A poetry spam de Lee Ranaldo

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Uma leitura de poesia, ecos de beatniks, Sylvia Plath ou Anaïs Nin - alicerces e betão armado na construção dos escritos de Ranaldo - ou até Fernando Pessoa, cuja obra está a digerir com entusiasmo

DOMINGO, 19| MusicBox, Lisboa

A técnica foi buscá-la a William Burroughs e Brion Gysin que, por sua vez, se inspiraram nos dadaístas. A chamada cut-up é uma técnica de criação que oferece o protagonismo à aleatoriedade e, com uma tesoura, escarafuncha textos originais, isola cada palavra limpando-a da gordura contextual e enxerta-a numa nova construção de raiz, na companhia de outras palavras tão tresmalhadas como aquela. A matéria-prima Lee Ranaldo (guitarrista dos Sonic Youth, artista visual e poeta) descobriu-a no fim dos emails de spam e junk de há uns anos, quando a tentativa de iludir os filtros passou, em grande parte, por despejar palavras sem nexo para o final do corpo das mensagens por mail mas que lhe dessem uma fajuta aparência de carta pessoal. Era uma massa indistinta de palavras avulsas que ninguém perdia tempo a ler. Lee, por seu lado, extraiu-lhes muitas vezes um involuntário e inusitado potencial poético.

Mais conhecido por exigir à guitarra a recitação de um léxico que lhe é pouco habitual, Ranaldo atira-se às palavras com o mesmo fascínio que o leva a ligar o amplificador: procura, antes de mais, o som. É mais adepto da fonética do que das significações. "Quando escrevo letras para canções é um processo quase tão estimulado pelo lado fonético quanto pelo verdadeiro sentido das palavras", admite. "Em determinados aspectos, esta coisa de começar com um certo material e brincar com ele até se tornar algo moldado por mim é um modo de trabalho semelhante à forma como crio música para mim e para os Sonic Youth. Há parecenças em termos de uma abordagem que talvez tenha que ver com a sua natureza exploratória".

Por isso, Ranaldo fala de Burroughs mas igualmente da matriz da escrita automática surrealista. "Muitos destes poemas são surreais e não é fácil atribuir-lhes um sentido ou uma lógica; mas para mim é interessante que qualquer sentido que possam ter passe ao lado da lógica. Em parte, porque muitas vezes não são palavras que se usem normalmente numa conversa do dia-a-dia, são um pouco estranhas".

E são estes poemas, esquivos e que iludem a malha apertada do entendimento, que Lee Ranaldo traz ao Festival Silêncio no dia 19, para o espectáculo no MusicBox. À partida, a guitarra deverá ficar arrumada no saco, em Nova Iorque, e as suas experiências audiovisuais deverão ficar devidamente descansadas na pasta que o disco rígido externo lhes reserva. Em palco não deverá haver mais do que ele e os poemas da sua safra mais recente. "Pediram-me uma leitura de poesia e é isso que vou fazer", diz-nos. Com ecos de beatniks, Sylvia Plath ou Anaïs Nin - alicerces e betão armado na construção dos seus escritos. Ou até Fernando Pessoa, que descobriu há um ano, em passagem pelo Porto, e cuja obra está a digerir com entusiasmo.

As criações de Lee Ranaldo não são esquisitas. Ou seja, podem ser estranhas de percepcionar, mas não são de torcer o nariz aos ambientes em que se dão a conhecer. Museus, clubes de rock, festivais de Verão, galerias, tudo é propício à sua arte. De qualquer forma, acredita, "essas barreiras estão a cair - e grande parte dessa culpa cabe aos museus, porque estão verdadeiramente desejosos de ser receptáculos e reflexo da cultura popular, por oposição ao reflexo de uma cultura histórica". "Mas nalguns casos gosto do lado mais formal de apresentar algo no contexto de um museu. Há qualquer coisa nessa experiência que nos obriga a subir a um certo nível". O MusicBox, por outro lado, poderá mais facilmente conduzir à improvisação.

Quanto ao sucessor de "The Eternal", o disco dos Sonic Youth lançado em 2009 - depois disso houve apenas o volume 9 da série SYR, a banda sonora de "Simon Werner a Disparu" -, Ranaldo garante que não há planos para começar a ser gravado antes do Outono. Só nessa altura, quando partirem em digressão para a América do Sul e ele e Thurston Moore tiverem acabado de apresentar os respectivos discos a solo - o de Lee deverá sair em Julho, o de Thurston já anda por aí -,é que haverá novidades. G.F.

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