O fotógrafo que encontrou a Mona Lisa a caminho da Madison Avenue

Foto
tim mantoani

Começou nos anos 1960 depois de cumprir o serviço militar na Coreia e nunca mais parou. Pela sua máquina passaram muitas das grandes estrelas do mundo do cinema e da música. Marlon Brando partiu-lhe os dentes, Jackie Kennedy--Onassis o coração. Ron Galella é o mais famoso dos paparazzi de outros tempos, aqueles para quem um quase sorriso era tudo.

Quando caminha na rua, uma celebridade é um bem público. Quando está a sair de um restaurante às duas da manhã, é um bem público. Quando corre no parque ou dança numa festa no Studio 54, é um bem público. Privacidade só em casa. E mesmo aí, se a casa for na ilha grega de Skorpios e a mulher for Jacqueline Kennedy-Onassis, é discutível. Regras de Ron Galella, o polémico fotógrafo norte-americano que reescreveu a palavra paparazzo e pôs museus e galerias em todo o mundo a olhar com respeito para a fotografia de celebridades.

Perseguidor e perseguido, de certa maneira - foi preso no México, Jackie processou-o duas vezes, Marlon Brando e os guarda-costas de Richard Burton agrediram-no ??, Galella é uma estrela como as que fotografou nos últimos 40 anos. Chega à loja da Lowe, na Gran Vía, no centro de Madrid, à hora marcada, de máquina ao pescoço e muito bem-disposto. À sua espera estão dezenas de jornalistas, mas, como seria de prever, os flashes e as luzes fortes das câmaras de televisão não o incomodam. "Estou pronto para o meu close-up", diz, tirando fotografias aos que o rodeiam, sem sequer olhar para o visor da máquina.

Ron Galella, 78 anos, está habituado a atrair atenções e comporta-se como um conferencista profissional, contando histórias sobre as mais de 100 imagens que, divididas entre a galeria da marca de luxo espanhola e a Sala Picasso do Círculo de Belas Artes, compõem a retrospectiva que lhe dedica até 17 de Julho o PhotoEspaña, o festival internacional de fotografia e artes visuais que apresenta na capital espanhola, Cuenca, Alcalá de Henares e Lisboa quase 70 exposições.

Nas paredes negras da galeria estão John Travolta rodeado de fãs em 1976, John Lennon com David Bowie numa festa em Nova Iorque (o ex-Beatle com um casaco a dizer Elvis, Ziggy Stardust com um chapéu soberbo), os duques de Windsor elegantíssimos na sua limusina, John Cazale e Meryl Streep quando estavam muito apaixonados e ninguém adivinhava que ele ia morrer em breve. "Aqui, Steve McQueen estava a rodar na Jamaica e deu-me 15 minutos porque queria que eu desaparecesse", recorda Gallela. "Nesta, apanhei Richard Burton, que me tratava sempre muito mal, como o Sam Shepard e o Sean Penn."

Galella anda com dificuldade, todo vestido de preto (o blazer, que tem um lenço vermelho na lapela, foi ele que o desenhou), e parece ter imenso prazer em provocar os seus interlocutores. Devolve perguntas e, quando alguém insiste, dispara mais umas vezes o flash só para distrair. "É claro que me diverti muito, mas também arrisquei", diz junto a uma fotografia em que aparece em segundo plano, atrás de Marlon Brando, de máquina em punho, usando um capacete de futebol americano, com viseira e tudo.

"Compensou toda a paixão, energia e dentes que pus nisto." Refere-se à sua carreira e, em especial, ao episódio em que o actor de Um Eléctrico Chamado Desejo e d"O Padrinho lhe deu um soco à porta de um restaurante em Chinatown, Nova Iorque, partindo-lhe o maxilar e deixando-o com menos cinco dentes. "Esta fotografia foi tirada um ano depois, em 1974. Pedi a um amigo. Foi uma maneira de brincar com a situação."

Galella processou Brando, que foi obrigado a pagar-lhe 40 mil dólares, que o fotógrafo usou para pagar ao advogado e ao dentista. Mas, ainda assim, reconhece: "Eram os olhos que davam aquela expressão a Marlon Brando. Toda a gente falava nos seus lábios sexy e eu consigo perceber porquê, mas eram os olhos que faziam aquela cara, eram os olhos que seduziam."

O efeito Jackie

Galella nasceu no Bronx, descendente de italianos, e entrou para a força aérea como fotógrafo na guerra da Coreia (1950-1953). Só mais tarde, em 1958, foi estudar arte e se formou em fotojornalismo no Art Center College of Design de Los Angeles. As fotografias que começou a tirar na década de 60 foram fundamentais para a criação de uma cultura das celebridades e vê-las expostas nas paredes do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA), da Fundação Helmut Newton de Berlim ou da Tate Modern de Londres deixam-no hoje muito orgulhoso.

Entre as imagens de Ron Galella que mais circulam pelo mundo, há uma que tem um lugar especial na vida e na carreira deste norte-americano que se define como um "homem romântico" que está habituado a procurar a beleza num rosto ou numa situação. Mostra Jackie Onassis na rua, muito informal, com os cabelos a cobrirem-lhe parte do rosto por causa do vento, a olhar na direcção do fotógrafo. Foi tirada em Outubro de 1971, antes do mais mediático dos processos Jackie vs Ron, um ano mais tarde.

Ela estava na 85 St. a caminho da Madison Avenue e ele apanhara um táxi na tentativa de se esconder para a fotografar. Jackie está a olhar para Galella porque, na altura em que ia a passar, sem aviso, o taxista buzinou. "Não gosto de preparar as fotografias", explica à Pública. "Mas é importante tirar partido do que acontece e nos pode ajudar. Eu não sabia que ele ia buzinar, mas quando ela olhou na minha direcção eu estava pronto para disparar." E o resultado é a sua fotografia mais vendida nas galerias que o representam em todo o mundo.

Windblown Jackie até já foi comprada pelo MoMA, num lote com outras três fotografias de Galella. "Leonardo da Vinci tem a sua Mona Lisa, eu tenho a minha Windblown Jackie - é ela a minha Mona Lisa. Acho que Jackie é mais famosa do que a Lisa Gherardini [a mulher que poderá ter servido de modelo ao retrato de Leonardo]."

Não é só por ser a mais famosa das suas fotografias - publicada na Life e na Time - que Windblown Jackie faz de Galella um homem orgulhoso. O mais importante, argumenta, é que ela é o produto de três das características que fazem dele um bom paparazzo: rapidez, bom trabalho de detective e persistência. "É preciso disparar depressa para não perder o momento, saber onde andam as estrelas, ter um carro próprio ou arranjar outra maneira de chegar antes de elas entrarem ou saírem dos sítios e nunca desistir. Bom, às vezes também é preciso conhecer a pessoa certa, falsificar uma credencial, um convite, ou simplesmente entrar pela cozinha de um hotel ou de um restaurante qualquer." No seu caso, até ajudava namorar com uma das empregadas de Jackie...

A viúva do Presidente norte-americano John F. Kennedy, na altura já casada com o armador grego Aristóteles Onassis, era mais do que uma daquelas celebridades por quem valia a pena entrar pelas traseiras. Para Ron Galella, era uma obsessão: "Era muito fácil apaixonarmo-nos por Jackie e ficarmos obcecados pela sua beleza, o seu mistério e, sobretudo, pela sua maneira de ser - nunca fazia pose e isso dava-me oportunidade de a apanhar com grande realismo, sem falsificações."

Um quase sorriso

Evitar a pose é uma das regras de ouro dos paparazzi, ou devia ser. Hoje Galella critica os profissionais que perseguem celebridades para as fotografar, provocando-as, tentando apanhá-las em situações comprometedoras e até mesmo humilhantes.

"Paparazzo tem um significado diferente para mim. Quer dizer fotografia espontânea, sem preparações, sem encontros marcados. Hoje a maioria dos paparazzi fá-lo apenas por dinheiro. É claro que ganhei muito dinheiro e continuo a ganhar, mas eu fui treinado para observar como um artista e as estrelas que eu fotografava foram treinadas para ser estrelas." Hoje, defende, qualquer um pode ser famoso, não precisa de ter talento.

"A Lindsay Lohan sabe fazer alguma coisa?", pergunta aos jornalistas em Madrid. "Não, nada, zero", diz sem esperar pela resposta. E, uma vez mais, a questão da "pose", que hoje está por todo o lado nas celebridades da imprensa cor-de-rosa ou até mesmo nas revistas de prestígio como a Vanity Fair, a Vogue e a Life: "Em pose não fotografamos as pessoas como elas são, os retratos não são verdadeiros. Quando fazem pose, têm tendência a mostrar os dentes e, com isso, a expressão vai-se. Perde-se aquele Mona Lisa smile, que é um quase sorriso."

É precisamente o lado genuíno que interessa a muitos jornalistas e especialistas em fotografia que têm olhado para a obra deste norte-americano que foi objecto de um documentário de Leon Gast que se estreou no festival de cinema independente de Sundance, no ano passado - chama-se Smash His Camera, título "roubado" a Jackie Onassis, que ordenou a um dos seus seguranças que partisse a máquina de Galella quando este a fotografou com o seu filho, John Jr., a andar de bicicleta no Central Park, em 1969.

"Galella tem sido para as celebridades o que Ansel Adams foi para as montanhas, com a grande diferença de que Adams fazia com que as montanhas ficassem sempre bem. Galella registava as caras famosas como as encontrava", escreveu Richard Lacayo, editor da revista Time.

Em Windblown Jackie como em centenas de outras fotografias, Galella só teve consciência da qualidade da imagem que tinha nas mãos quando revelou o rolo e pendurou as provas no seu estúdio. "Quando disparo sem olhar para o visor da máquina, faço-o para captar expressões naturais, o que para mim é o mais importante. Só mais tarde, na câmara escura, vou à procura da estética." Um bom fotógrafo de estúdio pode fazer uma composição fantástica, com uma luz fora de série, explica, mas, sem uma expressão genuína, terá sempre apenas mais uma bonita escultura.

Lacayo é sensível a esta coreografia exagerada da realidade, sobretudo a que envolve as celebridades: "Estamos a caminhar para um mundo em que a imagem das estrelas é mais controlada do que um congresso de um partido estalinista, um mundo em que a fotografia ideal é Jennifer Lopez a chegar aos Grammys numa fórmula tão encenada como a da caminhada de um condenado."

Entre os "emails" e os coelhos

Quando não está a viajar pelo mundo a promover o seu trabalho em exposições, galerias e lançamentos de livros - já tem oito e o próximo deverá sair em Setembro com o título sugestivo Boxing With the Stars (coisa que em sentido literal não fez porque, no episódio com Brando, ele só apanhou) -, Ron Galella tem uma vida pacata. Dá entrevistas, responde a uns emails e supervisiona as ampliações de trabalhos encomendados pelas galerias que o representam. E faz reparações e trata da roupa e dos coelhos de estimação - "Sou muito bom nestas coisas, pergunte à minha mulher..."

Casou com Betty em Abril de 1979, quatro meses depois de a ver pela primeira vez num aeroporto de Washington DC. Galella apaixonara-se pela sua voz dois anos antes, quando ela lhe comprava fotografias pelo telefone para publicar nas páginas da Today is Sunday. A casa onde vivem, em New Jersey, tem uma galeria com muitas das estrelas que surpreendeu e um armazém caótico onde guarda mais de três milhões de imagens. No documentário de Leon Gast, vêem-se centenas de caixas empilhadas e dossiers. Nelas guarda instantâneos de Liz Taylor, Richard Burton, Jackie Onassis, Paul Newman, Grace Kelly, Andy Warhol, Cary Grant e Rita Hayworth.

Agora Ron Galella já pode juntar à sua lista a rainha de Espanha, Sofia, que teve oportunidade de fotografar no Jardim Botânico de Madrid, no dia da abertura do PhotoEspaña. "Até lhe beijei a mão", diz com um entusiasmo quase infantil este homem para quem a privacidade das celebridades no espaço público é um direito de que elas abdicaram no dia em que se tornaram... celebridades.

A ensaísta norte-americana Susan Sontag, que reflectiu muito sobre imagem e representação, escreve num dos seus livros mais importantes (On Photography, 1977) que hoje tudo existe para acabar numa fotografia: "Apesar disso, há algo de predatório no acto de fotografar. Fotografar as pessoas é violá-las porque a vemos como elas nunca se vêem, porque as conhecemos como elas nunca poderão conhecer-se. [A fotografia] transforma as pessoas em objectos que, simbolicamente, podemos ter."

Concordando com Sontag, a galeria de Galella tem objectos inesquecíveis.

lcanelas@publico.pt

A Pública viajou a convite do TourEspaña

Sugerir correcção