotidiano, ando sempre a apagá-las nos cinzeiros. Dentro do estúdio tenho a tendência para observar o mundo à minha volta, ver quais são os objectos que me rodeiam, o que posso fazer com eles. Comecei a imaginar o que podia fazer com as beatas. São o maior desperdício dos fumadores e, ao contrário do que se pensa, pouco biodegradáveis. E comecei a pegar nelas, a sujeitá-las a vários processos de manipulação até chegar a diferentes resultados.

Na história da arte contemporânea não faltam artistas que lidaram ou lidam com materiais perecíveis, degradáveis, orgânicos - Jannis Kounellis, Giuseppe Penone, Tom Friedman, Joseph Beuys, Eva Hesse ou Cildo Meireles... A referência mais singular para João Leonardo é, contudo, o alemão Diether Roth (1930-1998): "Em 2008, numa residência na Islândia, tive a oportunidade de ver o ateliê dele, e fiquei fascinado com a forma como envolvia no seu trabalho a vida, a auto-representação. Ele destruía de forma sistemática as fronteiras entre a arte e a vida e o desvanecimento dos materiais foi uma parte essencial do seu trabalho. Trabalhou com chocolate, açúcar, comida, que espalhava nas telas e nos objectos. Mas nunca ficou preso a um estilo, reinventou-se sempre".

Uma presença física

Tal como Dieter Roth, o artista português entende o ateliê com um lugar de experimentação, por vezes, de erros. E manifesta essa ideia através de uma mesa, tornada escultura, repleta de pincéis, frascos, recipientes de plásticos cheios de beatas, tabaco, papelinhos. O processo é-nos revelado. "Todo o tabaco foi apanhado do chão. Podia ter comprado numa loja e destruir uns volumes, mas quis mostrar a recolha, a colecção. A ideia é levar ao limite este processo de selecção e separação. E pegar num material desprezível, tratá-lo com muito cuidado, como se fosse extremamente precioso".

O acto transformador de João Leonardo, assim descrito, convida a leituras políticas. Mas ao olharmos para a mesa e, sobretudo, para as telas, onde as beatas compõem grelhas, figuras ou superfícies cromáticas, ou as cinzas e o tabaco inventam monocromos, pensamos de imediato noutra palavra: alquimia. "Esteve sempre presente. No estúdio estive sempre a pensar em processos de transformação, para gerar, a partir desse resíduo, um certo refinamento estético".

A elegância formal das peças não impede, nem esconde, a acção e a resistência do corpo. Por exemplo, na tela que o artista preencheu com a frase "breath in, breath out": "Vejo-a como representação muito abstracta da vida. Nascemos a inspirar o ar e quando morremos expiramo-lo. A nicotina é algo que introduzimos nesse movimento, uma droga, uma interferência". O corpo também é evocado nos inquietantes bustos, construídos meticulosamente à base de beatas: "Foram das peças mais físicas que fiz até hoje, pois tive o molde em gesso sobre a minha cara".

"One Hundred and Six Columns, Four Heads and One Table" resultou de uma residência de um ano na Internationales Künstlerhaus Villa Condordia, na Alemanha (onde foi apresentada em Fevereiro). E representa um momento marcante no percurso de Leonardo. "Creio que desenvolvi uma linguagem visual própria. Nesse sentido [a residência] foi muito importante. Convidaram-me a trabalhar com as melhores condições. Tive um ateliê, um apartamento para viver e um ordenado ao fim do mês". Desde 2007, dois anos depois de vencer o Prémio EDP-Novos Artistas, que não vive em Portugal. "Nesse ano, no âmbito de um intercâmbio com Escola Maumaus, fui fazer um semestre de investigação na Malmö Art Academy, na Suécia. Pedir para fazer o mestrado e fiquei lá mais dois anos, até hoje".

De volta à rua, o artista acende novo cigarro. "Ainda não esgotei as possibilidades deste objecto. Quero fazer mais uma ou duas exposições com as beatas. Aliás, concebi algumas peças que, não fosse a falta de condições e tempo, já podiam estar nesta exposição. São esculturas da maior escala". Guarda a beata e prossegue: "Para mim a escultura é absolutamente fascinante. Tem uma tradição milenar e ao mesmo tempo qualquer coisa que é inatingível pelo cinema e a pintura. Uma presença física, de um objecto real. Cria uma resposta afectiva na pessoa que vê, um fascínio que não se esgota. Sinto que tenho de responder a isso".

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